10/09/11

A dialéctica da fotografia surrealista/conceptualista

A dialéctica da fotografia surrealista/conceptualista



José Correia Marafona – o fotógrafo do “racional-irracional”, nascido em 1952 em Vila do Conde, Portugal, em duas palavras suas, o homem simples e o fotógrafo criativo-complexo, define-se assim: “Embora tendo abraçado e experimentado por influências directas ou indirectas as várias vertentes da fotografia convencional, foi na fotografia conceptual que descobri, após um interregno de 20 anos, a verdadeira forma de me exprimir.
Apesar de saber tratar-se de uma expressão altamente contestada e com poucos seguidores... é aí que me sinto bem, mesmo que praticamente só!”


Dos muitos fotógrafos que conheço, há um que me toca particularmente pela sua originalidade em retratar o mundo que, não sendo nova, continua a impressionar. Pelo menos a mim, leitor atento que sou das múltiplas manifestações artístico-filosóficas do ser ao longo dos séculos.
José Correia Marafona, um fotógrafo diferente. Um fotógrafo conceptualista. Um surrealista, na verdade! Talvez mais um “fazedor de imagens” do que um fotógrafo, convenhamos. José Marafona, deixa-me que expresse na primeira pessoa o que eu penso da “racionalidade-irracional” das tuas imagens. Há muito que te vejo por aí, em sites e exposições, se bem que não com a frequência que desejaria, mas entendo que um artista do teu calibre necessita de dias, quiçá semanas ou, até meses, para fazer uma das tuas imortais fotografias, quando eu, pequeno mortal a teu lado, obturo à deriva e em curtos minutos gasto rolos de filme sobre objectos inúteis sem neles conseguir ver mais do que “aquilo” que eles são aos meus olhos e a objectiva da minha máquina captura. É que, ao contrário de ti, o meu subconsciente não consegue ver para além do real que aos meus olhos se apresenta.


E escrevo de ti, meu caro Marafona, para publicamente expressar como gosto da maneira como tu retratas a deformação deste mundo, na composição que fazes das e nas tuas imagens fantasmagóricas, segundo o teu método que me atrevo a classificar quase de “paranóico-crítico”, tão próprio dos surrealistas dos anos 30.
Deixa-me que te diga, Zé Marafona, que para mim és, dos que conheço da actualidade (e são poucos, mesmo muito poucos, com a tua categoria e da tua craveira), o mais próximo de Salvador Dali. E uma dúvida se me põe a este respeito: “estarás tu mais próximo dele ou ele de ti?” – tu na fotografia, ele na pintura, obviamente!

Perdoem-me os seguidores de Dali, pela comparação que faço, mas é o que penso e o que sinto ao ver as imagens de um e de outro.
Um desabafo para te dizer, Marafona, que muitos dos “pseudo-conceptualistas” que pululam por aí, são apenas “pseudo-coisa nenhuma” ao lado da tua sombra. Até eu já fiz uma vergonhosa tentativa e, cabisbaixo, me arredei dessa senda intentada sem sucesso.


Gosto do teu método quase “paranoico-crítico” com que constróis/destróis esta “sociedade de palhaços monstruosamente cínica e tão inconscientemente ingénua, que faz o jogo da seriedade para melhor esconder a sua loucura”, como dizia Salvador Dali. Gosto da maneira como tu (e confesso uma certa inveja não invejosa) dás forma à vida a partir dessa “mistificação do mundano”, nessa “transformação ininterrupta do objecto” sob a “visão-exame” paranóica das tuas muitas realidades do “mundo exterior”, tão “instável e transitório”. – Já André Breton o dizia de Salvador Dali e eu o considero agora de ti. Tal como aquele via deste, também eu vejo em ti uma maneira distorcida de ver o mundo real.
Gosto da tua fotografia “racional-irracional” tão suspeita e perturbadora, quantas vezes com um sabor terrífico, até, com que dás forma ao mundo nessa tua visão real-irreal da “realidade transformada”, que impões aos outros com a precisão imprecisa das multifacetadas leituras a que levam os teus objectos fotográficos.
Gosto da “irracionalidade concreta” e única das fotografias fantasmagóricas com que distorces o mundo em teu redor depois de o observares sob um cirúrgico olhar crítico sem qualquer laivo de loucura mas, antes, recheado de uma racional lucidez que só os arautos da sabedoria, em dissecar, conseguem.
Aprecio o teu lado místico casando tão bem a fé com o terrífico – ao lado da cruz a representar o Bem, tão presente nas tuas imagens, o outro lado a mostrar o Mal. Quase sempre a oposição de forças antagónicas na tua visão “paranóico-crítica” muito além da simples visão de qualquer mortal.
Quanto esforço eu faço para poder ler o teu pensamento sobre as tuas imagens, puras invenções surrealistas! Quanto interesse me despertam os objectos desconcertados das tuas figuras carregadas de “ambulantes fantasmagorias” (figuras que nada têm de abstracto mas tão concretas se apresentam!), ditadas pela exploração que fazes do teu subconsciente. (Dou por mim a pensar – “é isso que me falta…; saber explorar o meu subconsciente para poder ver para além do real; ou, talvez, ter subconsciente para depois o poder saber explorar).

A maneira como tentas ir para além da definição da imagem visual e da sua função dando ao teu acto da visão a capacidade do “ver psicológico”, do “ver imaginário”, fazem-te “olhar para o interior das coisas e transformá-las radicalmente”, dando-lhe (a tua) voz interior, imprimindo-lhe alucinação visual, e fazendo pairar, quem as analisa, numa atmosfera de sonhos. E quantas vezes de sonhos doloridos!
Os objectos móveis e silenciosos que compõem as tuas fotografias tão racionais quanto irracionais, pelo desconcertante no “aspecto absurdo” que têm, respondendo a fantasias e desejos claramente latentes, mais que latentes, expressamente manifestados, são talvez o grito da lucidez que ainda existe nesta sociedade de carneiros que seguem o seu pastor de varapau erguido e ameaçador, em que o povo, surdo-mudo e já sem “querer” para se opor aos governantes que lhe sugam a seiva e lhe põem a pata em cima do cachaço, é o único a suportar e a puxar o peso da desgraça.



Impressionam-me os teus “Delírios”, os teus “Devaneios” e os teus “Estados de Alma”. E uma pergunta me fica na garganta e sem resposta:
- Será que o importante em ti é a “obra” que cria forma nesses delírios, nasce desses devaneios e cresce e vive desses e nesses estados de alma, ou são as “ideias-leituras” que a tua arte transmite e fica sem tradução para muita gente?

09/09/11

Sonata para uma noite só

Ias-me falando de amor...
aos poucos
o sussurrar da tua voz aos meus ouvidos
soava a notas plangentes e húmidas
suavizando-me a pele
e aturdindo-me os sentidos.

Dizias-me melodias que eu não entendia
porque navegava à bolina
num mar profundo de erecção.

Eram o sussurrar da tua voz
o quente do teu respirar
profundo
e o frenesim explorador da tua língua
o mundo.

Um mundo nómada sem ser errante...
um mundo à parte
um mundo sem sarcasmo
sem buscar invenções de luxúria
com sabor a falsa arte. Era o nosso mundo
em direcção ao húmido esplendor
dos nosso orgasmo.

manhã de nocturnos frios

É hora de largada.
A boca brota
virgem
escrevendo invencíveis palavras
contra as catadupas demolidoras
do tempo.

Rosas e Povo.
Pão e Futuro.

A manhã cresce sem sentido.

Os meus filhos hão-de vir
e ver
ao acordar
que esta manhã feita de aguarela
bruta
vai cobrar ao mundo
nocturnos frios.

mãos esculturais por descobrir

Além,
das silhuetas perdidas
num horizonte de fogo e sangue,
a vida.

O olhar vencido
cheio de mar e solidão
fatiga-se no cansaço
da noite
à procura da luz outra.

Eternizam-se os mitos
inventados
na aridez das palavras construídas
sem sabor.
Falta a coragem de dizer com voz outra
mesmo que doam e sejam áridas
as palavras por escrever.

Não há mitos.
Apenas mãos esculturais
na construção das constelações
por descobrir.

Recado

Procure-se uma alavanca
que faça mover...

uma bússola para orientar...

qualquer outro instrumento
que faça parar, que sirva de travão a tudo
quanto de ruim está a acontecer.

Uma alavanca que sirva
para despregar
erguer
mover
arrancar...

Uma alavanca que arranque
tudo
quanto está a atravancar
e a impedir
de crescer.

Outro instrumento qualquer
que sirva de travão
e faça parar
o mal que impede o bem-pensar,
como em proveito universal
agir.

Uma alavanca que arranque
tudo
de ruim.
Mas mesmo tudo...

Se a alavanca vai fazer
mover
o que está parado
pela preguiça de pensar
e falta de vontade em ser
um dia...

...que o travão páre
o absolutamente inútil
e fútil.

E que a bússola oriente
e faça agir como em Rowan
para levar "uma carta a Garcia".


* Versejando inspirado em Elbert Hubbard que escreveu "Uma carta para Garcia"

nenufar, MULHER, navio, onda, poema

Ali, sozinho
no recanto daquele velho lago
de águas contaminadas e negras
dum jardim que já ninguém visita,
cresceu o nenúfar.
E desabrochou em flor…
uma flor
que contra toda a evidência do tempo
teima em edificar um molhe,
qual couraça,
que só ela sabe indispensável à vida.

Cada dia,
em silêncio,
apoderou-se dos olhares sequiosos
de uma ou outra criança que por ali passava
e o tentava roubar,
com mão insegura, hesitante mas atrevida,
à quietude do velho lago.

Cada noite,
em segredo,
contemplou o porte altivo daquele candeeiro
de luz mortiça que o tempo esqueceu,
também ele abandonado à esquina
dum jardim que já ninguém visita
onde, debaixo dele, montou residência fixa
um vagabundo errante
e esquecido da vida.

Cada noite,
cada dia,
em silêncio e em segredo
decorou o eco dos passos vazios
que deixavam poemas de dor e solidão escritos
nas pedras daquela calçada;
cada dia,
cada noite,
contemplava as pedras desse lago
e lia nelas signos impossíveis de traduzir
o outono da vida
que não tardaria a chegar.

Cada dia,
cada noite,
no movimento pendular das estações do ano
abria-se à sumptuosidade do tempo,
e da vida,
e perdia-se no exílio daquele lago
de águas sujas e negras;
e resistia ao tempo, firme e erecto
na sua cor de vermelho vivo
cor do sangue, cor da vida.

Como tu
que tantas vezes, e sempre, caminhas
erecta e firme
sem te dobrares ao tempo, se te é agreste,
sem te dobrares aos espinhos da vida
que se atravessam no teu caminho,
construindo a luz
quando o dia tem mais bruma,
semeando estrelas no mapa da vida
mesmo quando ela tem mais espinhos.

Como tu,
MULHER NAVIO ONDA POEMA.

29/07/11

Nesta farsa perfeita à volta de mim

Estou já desperto mas durmo ainda.
Sinto meu corpo dorido desta dor que não finda.
Estou febril de pensar. Febril por viver e não saber viver
de não saber sair deste torpor que me entorpece
e adormece a alma.

Nada me acalma já! Vivo assim…
Tudo está onde não está, tudo é incorpóreo, estagnado
e parado dentro de mim. Quero acordar deste meu sono
e continuar eternamente em vigília neste meu sonho
de não saber sonhar. Sempre o mesmo querer
entre estes meus dois mundos de mim perdido,
entre as profundezas de um céu ausente
e a lonjura turbulenta de um mar ferido.

Um e outro dentro de mim interpenetram-se
e numa mistura de sonhos em luta constante
completam-se sem qualquer sentido.
Sopra um vento de cinzas perdidas no ar mil propósitos
mortos sobre o que sou e o que não sou quando de mim
desperto meio absorto. Chego a pensar que é coisa ruim
vinda dum céu sem remédio, porque neste meu sonho
mórbido, quase morto, já nem sei gerir este tédio.

Inerte, uma angústia manuseia-me a alma
por dentro. Entorpeço-me.
Deixo-me boiar num oceano distante e dormir.
Nem sei se sinto como toda a gente sente,
muito menos se quero sentir. Já nada me acalma!...
De tudo me minto. Aborreço-me do que faço
e não faço, já nem me levanto se me sinto a cair.

Nesta espécie de realidade que surge neste sonho
acordado, perco-me de mim, ausento-me de tudo
e de tudo me sinto algemado.
Canso-me num fogo que arde e me consome,
invisível, na bruma da tarde;
Canso-me de ser como sou de dar-me como me dou
sinto-me vencível.

Perco-me nos passos do chão que piso…
Sonho e perco-me neste enredo de sonhos
que sonho nesta ânsia passiva. Nada me renova.
Abomino-me, até, ao cansar-me dos sonhos que sonho
na vida e não realizo. Sinto esta farsa perfeita
à volta de mim que me envolve e estreita
e aos poucos me empurra p’ra cova.
Alvaro Giesta

Enviado por Alvaro Giesta em 29/07/2011 para www.alvarogiesta.com
Código do texto: T3127104

03/04/11

sono tranquilo

ao meu Pai, no seu leito de morte
02/Set/2002

Impávido e sereno. Dormia.
Um sono profundo e tranquilo.
Imponente, entre finas e brancas sedas,
no seu fato cinzento, quase imaculado,
que só em épocas festivas vestia.

Um rosto magro, ossudo, quase sem vincos,
tranquilo, repousava.
Como se o seu último desejo por cumprir
fosse aquele sono eterno
que em vida mais desejava.

Em seu redor nem sussurros se ouviam
com medo de o acordar.
Vigiavam-lhe, os amigos, aquele sono tranquilo
feito de silêncio de respeito
e dor. Sofriam.

De rosto magro bem barbeado,
afagado por alvo lençol,
tinha a brancura da morte….
Tão diferente do que fora antes
tisnado pelo sol.

Dormia sem sobressaltos nem stress.
As suas mãos, sobre o peito, ambas cruzadas
uma sobre a outra, seguravam
com firmeza e fé, mesmo na morte,
o terço das suas preces.

Debruçada à cabeceira, por dois círios iluminada,
em oração surda a minha mãe.
Parecia alheada do mundo e ausente.
Com certeza rogava ao deus das suas preces
que se voltassem abrir aqueles olhos
teimosamente fechados, para sempre.

No rosto do meu pai, já sem sofrer,
os seus olhos fixavam, porventura,
sob as pálpebras fechadas um mundo novo
que se abria feito de ventura
às portas do Além.

devolução à Luz


Eterna elegia à Mulher

Deixa-me dar-te uma flor de silêncios
e ternura
Uma flor de paz aureolada de Luz
como a serenidade do teu peito
inocente sofredor e fecundo

Deixa-me dar-te o minuto que tenho a mais
de vida
e devolver-te à Luz
Deixa que este desejo terno e puro
parta um dia em glória contigo,
e beber na intimidade do teu néctar
o sumo do devir

Deixa-me beber a tua intimidade
onde me acolho
e escondo
martirizado e vivo
junto ao teu peito de silêncio e paz

Deixa-me cantar-te o tempo
viver-te o tempo
de imortal esperança e infinito espaço
de Luz de vida
Deixa-me acolher na serenidade
do teu peito
e semear sementes de silêncio e paz
para aí nasceram
silêncios de amor e ternura

16/03/11

entre a sombra e a claridade

Estou cansado
e morto por parar nesta subida…
Dura é a vida
em que tanto naufraguei
colado ao chão!
Fartei-me de percorrer as veredas
entre a sombra e a claridade
em busca da razão
e da verdade.

E que encontrei no fim da linha
do horizonte
onde este se funde com os Céus?
Falta de tudo! Vede:
Sempre a falta de Deus
como água fresca da fonte
onde pudesse mitigar a falta disso tudo
e a minha sede.

13/03/11

13.ª edição do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama


Organizado pelas Juntas de Freguesia de Azeitão (S. Lourenço e S. Simão), tem a parceria da Câmara Municipal de Setúbal, da Associação Cultural Sebastião da Gama e da Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense.

A 13.ª edição do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama está em curso, podendo os trabalhos ser entregues até 31 de Março.

O trabalho que venha a ser premiado (em sessão que decorrerá em 5 de Junho, Dia Mundial do Ambiente), além do valor pecuniário, terá também incluída a sua publicação a cargo da organização do Prémio.

O Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama foi certame criado em 1988, em Azeitão, pelas Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão.

agora, que as minhas mãos de amar…

…já estão vazias
e são estátuas de vidro em reflexão
deixai em paz o coração
que frágil tece a teia em que ainda
quer apenas viver por frágeis dias

abismo profundo em névoa
se desvanece
e um raio em ira que fende o céu
em dois cai quase a prumo
e atordoa e fere e mata
e enlouquece
mas não perde este Homem do seu norte
o rumo

castração

Castrou-me o sonho.
Desvirtuou-me o que pretendi
ser.
Escureceu-me a memória
na azáfama dos dias
(do) que pretendi viver.

Dialoguei imaginários devaneios
em silêncios sábios
de Luz, fugazes.
Naufraguei nas margens do nada,
inventei-me
em ânsias de viver
audazes,

atolado e imóvel

Persegue-me uma subtil Luz
no fundo do túnel
onde me encontro
afogado.
Imóvel
nesta terrível procura,
algo em mim se recusa a sair
das areias movediças
em que me vejo atolado.

10/03/11

Não posso adiar!

Não posso adiar por mais tempo o meu grito.
Deixem-me gritar.
Deixem-me estas amarras romper.
Não me roubem o meu grito
nem a possibilidade de gritar
e dizer.

(...)

Não posso adiar por mais tempo o meu grito.
Não posso!
Não me amordacem
que eu não me deixo por ninguém amordaçar.
Deixem-me só mas com a minha liberdade…
Não me impeçam de gritar.

Não me enlouqueçam…

…nem ais, nem gritos de raiva, nem dores
nem estrondos de granada.

Deixem-me antes nas sombras
sozinho, sem nada.

Despido de tudo, de tudo, mas mesmo de tudo!
Deixem-me apenas com a palavra
e papel e caneta para gritar
o meu grito sem lágrimas nem ais.
Deixem-me apenas isto
e nada mais.

É preciso mudar as telas

as cores as letras
da vida
é preciso mudar o amanhã
é urgente mudar o amanhã
e encerrar de vez estas entranhas
que doem de revolta e cansaços.

É preciso acabar com os elogios
que não servem
de nada
é preciso continuar a gritar
é preciso percorrer e desvendar
os caminhos da verdade
com firmes passos.

Não me vendo

jamais me venderei
nem mesmo dentro do caixão.
Haja o que houver!
Sei
que é nesta perdição
pecaminosa
que me vou perder.

Busquei na vida
a luz que nunca vi
e me prometia o eterno.
Nessa busca incessante
me perdi
e tive como resposta
o regresso
às sombras deste inferno.

Inutilmente a manhã na fronte

perde-se
em rugas de sulcos fundos
que repousam seus gentis gomos
nos cílios fluviais dos trilhos das margens
duras da vida

Ao lado o rio que corre…
E inutilmente o ciclo que arrefece
(...)
chicoteado pelo esquecimento
Ali gesticulam efémeros gestos de prazer…

Ali, a dádiva emprenha o ventre virgem
no galopar do vazio do tempo
(...)
da noite que só
álgida
se cobre da ausência da luz

A noite trazia aragens

e orgias de medo
no voo frenético dos sexos

… e eu,
solitário com os ossos nus do crepúsculo
a esvair-se em rubro sangue…

Pressinto o mar à distância e os sulcos
da chuva ácida
queimam-me as veias
e estiolam-me os ossos

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...