20/12/18

da POÉTICA de ISABEL BASTOS NUNES

Autor: Alvaro Giesta
30 de Novembro de 2018


[...]

Difícil é (...) escrever um longo poema em que não é apenas o tamanho que lhe confere grandeza, mas o valor ontológico que em si está contido, em que o poeta consegue dizer ao longo dele, o que julga ser tudo, sem se perder nem desviar do pensamento que pretende transmitir. É aqui que se enquadra a poética de Isabel Bastos Nunes.


A sua poesia é o lugar, não da probabilidade mas, da afirmação, da capacidade de dizer aquilo que a palavra quer dizer sem necessidade de recurso às metáforas obscuras e a outros símbolos que têm a função imagética de ocultar o óbvio para tornar o texto poético mais apetecível, porque alindado e ornamentado pela capacidade que as figuras estilísticas têm, de tornar o texto mais belo ainda; tornam-no, contudo, a essas figuras de estilo afeito, confuso e preso a um certo grau de dificuldade para o seu entendimento. E eu, que não sou o leitor do momento que se limita às palavras de circunstância, quando falo da obra de um autor não me cinjo, apenas, àquilo que as estreitas paredes do livro me permitem ¾ assim sendo, falo aqui da poesia que da Isabel Bastos Nunes conheço por leituras feitas não apenas ao título À Procura de Mim mas, também, ao que deixa nas redes sociais, porque falar somente do conteúdo da obra, é afirmar por defeito; mas não posso deixar de dizer que À Procura de Mim é, talvez, a melhor obra que eu li até hoje sobre este mistério: O ENIGMA DO SER, onde é presença constante, lado a lado com o Sujeito-poético e o Objecto-poético (o Eu e o Outro), o Corpo, a Vida, as Palavras, o Tempo, o Silêncio, a Solidão, o Sonho, os Medos e até a voz da Ilusão.

O enigma do ser presente em força no 1.º caderno poético (se assim lhe  podemos chamar) Procuro o Teu Olhar, repete-se ao longo de toda a obra. O mistério do corpo, neste enigma do ser, amanhece no tempo com o silêncio e a vontade de não-ser "E tu e eu não queremos acordar" porque "Somos dois instantes" numa fuga à realidade para o refúgio da eternidade, somos "feitos de eternidade / e a essência dos nossos sonhos / não se prende no impossível" ¾ é a busca do impalpável, do inconcreto, dum mundo realizável no irrealizável: onde o nada-ser sequer é impossível  para a concretização do sonho.

A poesia do corpo onde os sentidos se fundem, numa visão inquieta de versos escritos que se projectam no infinito do sonho ¾ é a essência da vida: "Toco-te quase furtivamente com as mãos / com medo de quebrar esse encanto, tão frágil do teu corpo, / e vagueio por ele mansamente, / avançando com medo que num instante / te voltes e me acordes deste sonho". O corpo ¾ península, continente, selva ardente, sol, sede - sede de ser: "És quente como a África quando, ardente e sequiosa / vibrante e sinuosa, nos desperta os sentimentos". O corpo ¾ onde e de onde "os mistérios da noite revivem", e "os pássaros cantam" e "os violinos das cigarras" se erguem em sons de cadência vaga "enchendo o ar de branda melodia" capazes de construir os melhores prelúdios e sonatas de Chopin ou o musical mais virtuoso de Mozart.

A poética de Isabel Bastos Nunes não tem as sombras transgressoras ornamentadas pelo símbolo opaco a ocultar-nos a luz. Quando o símbolo existe, é suave tornando, claramente, a sua poética luz e tempo, paz e silêncio, sonho, mistério, enigma e lugar também. É, afinal, a natureza pura das coisas que os olhos veem e o coração sente ¾ como dizia o Mestre Caeiro para quem a «natureza» abrangia «todas as coisas do mundo natural» e aqui, plagiando-o nestes dois versos de 1915, «a espantosa realidade das coisas» era a sua «descoberta de todos os dias». Nisto, descobri eu Isabel Bastos Nunes, que a li por noites longas, nas palavras que nos deixa quer em verso, quer em prosa com sabor a poesia, quando vagueia dentro de si em comunhão com o tempo, com o silêncio,  com a solidão e com o mundo ¾ como para Ovídio, poeta latino nascido a 20 de Março do ano 43 aC, também para IBN "a poesia é remédio da alma".

Agora, vagueando o olhar por campos mais latos da sua poética: as palavras de Isabel Bastos Nunes revelam profundidade partindo da superfície das coisas ¾ como, quando No Silêncio do Amor ela pede aos passos vagarosos da noite que a abracem como se fosse "pétala de flor" suave, e ao silêncio solicita o murmurar dos dedos... e aos dedos, a subtileza para desenharem em cada curva do seu rosto as linhas precisas dum poema de amor, um dia escrito. E sempre o tempo sem limites, sequer tempo contado, nunca de horas contadas, nem minutos, porque só assim, sem tempo definido se faz renascer o amor.

Ainda vagueando por outros poemas da autora, além do livro em apreço, há um Ponto de Encontro no tempo que às vezes o torna "trágico e maléfico" ¾ são "os medos" da poetisa que "cúmplices" a "tornam" ao passado, a levam de regresso ao passado, "apagando-lhe o presente como um sonho inacabado". É, depois disso, a dor e frustração pela espera quando o desejado é negado. As memórias do tempo num saudoso adeus, que não houve; as horas mortas do tempo, às vezes sombras, desgostos, alegrias também, e sentimentos já gastos como os corpos usados mas que as palavras perpectuam aqui no papel, porque ainda estão vivas na memória para as recordar ¾ renascem "das cinzas queimadas / em lareiras ardidas no carvão da solidão", diz-nos a poeta.

As reflexões poéticas nos cadernos Lágrimas da Alma e Entre as Palavras e o Silêncio, levam-nos a perguntar: depois da partida para outro rumo, outro caminho, o que fica? ¾ o silêncio, o esquecimento pela ausência, às vezes, nem saudades, nem lembranças, nem memória, nem história, porque não houve nem princípio, nem fim: "Agora os nossos gestos já não precisam ser estudados / vão-se esvaindo no longe do que fomos, / traduzidos em ausências", são "Restos tão gastos do nosso passado", já "Não há voz de saudade, nem lembranças de memórias" "porque nunca se apaga, o que não teve princípio nem fim".

No silêncio a desesperança e a voz da ilusão ¾ que florestas são essas partes de mim? Sim, que florestas são? Pergunta-nos e responde-nos, ao mesmo tempo, a poetisa. ¾ São silêncios onde "vou caminhando (...) / onde não há horizontes definidos / onde não se ouvem promessas / onde os corpos se entregam / e eu me sinto liberta", onde "os sentimentos são galhos" "secos e áridos" caídos no chão. Mas... que entrega dos corpos é esta, que libertação é esta sem horizontes definidos e sem promessas a cumprir? É a entrega cega (dizemos nós) "quando me segredam mistérios" que "quase me enchem de ilusão" ¾ diz-nos a autora.

E depois da ilusão? ¾ perguntamos e a autora responde-nos: "o peso das noites eternas / o desespero de todos os recomeços", o saber que "posso estar morta por dentro / mas (que) sei sobreviver no espaço e no tempo". Mas, e se... e as condicionantes repetem-se num questionar de medos à poetisa: ¾ e se o tempo não for favorável, e se a razão se sobrepõe à existência, e se houver dependência? Assustador este final poético e tão real do ENIGMA DO SER ¾ a solidão: "Posso a tudo isto sobreviver / posso não sobreviver ao peso enorme das noites eternas".

17/12/18

O POEMA E O POETA -- um abismo de palavras por escrever ( e um poema)


Autor: Alvaro Giesta


¾ Difícil é escrever um longo poema em que não é apenas o número de versos que lhe confere grandeza, mas o valor ontológico que em si está contido, em que o poeta consegue dizer ao longo dele, o que ele julga ser tudo, sem se perder nem desviar do pensamento que pretende transmitir.
¾ Difícil é também, com poucas palavras, escrever-se um grande poema do qual se possa intuir sobre a verdade ontológica da poesia - isto é, se dela se pode conhecer quando ela se limita ao questionamento directo do óbvio, ou nada se pode conhecer de todo o abismo que envolve a palavra poética, interrogando-a e interrogando-se, questionando-a e questionando-se numa tentativa de resposta, pondo em causa a sua obscura natureza quando o não-óbvio está presente no texto poético.
¾ Muito mais «difícil é escrever uma obra em livro por fragmentos, em que cada um dos fragmentos por si só se constitui poema mas, também, em que cada fragmento-poema é um componente - muitas vezes decomposto em unidades mais ínfimas e delicadas que conduzem à ideia errada de facilidade da escrita - que trabalha em prol da própria obra. Isto é, confere à obra uma arquitectura tal que faz com que cada um dos poemas enformadores do livro deixe de o ser, se torne fragmento como se fosse um órgão - coração, rim, pulmão, fígado, cérebro, etc., - para que o livro, tornado corpo, adquira vida.» Xavier Zarco transmite esta ideia de concepção de obra por fragmentos no prefácio a projecto de obra minha subordinada ao título "da Palavra (Des)Velada" que reune Meditações sobre a Palavra e Um Arbusto no Olhar.

¾ Face a tais considerações, cabe perguntar-nos, então: o que é este abismo que envolve a palavra poética?
¾ É o projecto poético que cada poeta reformula com tendência a outra realização diferente do poeta anterior; é a busca interminável composta de avanços e recuos, descobertas e ocultações, obscuridades e luminosidades, certezas e dúvidas, numa espiral de sentimentos que reciprocamente se descobrem e encobrem numa linguagem complexa onde a palavra poética diz e não diz, é e não é, nesta rede de atalhos do caminho do tempo desabitado e a percorrer.
Porque nada em poesia é definitivo, é aqui que o homem, em permanente angústia, porque órfão da verdade definitiva, coloca a cada resposta possível uma nova questão.

¾ O que é a poesia, afinal?
¾ É o lugar incómodo das perguntas, porque nenhuma verdade o é em absoluto. É o lugar onde o Novo - o que ainda não existe - se manifesta. Não há respostas concretas em poesia nem para definir a poesia, porque se a palavra poética é e não é, diz e não diz, então o que o homem escreve merece pesquisa e resiste.
Não há definição de poesia. É um fenómeno especial de linguagem inventiva - é a imaginação e a sensibilidade unidas num abraço comum e fraterno, contudo, divorciadas do raciocínio. É o pensar poético, o pensar com a alma, é o alarme necessário e encantatório que despoleta os sentidos e dá claridade à verdade simbólica.

¾ Quem é, então, o poeta, esse dinossauro da palavra que nada afirma, mas que tudo diz? ­Quem é "essa Ave Metafísica" como perguntava Sant´Anna Dionísio do Poeta do Marânus?
¾ É o moscardo que pica, que incomoda e que resiste. Mas, é também aquele ser que está para além do telúrico, aquele espírito ávido para a propensão de "ver formas ilusórias onde o vulgo vê realidades"; aquele ser que é capaz de, nas suas divagações "alucinadas", alcançar a linha incorpórea observada nos astros a partir da terra e ver, com a alma, que o autêntico está no plano invisível e não, decerto, no plano visível. Nesta perspectiva, o poeta vê percepções e não verdades - aliás, algures certo filósofo escreveu com alguma ironia séria, que "quem não possuir propensaão para a mentira não está fadado para a poesia".
Assim sendo, o poeta é aquele que nesta fome de crer, ser e ver, insiste e resiste.

¾ Mas resiste a quê?
¾ Ao nada das palavras, às palavras gastas, confusas e poluídas que invadem o nosso espaço, o nosso tempo quotidiano, palavras já incapazes de formular questões e até de dar respostas neste tempo da interrogação, neste tempo desabitado, neste tempo da ausência e do desassossego, neste tempo do vazio de Deus e dos Homens sempre na ânsia de alcançar algo.


I
«Penso para além de mim
com um pensamento destruidor, fulminante
mas contemplativo
como o sabor amanhecente da montanha
ou o incêndio que destrói.

Terrível é esta audácia de pensar assim:
 ¾ terminante e elíptica, esta fúria de pensar
sossega-me no rescaldo do relâmpago que
abre uma clareira na noite incendiada
de sombras e mistérios.

II.
Quando esta fúria de ao pensamento dar luz
parece sossegar,
quando este fogo que (me) atormenta a alma
e a acalma ao mesmo tempo
entra no rescaldo,
logo outro novo relâmpago a incendeia
e a clareira da floresta da imaginação
se abre em labareda a alumiar(-me) o caminho.

III.
O silêncio deixa de ter o sossego
calmo e mudo do silêncio que tudo diz
e abre-se devagar ao tumulto, neste ascender
arrebatador, das minhas entranhas.

Insólito é este pensamento de mim
com sabor oracular ¾ repentinamente
se afastam os que se dizem poetas
e se aproximam os poetas de nascença:

¾ os primeiros, pela cegueira se repelem
e eles próprios em tal cegueira se castigam;
¾ os segundos, pelo saber se consomem
e à palavra se entregam.

17/12/2018

23/11/18

E fez-lhe sinal para que avançasse


2.ª parte do conto in "entre nós, CUMPLICIDADADES", Calçada das Letras, 2015
autor: Alvaro Giesta
(Esta, de quem se conta, era a guardiã daquela porta, onde diariamente pedia o pão para mitigar a fome. Esta que há muito estava enterrada no mais fundo das suas memórias, agora repentinamente avivadas por um reflexo de instantânea luz.) 

- Espera.
Levantou-se de um salto do sofá que naquelas horas transviadas e de loucura servia de cama, também. Dirigiu-se à janela, subiu a persiana de guilhotina cerca de um palmo e certificou-se que lá fora estava tudo bem com a filha de sete anos que brincava com a amiga, da mesma idade, enteada da vizinha do andar de cima. Aquele corpo nu, curvado na janela situada ao nível da rua possibilitando apenas vislumbrar parte da cabeça se alguém do lado de fora se desse ao trabalho de espreitar, despertou nele, ainda que rendido da anterior refrega, ânsias desmedidas. Por instantes saiu da janela. De cócoras, agora, procurava nos múltiplos álbuns musicais, de vinil, espalhados numa desordem total pelo chão da sala, um que não tardou em encontrar.
- Achei… ¾ disse ela, esbaforida, naquela voz da gaiata alegre e despreocupada que acaba por descobrir o brinquedo, que um dia teve valor, há muito perdido no desarrumado daquelas mil coisas já sem interesse e deixadas esquecidas no fundo mais recôndito do armário e da memória.
Pô-lo a rodar no prato do gira-discos de alta-fidelidade, coisa boa e única que conseguiu salvar dum casamento esfrangalhado e desfeito. Pink Floyd em Signs of Life. Os acordes nostálgicos das cordas à mistura com o marulhar das vagas batendo nos costados duma embarcação, pareciam gotas de orvalho que se desprendiam do éter e vinham mergulhar nas profundezas daquele abismo paradisíaco chamado monumento de mulher, que punha o mais exigente mortal, mesmo que frio como o mais gelado glaciar, com a cabeça atordoada.
- Vem… (e fez-lhe sinal para que avançasse) Anda, vem… ¾ pedia ela enquanto massajava numa carícia demorada e de veludo, que aturdia, o interior daquelas nádegas firmes e perfeitamente modeladas, uniformemente bronzeadas no último verão na Ericeira.
O seu corpo debruçou-se, mais uma vez, para a janela que mantinha subida a persiana no seu curto palmo de abertura. O suficiente para espreitar a filha que continuava a brincar no passeio oposto, ou para ver as pernas dos passantes apressados. Veio ele a saber, mais tarde, quando ela extravasava nas suas confidências, que era hábito aquele desafio ao ex-marido e, também, a um amante velho ¾ quase o triplo da sua idade ¾ que tivera no fulgor dos seus ávidos vinte e seis anos.
- Vem... ¾ pediu ela novamente. Foi uma súplica, desta vez uma súplica rouca mais parecendo o gemer ferido das cordas do violoncelo. Oferecia as firmes, espetadas e morenas nádegas ao desejo. Entreabertas, as pernas, deixavam à vista a vulva meticulosamente aparada.
- Vem… oh, vem… ¾ gemia agora. Aquele vem era apenas um sussurro.
E olhava-o com olhar lânguido numa oferta de prazer incomensurável. Um leve toque de cabeça (não o vulgar tique, mas aquele trejeito já gasto de tão estudado e repetido) fez-lhe cair sobre o rosto a farta franja, em leque, de uma cabeleira negra, exageradamente negra. Aquele olhar provocante, de mulher tropical, e de características acentuadamente tropicais, desafiava-o para o inventar de uma nova origem, qualquer outra maneira linda de fazer amor.  Ele, estirado nu naquele sofá-cama, gozava em silêncio aquele vulcão que brotava lavas incandescentes de desejos.  Um vulcão prestes a explodir. Um vulcão em erupção constante. Na semiobscuridade daquela sala, transformada em antro de luxúria, quase depravação, flutuava no ar, misturado com as notas musicais de Pink Floyd que continuava a rodar no prato do gira-discos, um agridoce odor a suor e a esperma por lavar, que aquele corpo plúmbeo ainda exalava.
- Esta música é capaz de me fazer cavalgar nua no dorso duro e sem sela dum cavalo selvagem, pelas longínquas estepes africanas… noite e dia, sem parar. Não sentes o mesmo?
Perguntava ela, fazendo alusão à sua terra natal: Moçambique. E as suas mãos começavam agora uma dança louca, que já lhe era conhecida de outras horas, percorrendo as intimidades do seu corpo nu à mistura com suspiros de prazer, que não tardariam (porque já lhe conhecia a intensidade)  a serem ouvidos do lado de fora da janela.
- Fecha essa porra... ¾ ordenou-lhe ele, referindo-se à janela.
- Não. Quero que na rua, quem passa, oiça os meus gemidos enquanto tu aí os sentes. ¾ Retorquiu, enquanto se certificava, pelo palmo da persiana aberta, se a filha se encontrava segura no exterior onde continuava a brincar.
Começou-o a incomodar aquela atitude depravada que sempre tinha. Uma atitude que ela levaria até aos limites da sua intenção. Extravasava, mesmo, esses limites. Sabia-o bem. Daquilo que dela conheceu, nestes longos nove meses de relacionamento a que decidiu por fim, jamais deixou de consumar um acto a que ela se propusesse. Começou a dar voltas à cabeça imaginando como sair daquela situação. Sabia o quão iria ficar embaraçado, porque daí a poucos minutos ela estaria a fazer solicitações entre gemidos e gritos de luxúria que se ouviriam na rua. Até era capaz de abrir ainda mais a persiana, pois, maníaca como era, gostava de ser observada enquanto gozava com o seu corpo. «Se viesse ao menos alguém interromper a sessão…» (pensou), «…tocar a campainha, por exemplo…» (quase o implorou, em pensamento, à divina providência).



19/11/18

das PALAVRAS INCONFORMADAS, de Isabel Bastos Nunes em "À PROCURA DE MIM"


das palavras inconformadas, de Isabel Bastos Nunes em "À PROCURA DE MIM"
Alvaro Giesta, autor

[(...). É difícil, em poucas palavras, escrever-se um grande poema do qual se possa intuir sobre a verdade ontológica da poesia ¾ isto é, se dela se pode conhecer "tudo" quando ela se limita ao questionamento directo do óbvio, ou se "nada" se pode conhecer de todo o abismo que envolve a palavra poética, interrogando-a e interrogando-se, questionando-a e questionando-se numa tentativa de resposta, pondo em causa a sua obscura natureza quando o não-óbvio está presente no texto poético.
(...)
          Difícil é também escrever um longo poema em que não é apenas o tamanho que lhe confere grandeza,  mas o valor ontológico que em si está contido, em que o poeta consegue dizer ao longo dele, o que ele julga ser tudo, sem se perder nem desviar do pensamento que pretende transmitir. É aqui que se enquadra a poética de IBN.

          A sua poesia é o lugar, não da probabilidade mas, da afirmação, da capacidade de dizer aquilo que a palavra quer dizer sem necessidade de recurso às metáforas e às imagens, que têm a função imagética de ocultar o óbvio para tornar o texto poético mais apetecível, porque alindado e ornamentado pela capacidade que as figuras estilísticas têm, de tornar o texto mais belo ainda, tornando-o, a elas afeito, confuso e preso a um certo grau de dificuldade para o seu entendimento. ¾ E eu falo aqui da poesia que dela conheço por leituras feitas não apenas ao título mas, também, ao que deixa nas redes sociais, porque falar somente do conteúdo da obra, é afirmar por defeito; mas não posso deixar de dizer que À PROCURA DE MIM é, talvez, a melhor obra que eu li até hoje sobre este mistério: O ENIGMA DO SER, onde é presença constante lado a lado com o Sujeito-poético e o Objecto-poético (o Eu e o Outro),  o Silêncio, a Solidão, o Tempo, a Vida, as Palavras, o Sonho e os Medos, e até a voz da Ilusão.

          O enigma do ser repete-se ao longo de "Procuro o Teu Olhar" numa entrega silenciosa ao "outro ser", mas com a voz presente e activa do sujeito-poético que a todo o tempo se dá como se numa vontade de não-ser ¾ «e tu e eu não queremos acordar» ¾ aqui, na terra, mas na eternidade para além do que está além do impossível. Nesta utopia, diz-nos a autora, «somos dois instantes feitos de eternidade / e a essência dos nossos sonhos / não se prende no impossível».   Podemos dizer que em IBN, neste mistério da existência, o sonho existe como uma ânsia de fuga à realidade ¾«não queremos acordar»¾ para o refúgio e abrigo na eternidade, no impalpável, no inconcreto ¾«somos dois instantes»¾, onde o nada-ser sequer é impossível  para a concretização do sonho.

          A poética de IBN não tem sombras transgressoras ornamentadas pelo símbolo a ocultar-nos a luz. A sua poética é luz e é tempo, é paz e silêncio, é sonho, é mistério, é enigma e lugar também. É, afinal, a natureza pura das coisas que os olhos veem e o coração sente (...).
          Nisto, descobri eu IBN nas palavras que nos deixa quer em verso, quer em prosa com sabor a poesia, quando vagueia dentro de si em comunhão com o tempo, com o silêncio,  com a solidão e com o mundo. As palavras de IBN revelam profundidade partindo da superfície das coisas (...)].
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(extractos) - direitos reconhecidos




14/11/18

Notas breves para um conto que não deve ser lido


"espreguiçando à mesa da esplanada"
Escreveu: Alvaro Giesta
(24/Janeiro/2014, para o jornal "Comércio do Seixal")

          No canto mais isolado desta esplanada, sento-me. Nesta mesa encoberta pelo tronco retorcido de centenária tília, poucos me vislumbram, porque nenhum dos frequentes e distraídos clientes dão por mim. Observo - demoradamente observo - os circunstantes deste café. Hoje, não são muitos, mas é como se fossem "nenhum". Os solitários são apenas sombras do real, mergulhados na ausência total de si mesmos, enquanto fitam qualquer ponto no infinito da memória que perderam no tempo sem nunca o terem enxergado. Mesmo aqueles que se sentam aos pares, como se casais ou outros cúmplices da vida fossem, ou mesmo simples amigos de circunstância, não são uma coisa nem outra. Ainda que parecendo ser, ou até mesmo sendo, não são, efectivamente, porque são do momento, sem ao momento pertencerem. Assemelham-se a robôs, a quem a vida é dada através dum botão com corda ou duma pilha de nove volts.
          Há em cada rosto, mesmo naqueles que se sentam aos pares, um pensamento diferente do par que têm à sua frente. Ausentes. Estão ausentes de tudo, abstractos, fingem ouvir o seu acompanhante que na realidade não escutam, porque nesse momento não são. Fingem ser, não sendo. São tudo num corpo presente com o espírito ausente. Os olhares divagam no espaço em lembranças doutros sítios, doutros astros, doutros céus. Não são, apenas, olhares amorfos; porque, ser amorfo é não ter forma determinada, definida, mas é, ainda que informe. Aqui, os olhares, prescrutam o nada,  são eles próprios protótipo de nada. São ausência, e ser ausência é não-ser, é ser um pensar vazio.

          Os meus cálculos não se enganam. Aquela mesa ao fundo do café - lado oposto a mim -, tem um casal cansado da vida e do tempo. "Tem", digo bem; aquela mesa "tem" - como se o casal fosse simples adorno da mesa que à mesma, como objecto, faz falta, tal como as cadeiras para se sentarem. A existência que a este casal confere vida a dois, perdeu a conjugação do verbo "ser" e substituiu-se pelas formas do verbo "ter".
          Ela deglute, com avidez, um pastel de nata, aos empurrões, goela abaixo, com curtos goles de um néctar consubstanciado de vitaminas, enquanto uma bola de berlim aguarda a sua vez para a entrada naquela boca voraz, de lábios grossos exageradamente pintados de vermelho sangue, esquecendo-se de que o diâmetro do seu corpo mal suporta o elástico da cinta que teima cingir a si, na esperança que esta lhe conferira um formato mais anatómico. Ele, grisalho, bem parecido, apenas entroncado quanto baste, folheia, distraidamente, um livro que não lê, e simula prestar atenção ao que a companheira lhe diz.
          A vida deles não começa aí. Começa lá mais atrás, há meio século, talvez, e aí estagnou. Como se fosse motor dum carro que se tivesse engasgado por fractura nos cabos de carbono que conduzem a energia do distribuidor à câmara de explosão certa, e deixado a apodrecer debaixo da tão querida e frondosa tília, também ela de tronco encarquilhado e centenário, que se ergue no canteiro, onde apenas se vai, de ora em vez, retirar-lhe as flores secas que sobre o tejadilho vão caindo, aproveitando-as para o tão delicioso chá que à noite, e à lareira, vai dar sabor ao amargo silêncio de ambos que lavra na tão amaríssima solidão das suas vidas. Tal como se faz aos livros de estimação que vão amarelecendo espremidos na estante, sacudindo-lhe o pó com o espanador de plumas para demorarem mais um pouco a amarelecer as cansadas folhas, de tão cansadas estarem por não serem manuseadas. Desse meio século, lá atrás, para a frente, foi apenas vegetar, foi apenas, é apenas deixar passar os dias dando hipótese ao tempo, que não chegou e tarda em chegar. Agora a hipótese de ser passou a mera experiência laboratorial, que nunca produziu resultado capaz de ser solução. Nunca foi antídoto para curar o mal que enferma, há muito, seus corpos: o mal da saturação, o mal da perda de interesse de um pelo outro.

          Noutra mesa sentada, já entrada nos setenta, de cabelos oxigenados penteados em piaçaba sobre a testa em abóbora, uma mulher tenta emprestar beleza ao corpo - neste caso ao rosto - que já não é mais do que uma máscara do amargo tempo, usando um qualquer batom que esfrega teimosamente, com mão trémula, nos lábios ressequidos e profundamente enrugados. Fixa continuamente o espelho que surripiou do fundo da sua avultada mala olhando, sorrateiramente, para todos os lados como se num gesto de cumplicidade com o acto envergonhado e comprometido de, com tal idade, se embelezar. Mala tão avultada que nela poderia trazer - e quem sabe se não traz -, todos os pertences necessários a disfarçar as rugas dum rosto que em tempos, já muito recuados, terá sido belo. A seu lado o companheiro, bem mais novo do que ela e de ar cavalheiresco, ausente do mundo e da mulher que parece não sentir próxima de si há muito tempo, vai-se empanturrando com avultada tosta mista e sumarenta caneta de puro malte. Entre as pernas a bengala, com o punho em castão marfim, desliza sob a mesa até aos pés da companheira que ela se apressa a empurrar para o sítio que lhe é devido.
          Não trocam palavra. O ritual da pintura acaba. Ela levanta-se, diz-lhe algo em voz baixa e, sem o fitar no rosto, sai... ele perscruta um lado e outro, certifica-se que ela lhe deu a segurança necessária e ripa de um telemóvel onde digita breves palavras. Talvez um "olá", um "como estás?", um "posso telefonar?", e liga. A cara dele, sisuda até então, amplia-se num sorriso alargado da boca até quase às orelhas, que lhe são longas, quase abanos. Do lado de lá está a razão de qualquer existência, bem diferente daquela que até ali se compunha ao rigor do espelho e do batom. E esquece, por curtos momentos, a idade, que a prisão dos seus dias de tédio não deve tardar em chegar dos lavabos.

          Portanto, os meus cálculos são estes, os de um observador atento: quando tudo parecer irremediavelmente perdido, quando no último momento sentir que estou a morrer, que está tudo acabado, que a minha vida passou repentinamente entre o ser e o não ser, fecho os olhos e idealizo-me em hipóteses de nada e gravo na consciência de que tudo, sendo apenas relâmpago, pode ser prenúncio de filme à beira dum capítulo por descrever. Tudo desfilará diante dele, até ser certeza absoluta, se em desapontamento se não transformar.

A poesia hoje - a valorização do particular, do circunstancial e do privado


A poesia hoje - a valorização do particular, do circunstancial e do privado [1]

 Assinado: Alvaro Giesta (para a obra, em edição, "quando as palavras são cardos")

«Enquanto a glória de Fernando Pessoa ia subindo todos os degraus, e os seus versos tornados pasto para toda a mediocridade universitária exibir um amor pela poesia que nunca teve, uma discreta aura iluminava a espaços Camilo Pessanha - e isso era um sortilégio suplementar. E havia ainda aquela vida sua vivida (ou antes: não vivida) exemplarmente à margem da impenitente e sentenciosa e sobranceira verborreia nacional, com o poeta apenas empenhado numa crítica da eternidade que era o seu caminhar para o silêncio, mais interessado pelos seus cães que pelos seus contemporâneos.»
Eugénio de Andrade in Os Afluentes do Silêncio (Camilo Pessanha, o Mestre)

À semelhança do interseccionismo, classificado por J(oão) C(orreia) de O(liveira) como «uma intoxicação da artificialidade», a escrita do "não-obvio" de alguns poetas de hoje - o hoje a que me refiro é o tempo dos últimos anos do século XX e primeiros do XXI -, é uma «tentativa» de «emocionalizar uma ideia» na busca de um espaço, não novo mas, que seja seu, só seu, criando artificialismos egocêntricos em que as abstractas ideias e divagações de «palavras carregadas de tanta excepção» se entrecruzam com o vago, a maior parte das vezes com coisa nenhuma, chocando pela falta de sentido estético e pelo repisar constante e monocórdico da mesma ideia que se perde em divagações, naquilo que nem sequer é tema. Falta-lhes o diferente, o tal "novo", ainda que simples, mas que seja arte, para que possa ser, à semelhança do interseccionismo, uma «demonstração brilhante de inteligência estética e de capacidade inovadora» ( Dic. da Lit. Port.). São divagações inócuas que deixam tão embevecidos, quanto perplexos, ao mesmo tempo, pelo não entendimento, os seus leitores e ouvintes que, embora ignorantes na interpretação do texto, que não percebem, porque de labirínticas frases-compostas se compõem tais escritos, envaidecem o(s) seu(s) autor(es) com efusivas palmas de parabéns. Contradição de pasmar... a pretensa sabedoria duns e a ignorância fatal, bem mal disfarçada, de outros!
Este modo de escrever, principalmente em poesia, centrado no ego e implodindo, necessariamente, em temas de circunstância tão mal cantados e repetidos e, pior que isso, mas por isso, também, tão artificialmente vulgarizados, não indicia coisa nenhuma senão ignorante endeusamento dos seus autores que se convencem, convencendo-os ou, pelo menos, fazendo-os crer de que perseguem uma qualquer nova época literária ou pseudoescola que dê cobertura àquela. Nada disso. Nada daqui nasce de novo porque nada, nesta escrita do culto do particular, se faz com sabedoria. Esta tendência não é arte. Para o ser, torna-se necessário desembaraçarem-se, os seus autores, de tudo o que é vago e plasticidade. Nada se faz sem sabedoria! 
Podia aqui citar alguns autores de textos, principalmente poéticos, nascidos e a medrar no alfobre dessa rede social chamada facebook (por onde também eu ando, aspirando a aprender) e publicados por uma teia de prestadores de serviços - ganho fácil para essas autointituladas "editoras"(!) - endeusando o que julgam que estão a endeusar, que delas (das obras) apenas se percebe a artificialidade do conteúdo no aglomerado, muitas vezes, de palavras inventadas colocadas no texto-poema sem qualquer critério e/ou sentido, mas fico-me, apenas, pela generalização do texto, sobre tantos dos que leio e só entendo sempre a mesma coisa - a repetição do mesmo tema particular e circunstancial que se vulgariza de tantas vezes repetido. Perde-se a POESIA: a forma mais nobre da escrita.
Quereria e gostaria, antes, de dizer desses poetas como Eugénio de Andrade escreveu de Teixeira de Pascoaes «magnífico e luminoso: espontâneo e simples como crianças, mas também terrível e acusador como um profeta do Velho Testamento», mas não posso. E não posso porque da maioria dos poetas que ora leio - àquela rede social me refiro e mesmo a muitos que proliferam nos escaparates e que se escapam a essa rede social - nenhuma presença, em seus escritos, inquieta, nada em seus poemas deixa os espíritos sequiosos por algo de novo, inquietos e desassossegados, muito pouco em seus escritos é inquietante, fracturante e incomoda em nome da verdade. Quase nenhum deles incomoda em seus versos, como o moscardo atormenta o asinino em dias de verão abrasador. Nenhum deles inquieta e desperta consciências adormecidas, porque se prefere que as mesmas continuem anestesiadas, entorpecidas com a cadência ritmada e cansativa dos «derrames líricos» ou com as metáforas tantas vezes incompreendidas, porque mal usadas no texto que pretendem complicar, como que a conferir-lhe propriedade exclusiva como se de cunho próprio se tratasse.
Atrevo-me a pensar deles, como Eugénio de Andrade dizia sobre Camilo «Preciso de me livrar de tudo o que nele me repele: o seu ódio ao corpo, os seus derrames líricos (...) a sua ambiguidade (...)» e acrescento eu: "o seu virar a cara aos problemas do mundo que desassossegam, que inquietam, que fazem reflectir e questionar nesta procura de respostas". «Se me livrar disto...», ficam-me tudo, menos escritores/poetas da língua e almas atormentadas capazes de escrever em nome da verdade.  É que, como dizia o grande escritor Eugénio de Andrade «Escrever é desobedecer» e a maioria dos poetas que me entram pelos olhos dentro vindos deste alfobre que o facebook criou, diz como Camilo «Escrever é obedecer».
E eu sou alérgico aos grossos títulos de poesia, especialmente antologias de temas múltiplos e desordenados,  espelhando excessos de lirismo decorativo e folclorizante, numa profusão obscura de cores semitonadas. Prefiro os livrinhos quase insignificantes, pelo número de páginas, mas com significado pela qualidade do conteúdo, ainda que sejam de uma escrita levada ao osso, «dissecada e dissecante» como em «Manual de Instintos Assassinos» do actual Eduardo Roseira, ou tivessem tido misteriosa e intelectual transparência como «Clepsidra» de Camilo Pessanha. Prefiro-os, assim, de lâmina cortante e afiada, aos namoros exibicionistas das metáforas e imagens para além do útil e que transborda em desnecessário: estes últimos dons de simpatia não me conseguem embruxar!
Devido a estes três sujeitos incómodos e subversivos: a proliferação dos maus poetas, dos maus leitores e dos editores oportunistas - a que eu chamo prestadores de serviços, embora essas editoras de vão-de-escada tal não queiram ser -, a eficácia da poesia, hoje, tornou-se completamente inócua, mesmo sobranceira à verborreia de poemas medíocres. A maioria do que se escreve em verso, hoje, são palavras de água morna sem pretensão a efervescência, sem a capacidade magistral de sugerir, de insinuar, de dizer "não",  incapazes de «coar o sarro» dos «derrames líricos» que, de tão repetidos, tornam banal esta forma mais nobre da escrita: a POESIA.
Os autores de tal poesia repetida, confusa e artificial, que intoxica de tanta artificialidade, em que o repetitivo cansa e causa enjoos com pretensão literária, parecem erguer a bandeira de qualquer coisa próxima dum sensacionalismo já tão longe no tempo! Já tão afastado! E, por isso mesmo, tão gasto. Pretendem criar sensações em quem os escuta e os lê, embevecidos, mesmo não percebendo nada do que está escrito. Nem uns, nem outros. Nem quem escreve, nem quem lê. Porque, se perguntarmos a tais autores de tal poesia de circunstância e sensacional, que se perde em palavras rebuscadas e depois, com recurso ao dicionário, traduzidas noutras de maior dificuldade de entendimento dando ao poema um sabor sem sabor, (des)valorizando-o como coisa sua abstracta e confusa, o que querem dizer com ela, a resposta é simples: a poesia não se explica, explica-se (o que é certo) e, a explicar-se, fica a critério de quem a lê (não menos verdadeiro).
Parece que o meu teorema ficou de pernas partidas pela dificuldade de demonstração para se tornar evidente. Mas não! O predicado da conclusão da premissa diz-me que a «intoxicação da artificialidade» continua válida: ou seja, para esses poetas (nascidos do e com o facebook), à semelhança dos do século passado, o que conta é a sensação. É despertar sensações com recurso à artificialidade. É despertar a mesma sensação que se repete - sempre a mesma sensação(!)- pela (in)sabedoria de despertar outras, ou porque estão socialmente bem colocados na vida e se esquecem dos que vivem no mundo da sombra, e têm medo de escrever outras inquietações pelo receio de perderem audiência, ou, então, desprezam simplesmente o despertar dessas outras inquietações que também merecem a escrita da denúncia, a palavra da recusa, a poesia do medo e da fuga ao medo, a poesia da ausência, a palavra da dificuldade em alcançar algo neste tempo desabitado, a poesia da falta... com palavras cruas e nuas, sem recurso a jogos malabarísticos de palavras de impossível entendimento.
Para esses poetas e escritores o que conta é criar malabaristicamente sensações sem intenção de serem sentidas, fazendo sentir mesmo que eles não sintam coisa nenhuma, mesmo que eles tenham a certeza de que o seu fingido sentir não é criar. Quase me atreveria a afirmar que, o que conta para eles é vender mais uns livritos dos que mandam imprimir por encomenda e não um trabalho sério em prol do social e, até, de uma carreira literária.
Para esses poetas, à semelhança dos intersecionistas «a sensação é a única realidade». Para eles e por eles, despreze-se o real, mesmo sabendo-se da decomposição da sociedade, da destruição dos verdadeiros valores morais e sociais do mundo em desassossego, em inquietação, em revolta pelo que vivemos. Para eles, o importante é não nos preocuparmos com a inquietação da tentativa de resposta nesta ânsia de busca e de procura: isso é um sortilégio suplementar à margem da sensação e do platónico.
O que importa, a esses escritores/poetas, é o choradinho e o chorrilho em trocadilhos de palavras inócuas, ao invés de se debruçarem sobre a inquietude social dramática em que o ser humano vive em interrogações constantes sobre o presente e o devir, porque não é esta inquietação que os faz crescer nos seus círculos de amigos que lhes compram os (maus) livros que mandam editar, mesmo sabendo que jamais alcançarão foros de literariedade!



[1] artigo publicado na revista BIRD  de 11 de Janeiro de 2016

23/10/18

PREFÁCIO de O SERENO FLUIR DAS COISAS


“Ser uma coisa evidente é ficar reduzido a quase nada”

Esta frase, do poeta dramaturgo Teixeira de Pascoais, explica em poucas palavras os conceitos que Alvaro Giesta aplica na arte da escrita. Nada do que sai de sua pena fica restrito ao evidente. Há, quase sempre, algo mais a ser entendido, para lá da palavra escrita. Há, quase sempre, matéria que, não sendo secundária (bem pelo contrário), merece tanta ou mais atenção. Há, quase sempre, algo que, fazendo sombra à evidência, nos obriga a ver para lá do óbvio e a decifrar entre linhas.
Copyright da imagem Jose Fernando Delgado Mendonça
E o título da obra que temos em mãos é o exemplo perfeito. O SERENO FLUIR DAS COISAS, na sua fórmula evidente, ficaria reduzido ao simples e básico nada. No entanto, o poeta, enquanto mestre conhecedor das ferramentas que depuram a poesia e sabedor daquilo que se auto-exige, usou-as para que o conteúdo contrariasse o título, transformando-o numa ironia: o interior deste livro é tudo menos sereno, direi mesmo inquietante. Em contraponto, porquanto a arte poética não tem linearidade, o título desta obra também pode ser entendido como uma reflexão pela naturalidade com que devemos encarar as coisas que acontecem, seja na concepção da obra, seja naquilo que, afinal, é a vida de todos nós. As coisas acontecem porque tem de ser assim e devem ser entendidas como inevitabilidades da condição humana.
Alvaro Giesta já demonstrou, em diversas ocasiões, o quanto domina a arte do subliminar e essa capacidade é fruto de um trabalho apurado, consciente e, acima de tudo, permanente. Afinal, é esse rigor, no uso da linguagem simples, que se exige ao poeta. Se assim não for sobra apenas o banal. Mas não se confunda o banal com o simples. Existem diferenças abismais entre estes dois conceitos. Entenda-se o banal como algo frívolo, vulgar, o tal nada a que se referia Pascoais. O simples, ou a simplicidade na escrita, é algo bem mais complicado de se atingir mas uma vez alcançado pode ser sublime por não ser evidente.
Disse Herberto Helder:
“Escreve-se um poema devido à suspeita de que enquanto o escrevemos algo vai acontecer, uma coisa formidável, algo que nos transformará, que transformará tudo”
Alvaro Giesta labora a sua escrita por acreditar que, enquanto escreve, as transformações acontecem. E fá-lo para, no mínimo, transformar o banal em algo formidável, porque a estética também diz muito sobre o trabalho do poeta.
Esta simbiose (trabalho/estética), tão querida ao poeta, acaba por ser a imagem de marca da sua obra mas não explica tudo porquanto a primeira é apenas o meio para alcançar a segunda. E se sobre a estética cada um pode interpretar a seu bel-prazer e entendimento, sobre o trabalho não há margem para duvidar que o poeta se escreve a cada verso.
Neste sentido, e porque não existe uma só forma de dissertar sobre a obra de Alvaro Giesta, não resisto a fazer um paralelismo, já tão gasto como o tempo, entre a escrita poética e a escultura. Ao contrário de muitos contemporâneos que dizem esculpir o poema da matéria bruta, desbastando aqui e limando acolá, Alvaro Giesta usa o texto como matéria prima e, com o cinzel de poeta, vai retirando os excessos que o envolvem, até ficar apenas o que sempre existiu: o poema. Dito isto, é fácil deduzir que a poesia está dentro do poeta e ele limita-se a colocá-la cá fora somente quando entende que o poema atingiu a maturidade necessária para se dar a conhecer – o estado de quase perfeição.
“Os homens são como as obras de arte: é preciso que se não entenda tudo delas duma só vez”
Esta frase de Miguel Torga ajuda-nos a fundir e resumir tudo o que dissertei até aqui. A mestria de Alvaro Giesta no uso da linguagem simples, através do burilamento do poema, e a arte de transformar essa simplicidade em algo formidável mas nada evidente, para que cada leitor, a cada nova leitura, vá descobrindo ou decifrando o poema e o poeta. Neste contexto, faço um parêntesis e ouso escrever que O SERENO FLUIR DAS COISAS é a menos hermética das obras de Alvaro Giesta mas, em contrapartida, talvez seja a que mais nos fala do homem que dá corpo ao poeta e assim o vamos conhecendo pouco a pouco.
Sintetizando, e fazendo uso de uma discussão tão antiga quanto a poesia, creio que a forma mais adequada, para definir a poética deste autor, é considerar que, aquilo que para muitos é inspiração/criatividade, para Alvaro Giesta é transpiração/trabalho, porque o ofício de poeta o exige e a demanda pela perfeição também. Ou como disse Fernando Pessoa: “Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter”.

Emanuel Lomelino

Outubro de 2018



Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...