23/11/18

E fez-lhe sinal para que avançasse


2.ª parte do conto in "entre nós, CUMPLICIDADADES", Calçada das Letras, 2015
autor: Alvaro Giesta
(Esta, de quem se conta, era a guardiã daquela porta, onde diariamente pedia o pão para mitigar a fome. Esta que há muito estava enterrada no mais fundo das suas memórias, agora repentinamente avivadas por um reflexo de instantânea luz.) 

- Espera.
Levantou-se de um salto do sofá que naquelas horas transviadas e de loucura servia de cama, também. Dirigiu-se à janela, subiu a persiana de guilhotina cerca de um palmo e certificou-se que lá fora estava tudo bem com a filha de sete anos que brincava com a amiga, da mesma idade, enteada da vizinha do andar de cima. Aquele corpo nu, curvado na janela situada ao nível da rua possibilitando apenas vislumbrar parte da cabeça se alguém do lado de fora se desse ao trabalho de espreitar, despertou nele, ainda que rendido da anterior refrega, ânsias desmedidas. Por instantes saiu da janela. De cócoras, agora, procurava nos múltiplos álbuns musicais, de vinil, espalhados numa desordem total pelo chão da sala, um que não tardou em encontrar.
- Achei… ¾ disse ela, esbaforida, naquela voz da gaiata alegre e despreocupada que acaba por descobrir o brinquedo, que um dia teve valor, há muito perdido no desarrumado daquelas mil coisas já sem interesse e deixadas esquecidas no fundo mais recôndito do armário e da memória.
Pô-lo a rodar no prato do gira-discos de alta-fidelidade, coisa boa e única que conseguiu salvar dum casamento esfrangalhado e desfeito. Pink Floyd em Signs of Life. Os acordes nostálgicos das cordas à mistura com o marulhar das vagas batendo nos costados duma embarcação, pareciam gotas de orvalho que se desprendiam do éter e vinham mergulhar nas profundezas daquele abismo paradisíaco chamado monumento de mulher, que punha o mais exigente mortal, mesmo que frio como o mais gelado glaciar, com a cabeça atordoada.
- Vem… (e fez-lhe sinal para que avançasse) Anda, vem… ¾ pedia ela enquanto massajava numa carícia demorada e de veludo, que aturdia, o interior daquelas nádegas firmes e perfeitamente modeladas, uniformemente bronzeadas no último verão na Ericeira.
O seu corpo debruçou-se, mais uma vez, para a janela que mantinha subida a persiana no seu curto palmo de abertura. O suficiente para espreitar a filha que continuava a brincar no passeio oposto, ou para ver as pernas dos passantes apressados. Veio ele a saber, mais tarde, quando ela extravasava nas suas confidências, que era hábito aquele desafio ao ex-marido e, também, a um amante velho ¾ quase o triplo da sua idade ¾ que tivera no fulgor dos seus ávidos vinte e seis anos.
- Vem... ¾ pediu ela novamente. Foi uma súplica, desta vez uma súplica rouca mais parecendo o gemer ferido das cordas do violoncelo. Oferecia as firmes, espetadas e morenas nádegas ao desejo. Entreabertas, as pernas, deixavam à vista a vulva meticulosamente aparada.
- Vem… oh, vem… ¾ gemia agora. Aquele vem era apenas um sussurro.
E olhava-o com olhar lânguido numa oferta de prazer incomensurável. Um leve toque de cabeça (não o vulgar tique, mas aquele trejeito já gasto de tão estudado e repetido) fez-lhe cair sobre o rosto a farta franja, em leque, de uma cabeleira negra, exageradamente negra. Aquele olhar provocante, de mulher tropical, e de características acentuadamente tropicais, desafiava-o para o inventar de uma nova origem, qualquer outra maneira linda de fazer amor.  Ele, estirado nu naquele sofá-cama, gozava em silêncio aquele vulcão que brotava lavas incandescentes de desejos.  Um vulcão prestes a explodir. Um vulcão em erupção constante. Na semiobscuridade daquela sala, transformada em antro de luxúria, quase depravação, flutuava no ar, misturado com as notas musicais de Pink Floyd que continuava a rodar no prato do gira-discos, um agridoce odor a suor e a esperma por lavar, que aquele corpo plúmbeo ainda exalava.
- Esta música é capaz de me fazer cavalgar nua no dorso duro e sem sela dum cavalo selvagem, pelas longínquas estepes africanas… noite e dia, sem parar. Não sentes o mesmo?
Perguntava ela, fazendo alusão à sua terra natal: Moçambique. E as suas mãos começavam agora uma dança louca, que já lhe era conhecida de outras horas, percorrendo as intimidades do seu corpo nu à mistura com suspiros de prazer, que não tardariam (porque já lhe conhecia a intensidade)  a serem ouvidos do lado de fora da janela.
- Fecha essa porra... ¾ ordenou-lhe ele, referindo-se à janela.
- Não. Quero que na rua, quem passa, oiça os meus gemidos enquanto tu aí os sentes. ¾ Retorquiu, enquanto se certificava, pelo palmo da persiana aberta, se a filha se encontrava segura no exterior onde continuava a brincar.
Começou-o a incomodar aquela atitude depravada que sempre tinha. Uma atitude que ela levaria até aos limites da sua intenção. Extravasava, mesmo, esses limites. Sabia-o bem. Daquilo que dela conheceu, nestes longos nove meses de relacionamento a que decidiu por fim, jamais deixou de consumar um acto a que ela se propusesse. Começou a dar voltas à cabeça imaginando como sair daquela situação. Sabia o quão iria ficar embaraçado, porque daí a poucos minutos ela estaria a fazer solicitações entre gemidos e gritos de luxúria que se ouviriam na rua. Até era capaz de abrir ainda mais a persiana, pois, maníaca como era, gostava de ser observada enquanto gozava com o seu corpo. «Se viesse ao menos alguém interromper a sessão…» (pensou), «…tocar a campainha, por exemplo…» (quase o implorou, em pensamento, à divina providência).



19/11/18

das PALAVRAS INCONFORMADAS, de Isabel Bastos Nunes em "À PROCURA DE MIM"


das palavras inconformadas, de Isabel Bastos Nunes em "À PROCURA DE MIM"
Alvaro Giesta, autor

[(...). É difícil, em poucas palavras, escrever-se um grande poema do qual se possa intuir sobre a verdade ontológica da poesia ¾ isto é, se dela se pode conhecer "tudo" quando ela se limita ao questionamento directo do óbvio, ou se "nada" se pode conhecer de todo o abismo que envolve a palavra poética, interrogando-a e interrogando-se, questionando-a e questionando-se numa tentativa de resposta, pondo em causa a sua obscura natureza quando o não-óbvio está presente no texto poético.
(...)
          Difícil é também escrever um longo poema em que não é apenas o tamanho que lhe confere grandeza,  mas o valor ontológico que em si está contido, em que o poeta consegue dizer ao longo dele, o que ele julga ser tudo, sem se perder nem desviar do pensamento que pretende transmitir. É aqui que se enquadra a poética de IBN.

          A sua poesia é o lugar, não da probabilidade mas, da afirmação, da capacidade de dizer aquilo que a palavra quer dizer sem necessidade de recurso às metáforas e às imagens, que têm a função imagética de ocultar o óbvio para tornar o texto poético mais apetecível, porque alindado e ornamentado pela capacidade que as figuras estilísticas têm, de tornar o texto mais belo ainda, tornando-o, a elas afeito, confuso e preso a um certo grau de dificuldade para o seu entendimento. ¾ E eu falo aqui da poesia que dela conheço por leituras feitas não apenas ao título mas, também, ao que deixa nas redes sociais, porque falar somente do conteúdo da obra, é afirmar por defeito; mas não posso deixar de dizer que À PROCURA DE MIM é, talvez, a melhor obra que eu li até hoje sobre este mistério: O ENIGMA DO SER, onde é presença constante lado a lado com o Sujeito-poético e o Objecto-poético (o Eu e o Outro),  o Silêncio, a Solidão, o Tempo, a Vida, as Palavras, o Sonho e os Medos, e até a voz da Ilusão.

          O enigma do ser repete-se ao longo de "Procuro o Teu Olhar" numa entrega silenciosa ao "outro ser", mas com a voz presente e activa do sujeito-poético que a todo o tempo se dá como se numa vontade de não-ser ¾ «e tu e eu não queremos acordar» ¾ aqui, na terra, mas na eternidade para além do que está além do impossível. Nesta utopia, diz-nos a autora, «somos dois instantes feitos de eternidade / e a essência dos nossos sonhos / não se prende no impossível».   Podemos dizer que em IBN, neste mistério da existência, o sonho existe como uma ânsia de fuga à realidade ¾«não queremos acordar»¾ para o refúgio e abrigo na eternidade, no impalpável, no inconcreto ¾«somos dois instantes»¾, onde o nada-ser sequer é impossível  para a concretização do sonho.

          A poética de IBN não tem sombras transgressoras ornamentadas pelo símbolo a ocultar-nos a luz. A sua poética é luz e é tempo, é paz e silêncio, é sonho, é mistério, é enigma e lugar também. É, afinal, a natureza pura das coisas que os olhos veem e o coração sente (...).
          Nisto, descobri eu IBN nas palavras que nos deixa quer em verso, quer em prosa com sabor a poesia, quando vagueia dentro de si em comunhão com o tempo, com o silêncio,  com a solidão e com o mundo. As palavras de IBN revelam profundidade partindo da superfície das coisas (...)].
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(extractos) - direitos reconhecidos




14/11/18

Notas breves para um conto que não deve ser lido


"espreguiçando à mesa da esplanada"
Escreveu: Alvaro Giesta
(24/Janeiro/2014, para o jornal "Comércio do Seixal")

          No canto mais isolado desta esplanada, sento-me. Nesta mesa encoberta pelo tronco retorcido de centenária tília, poucos me vislumbram, porque nenhum dos frequentes e distraídos clientes dão por mim. Observo - demoradamente observo - os circunstantes deste café. Hoje, não são muitos, mas é como se fossem "nenhum". Os solitários são apenas sombras do real, mergulhados na ausência total de si mesmos, enquanto fitam qualquer ponto no infinito da memória que perderam no tempo sem nunca o terem enxergado. Mesmo aqueles que se sentam aos pares, como se casais ou outros cúmplices da vida fossem, ou mesmo simples amigos de circunstância, não são uma coisa nem outra. Ainda que parecendo ser, ou até mesmo sendo, não são, efectivamente, porque são do momento, sem ao momento pertencerem. Assemelham-se a robôs, a quem a vida é dada através dum botão com corda ou duma pilha de nove volts.
          Há em cada rosto, mesmo naqueles que se sentam aos pares, um pensamento diferente do par que têm à sua frente. Ausentes. Estão ausentes de tudo, abstractos, fingem ouvir o seu acompanhante que na realidade não escutam, porque nesse momento não são. Fingem ser, não sendo. São tudo num corpo presente com o espírito ausente. Os olhares divagam no espaço em lembranças doutros sítios, doutros astros, doutros céus. Não são, apenas, olhares amorfos; porque, ser amorfo é não ter forma determinada, definida, mas é, ainda que informe. Aqui, os olhares, prescrutam o nada,  são eles próprios protótipo de nada. São ausência, e ser ausência é não-ser, é ser um pensar vazio.

          Os meus cálculos não se enganam. Aquela mesa ao fundo do café - lado oposto a mim -, tem um casal cansado da vida e do tempo. "Tem", digo bem; aquela mesa "tem" - como se o casal fosse simples adorno da mesa que à mesma, como objecto, faz falta, tal como as cadeiras para se sentarem. A existência que a este casal confere vida a dois, perdeu a conjugação do verbo "ser" e substituiu-se pelas formas do verbo "ter".
          Ela deglute, com avidez, um pastel de nata, aos empurrões, goela abaixo, com curtos goles de um néctar consubstanciado de vitaminas, enquanto uma bola de berlim aguarda a sua vez para a entrada naquela boca voraz, de lábios grossos exageradamente pintados de vermelho sangue, esquecendo-se de que o diâmetro do seu corpo mal suporta o elástico da cinta que teima cingir a si, na esperança que esta lhe conferira um formato mais anatómico. Ele, grisalho, bem parecido, apenas entroncado quanto baste, folheia, distraidamente, um livro que não lê, e simula prestar atenção ao que a companheira lhe diz.
          A vida deles não começa aí. Começa lá mais atrás, há meio século, talvez, e aí estagnou. Como se fosse motor dum carro que se tivesse engasgado por fractura nos cabos de carbono que conduzem a energia do distribuidor à câmara de explosão certa, e deixado a apodrecer debaixo da tão querida e frondosa tília, também ela de tronco encarquilhado e centenário, que se ergue no canteiro, onde apenas se vai, de ora em vez, retirar-lhe as flores secas que sobre o tejadilho vão caindo, aproveitando-as para o tão delicioso chá que à noite, e à lareira, vai dar sabor ao amargo silêncio de ambos que lavra na tão amaríssima solidão das suas vidas. Tal como se faz aos livros de estimação que vão amarelecendo espremidos na estante, sacudindo-lhe o pó com o espanador de plumas para demorarem mais um pouco a amarelecer as cansadas folhas, de tão cansadas estarem por não serem manuseadas. Desse meio século, lá atrás, para a frente, foi apenas vegetar, foi apenas, é apenas deixar passar os dias dando hipótese ao tempo, que não chegou e tarda em chegar. Agora a hipótese de ser passou a mera experiência laboratorial, que nunca produziu resultado capaz de ser solução. Nunca foi antídoto para curar o mal que enferma, há muito, seus corpos: o mal da saturação, o mal da perda de interesse de um pelo outro.

          Noutra mesa sentada, já entrada nos setenta, de cabelos oxigenados penteados em piaçaba sobre a testa em abóbora, uma mulher tenta emprestar beleza ao corpo - neste caso ao rosto - que já não é mais do que uma máscara do amargo tempo, usando um qualquer batom que esfrega teimosamente, com mão trémula, nos lábios ressequidos e profundamente enrugados. Fixa continuamente o espelho que surripiou do fundo da sua avultada mala olhando, sorrateiramente, para todos os lados como se num gesto de cumplicidade com o acto envergonhado e comprometido de, com tal idade, se embelezar. Mala tão avultada que nela poderia trazer - e quem sabe se não traz -, todos os pertences necessários a disfarçar as rugas dum rosto que em tempos, já muito recuados, terá sido belo. A seu lado o companheiro, bem mais novo do que ela e de ar cavalheiresco, ausente do mundo e da mulher que parece não sentir próxima de si há muito tempo, vai-se empanturrando com avultada tosta mista e sumarenta caneta de puro malte. Entre as pernas a bengala, com o punho em castão marfim, desliza sob a mesa até aos pés da companheira que ela se apressa a empurrar para o sítio que lhe é devido.
          Não trocam palavra. O ritual da pintura acaba. Ela levanta-se, diz-lhe algo em voz baixa e, sem o fitar no rosto, sai... ele perscruta um lado e outro, certifica-se que ela lhe deu a segurança necessária e ripa de um telemóvel onde digita breves palavras. Talvez um "olá", um "como estás?", um "posso telefonar?", e liga. A cara dele, sisuda até então, amplia-se num sorriso alargado da boca até quase às orelhas, que lhe são longas, quase abanos. Do lado de lá está a razão de qualquer existência, bem diferente daquela que até ali se compunha ao rigor do espelho e do batom. E esquece, por curtos momentos, a idade, que a prisão dos seus dias de tédio não deve tardar em chegar dos lavabos.

          Portanto, os meus cálculos são estes, os de um observador atento: quando tudo parecer irremediavelmente perdido, quando no último momento sentir que estou a morrer, que está tudo acabado, que a minha vida passou repentinamente entre o ser e o não ser, fecho os olhos e idealizo-me em hipóteses de nada e gravo na consciência de que tudo, sendo apenas relâmpago, pode ser prenúncio de filme à beira dum capítulo por descrever. Tudo desfilará diante dele, até ser certeza absoluta, se em desapontamento se não transformar.

A poesia hoje - a valorização do particular, do circunstancial e do privado


A poesia hoje - a valorização do particular, do circunstancial e do privado [1]

 Assinado: Alvaro Giesta (para a obra, em edição, "quando as palavras são cardos")

«Enquanto a glória de Fernando Pessoa ia subindo todos os degraus, e os seus versos tornados pasto para toda a mediocridade universitária exibir um amor pela poesia que nunca teve, uma discreta aura iluminava a espaços Camilo Pessanha - e isso era um sortilégio suplementar. E havia ainda aquela vida sua vivida (ou antes: não vivida) exemplarmente à margem da impenitente e sentenciosa e sobranceira verborreia nacional, com o poeta apenas empenhado numa crítica da eternidade que era o seu caminhar para o silêncio, mais interessado pelos seus cães que pelos seus contemporâneos.»
Eugénio de Andrade in Os Afluentes do Silêncio (Camilo Pessanha, o Mestre)

À semelhança do interseccionismo, classificado por J(oão) C(orreia) de O(liveira) como «uma intoxicação da artificialidade», a escrita do "não-obvio" de alguns poetas de hoje - o hoje a que me refiro é o tempo dos últimos anos do século XX e primeiros do XXI -, é uma «tentativa» de «emocionalizar uma ideia» na busca de um espaço, não novo mas, que seja seu, só seu, criando artificialismos egocêntricos em que as abstractas ideias e divagações de «palavras carregadas de tanta excepção» se entrecruzam com o vago, a maior parte das vezes com coisa nenhuma, chocando pela falta de sentido estético e pelo repisar constante e monocórdico da mesma ideia que se perde em divagações, naquilo que nem sequer é tema. Falta-lhes o diferente, o tal "novo", ainda que simples, mas que seja arte, para que possa ser, à semelhança do interseccionismo, uma «demonstração brilhante de inteligência estética e de capacidade inovadora» ( Dic. da Lit. Port.). São divagações inócuas que deixam tão embevecidos, quanto perplexos, ao mesmo tempo, pelo não entendimento, os seus leitores e ouvintes que, embora ignorantes na interpretação do texto, que não percebem, porque de labirínticas frases-compostas se compõem tais escritos, envaidecem o(s) seu(s) autor(es) com efusivas palmas de parabéns. Contradição de pasmar... a pretensa sabedoria duns e a ignorância fatal, bem mal disfarçada, de outros!
Este modo de escrever, principalmente em poesia, centrado no ego e implodindo, necessariamente, em temas de circunstância tão mal cantados e repetidos e, pior que isso, mas por isso, também, tão artificialmente vulgarizados, não indicia coisa nenhuma senão ignorante endeusamento dos seus autores que se convencem, convencendo-os ou, pelo menos, fazendo-os crer de que perseguem uma qualquer nova época literária ou pseudoescola que dê cobertura àquela. Nada disso. Nada daqui nasce de novo porque nada, nesta escrita do culto do particular, se faz com sabedoria. Esta tendência não é arte. Para o ser, torna-se necessário desembaraçarem-se, os seus autores, de tudo o que é vago e plasticidade. Nada se faz sem sabedoria! 
Podia aqui citar alguns autores de textos, principalmente poéticos, nascidos e a medrar no alfobre dessa rede social chamada facebook (por onde também eu ando, aspirando a aprender) e publicados por uma teia de prestadores de serviços - ganho fácil para essas autointituladas "editoras"(!) - endeusando o que julgam que estão a endeusar, que delas (das obras) apenas se percebe a artificialidade do conteúdo no aglomerado, muitas vezes, de palavras inventadas colocadas no texto-poema sem qualquer critério e/ou sentido, mas fico-me, apenas, pela generalização do texto, sobre tantos dos que leio e só entendo sempre a mesma coisa - a repetição do mesmo tema particular e circunstancial que se vulgariza de tantas vezes repetido. Perde-se a POESIA: a forma mais nobre da escrita.
Quereria e gostaria, antes, de dizer desses poetas como Eugénio de Andrade escreveu de Teixeira de Pascoaes «magnífico e luminoso: espontâneo e simples como crianças, mas também terrível e acusador como um profeta do Velho Testamento», mas não posso. E não posso porque da maioria dos poetas que ora leio - àquela rede social me refiro e mesmo a muitos que proliferam nos escaparates e que se escapam a essa rede social - nenhuma presença, em seus escritos, inquieta, nada em seus poemas deixa os espíritos sequiosos por algo de novo, inquietos e desassossegados, muito pouco em seus escritos é inquietante, fracturante e incomoda em nome da verdade. Quase nenhum deles incomoda em seus versos, como o moscardo atormenta o asinino em dias de verão abrasador. Nenhum deles inquieta e desperta consciências adormecidas, porque se prefere que as mesmas continuem anestesiadas, entorpecidas com a cadência ritmada e cansativa dos «derrames líricos» ou com as metáforas tantas vezes incompreendidas, porque mal usadas no texto que pretendem complicar, como que a conferir-lhe propriedade exclusiva como se de cunho próprio se tratasse.
Atrevo-me a pensar deles, como Eugénio de Andrade dizia sobre Camilo «Preciso de me livrar de tudo o que nele me repele: o seu ódio ao corpo, os seus derrames líricos (...) a sua ambiguidade (...)» e acrescento eu: "o seu virar a cara aos problemas do mundo que desassossegam, que inquietam, que fazem reflectir e questionar nesta procura de respostas". «Se me livrar disto...», ficam-me tudo, menos escritores/poetas da língua e almas atormentadas capazes de escrever em nome da verdade.  É que, como dizia o grande escritor Eugénio de Andrade «Escrever é desobedecer» e a maioria dos poetas que me entram pelos olhos dentro vindos deste alfobre que o facebook criou, diz como Camilo «Escrever é obedecer».
E eu sou alérgico aos grossos títulos de poesia, especialmente antologias de temas múltiplos e desordenados,  espelhando excessos de lirismo decorativo e folclorizante, numa profusão obscura de cores semitonadas. Prefiro os livrinhos quase insignificantes, pelo número de páginas, mas com significado pela qualidade do conteúdo, ainda que sejam de uma escrita levada ao osso, «dissecada e dissecante» como em «Manual de Instintos Assassinos» do actual Eduardo Roseira, ou tivessem tido misteriosa e intelectual transparência como «Clepsidra» de Camilo Pessanha. Prefiro-os, assim, de lâmina cortante e afiada, aos namoros exibicionistas das metáforas e imagens para além do útil e que transborda em desnecessário: estes últimos dons de simpatia não me conseguem embruxar!
Devido a estes três sujeitos incómodos e subversivos: a proliferação dos maus poetas, dos maus leitores e dos editores oportunistas - a que eu chamo prestadores de serviços, embora essas editoras de vão-de-escada tal não queiram ser -, a eficácia da poesia, hoje, tornou-se completamente inócua, mesmo sobranceira à verborreia de poemas medíocres. A maioria do que se escreve em verso, hoje, são palavras de água morna sem pretensão a efervescência, sem a capacidade magistral de sugerir, de insinuar, de dizer "não",  incapazes de «coar o sarro» dos «derrames líricos» que, de tão repetidos, tornam banal esta forma mais nobre da escrita: a POESIA.
Os autores de tal poesia repetida, confusa e artificial, que intoxica de tanta artificialidade, em que o repetitivo cansa e causa enjoos com pretensão literária, parecem erguer a bandeira de qualquer coisa próxima dum sensacionalismo já tão longe no tempo! Já tão afastado! E, por isso mesmo, tão gasto. Pretendem criar sensações em quem os escuta e os lê, embevecidos, mesmo não percebendo nada do que está escrito. Nem uns, nem outros. Nem quem escreve, nem quem lê. Porque, se perguntarmos a tais autores de tal poesia de circunstância e sensacional, que se perde em palavras rebuscadas e depois, com recurso ao dicionário, traduzidas noutras de maior dificuldade de entendimento dando ao poema um sabor sem sabor, (des)valorizando-o como coisa sua abstracta e confusa, o que querem dizer com ela, a resposta é simples: a poesia não se explica, explica-se (o que é certo) e, a explicar-se, fica a critério de quem a lê (não menos verdadeiro).
Parece que o meu teorema ficou de pernas partidas pela dificuldade de demonstração para se tornar evidente. Mas não! O predicado da conclusão da premissa diz-me que a «intoxicação da artificialidade» continua válida: ou seja, para esses poetas (nascidos do e com o facebook), à semelhança dos do século passado, o que conta é a sensação. É despertar sensações com recurso à artificialidade. É despertar a mesma sensação que se repete - sempre a mesma sensação(!)- pela (in)sabedoria de despertar outras, ou porque estão socialmente bem colocados na vida e se esquecem dos que vivem no mundo da sombra, e têm medo de escrever outras inquietações pelo receio de perderem audiência, ou, então, desprezam simplesmente o despertar dessas outras inquietações que também merecem a escrita da denúncia, a palavra da recusa, a poesia do medo e da fuga ao medo, a poesia da ausência, a palavra da dificuldade em alcançar algo neste tempo desabitado, a poesia da falta... com palavras cruas e nuas, sem recurso a jogos malabarísticos de palavras de impossível entendimento.
Para esses poetas e escritores o que conta é criar malabaristicamente sensações sem intenção de serem sentidas, fazendo sentir mesmo que eles não sintam coisa nenhuma, mesmo que eles tenham a certeza de que o seu fingido sentir não é criar. Quase me atreveria a afirmar que, o que conta para eles é vender mais uns livritos dos que mandam imprimir por encomenda e não um trabalho sério em prol do social e, até, de uma carreira literária.
Para esses poetas, à semelhança dos intersecionistas «a sensação é a única realidade». Para eles e por eles, despreze-se o real, mesmo sabendo-se da decomposição da sociedade, da destruição dos verdadeiros valores morais e sociais do mundo em desassossego, em inquietação, em revolta pelo que vivemos. Para eles, o importante é não nos preocuparmos com a inquietação da tentativa de resposta nesta ânsia de busca e de procura: isso é um sortilégio suplementar à margem da sensação e do platónico.
O que importa, a esses escritores/poetas, é o choradinho e o chorrilho em trocadilhos de palavras inócuas, ao invés de se debruçarem sobre a inquietude social dramática em que o ser humano vive em interrogações constantes sobre o presente e o devir, porque não é esta inquietação que os faz crescer nos seus círculos de amigos que lhes compram os (maus) livros que mandam editar, mesmo sabendo que jamais alcançarão foros de literariedade!



[1] artigo publicado na revista BIRD  de 11 de Janeiro de 2016

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...