13/01/20

JUÍZOS NA NOITE, de António MR Martins



É usual, no lançamento duma obra que acaba de nascer, os leitores estarem na expectativa de ouvir falar do livro, para os ajudarem na decisão da compra ou da compreensão da obra; é também essa a função do prefácio, do antelóquio, do exórdio, dos prolegómenos, chame-se o que se chamar àquele texto que precede a obra do autor no sentido de a apresentar ao leitor; não de a fazer compreender, porque isso é tarefa do leitor, mas de dizer ao leitor nas linhas do prefácio, do que fala o autor. Coisa que nem sempre acontece: nem nos prefácios, menos ainda nas apresentações das obras em lançamento.
Nos prefácios, há prefaciadores que escrevem tudo à volta de si com o propósito vaidoso de se mostrarem, que até se esquecem do objecto em mãos - o livro sobre o qual nada dizem no prefácio. Em muitos lançamentos de obras, fala o apresentador de si e nos dois últimos minutos apenas dá o abraço de parabéns ao amigo autor. Da obra, nada disse. Como há outros lançamentos em que, apesar da boa vontade do apresentador em falar da obra, já não vale a pena dela dizer algo, porque tudo já foi dito pelos amigos do autor nas duas horas precedentes, com leituras de trechos e de poemas e com uma multiplicidade de adjetivações sobre as amizades com o autor. Não será o caso vertente.
Falemos da obra JUÍZOS NA NOITE de António MR Martins, para que o leitor saiba que o livro que vai levar para casa não é um "barrete" mas uma obra com verdadeiro valor literário. Mas, antes, esclareço: a minha relação com o texto criativo de Martins é absolutamente isenta de afectividade. E, embora o que escrevi em nada se pareça com um trabalho crítico à obra, vou manter-me, como se o fosse, no plano restrito da relação com o texto.
Duas consideraçoes impõem-se, contudo, para justificar o conceito de coisa literária:
1. O que são obras literárias? São criações esteticamente construídas e com utilização de diversos recursos estilísticos, que transmitem intenções comunicativas do autor para com o leitor. Abro um parentese para dizer que não é preciso ir-se à faculdade de letras para aprender sobre poesia; mesmo nascendo-se sem o dom (contrariando o que muitos dizem que "não é poeta quem quer, mas quem nasce poeta"), sublinho, mesmo nascendo-se sem o dom, pode aprender-se sobre poesia... mas é preciso ler-se, ler-se muito - poesia, literatura e ensaios.
2. O que são tertúlias literárias?  São reuniões culturais com vista à discussão e troca de conhecimentos relativos à literatura e obras literárias. Outro parentese - não são, apenas, a simples leitura de textos do autor ou do amigo do autor.
Portanto, uma criação literária, seja obra ou tertúlia, não é uma forma simples de contar um facto ou escrever um poema num arrazoado de palavras inócuas, como não é a simples leitura de poemas do poeta ou de amigos seus. É muito mais do que isso.
E antes de falarmos de JUÍZOS NA NOITE, construído num tipo de verso a que os seus teorizadores no princípio do modernismo chamaram de verso livre, assim o considerando porque negava a rima, desprezava o pentâmetro jâmbico e cada poeta, segundo esse conceito, deveria inventar a sua própria forma cada vez que compunha o poema, deveria ser escrito em total liberdade desprezando a arte demonstrando desprezo pelas anteriores formas poéticas, vamos falar um pouco neste tipo de verso contemporâneo para enquadrarmos o verso de Martins.
Em todas as épocas, em todas as culturas, poeta era aquele que praticava a "arte" de submeter as palavras a uma série de convenções que as transformava em poesia - a rima, a métrica, a estrutura, o ritmo. Verso livre era, então, segundo esses teorizadores, aquele que não obedecia a este padrão métrico regular, seria então qualquer trecho de prosa dividido arbitrariamente em linhas a imitar versos, seria todo aquele trecho construído em total liberdade, sem arte, porque segundo o conceito dos teorizadores do verso livre, a arte era portadora de cadeias que impediam a liberdade poética. Porém, isso não é assim, ainda que muitos continuem a pensar que assim é. O verso livre - o verso contemporâneo - tem que ter de comum aquilo que todas as formas poéticas têm: a utilização consciente do ritmo e aqui ritmo entende-se como uma figura de periodicidade, em analogia com a harmonia musical. Mas o ritmo da poesia não tem nada a ver com a harmonia da música, nem sequer com a prosa, se bem que o ritmo não seja exclusivo da poesia porque em toda a linguagem verbal há ritmo (eu, ao ler este texto estou a imprimir ritmo à leitura). Estará, até, mais próxima da poesia a linguagem verbal que a própria prosa. O ritmo da poesia é diferente e único, é singular porque está articulado com o essencial do significado que a poesia deve ter sempre: a imagem. Porque, como nos diz Paz em El Arco e la Lyra "ritmo e imagem são inseparáveis" na construção do poema. Seja ele rimado ou branco, seja ele metrificado ou (verso) livre. A linguagem verbal tem limites; mas, quando damos à palavra o sentido que ela oculta, atribuímos-lhe o valor poético que a palavra tem: a imagem é o essencial da sua significação;  aliando-a ao ritmo, temos o poema que vai de encontro à poesia. Se não houver ritmo não há poema - há prosa poética, diz Paz. E diz ainda, o ritmo, aliado à imagem, é o pulsar do sangue que circula nas veias do poema. É movimento; é emoção; é vida; é poesia. Tal como para o artista, das mais variadas expressões de arte, o ritmo expressa movimento. Fernando Pessoa dizia que "A poesia é a emoção expressa em ritmo através do pensamento, como a música é essa mesma expressão, mas directa, sem o intermédio da ideia».
Recordo-vos que defendido por uns - os revolucionadores da poesia com o argumento da liberdade poética, mesmo sem arte - atacado por outros, os que dizem que o verso livre não existe por falta de êxito e que só existe pela negativa, como defende o poeta e crítico literário T.S. Elliot, há outros, como João Cabral Neto - e aqui vale a pena referir esta inconsistência do crítico, pela mudança radical da ideia acerca do verso livre - que antes o defendeu (em 1953) em entrevista concedida a Vinicius de Maraes com estas palavras "(o verso livre) é fabuloso, e abrir mão da aquisição da poesia moderna será banir a poesia do mundo moderno"; porém, 30 anos depois (em 1988), depois de ver o mau uso do verso livre entre os poetas que apareciam como formigas, (como lêndeas, agora neste alfobre do facebook, digo eu), afirma em entrevista dada a Mário César Carvalho: "uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre; antes, trabalhava-se o texto, agora desde o momento em que existe o verso livre todo o mundo acha que descrever a sua dor de corno é poema". O que pretendia dizer o poeta? Coisa que é válida ora e sempre - que mesmo o verso livre tem que ser trabalhado com arte retirando, dele, o inútil.
É aqui que Martins marca pontos em relação a muito pretenso verso contemporâneo ou livre, chamemos-lhe por este nome, que por aí prolifera. Martins edificou JUÍZOS NA NOITE com uma construção rítmica excelsa para que se afaste da prosa, quebrando o verso no sítio certo da cesura, para que o hemistíquio seguinte dê a feição de um novo verso, imprimindo-lhe, assim, o tal ritmo, que deve ser isto a essência do chamado verso livre. E mais: aliou-o à imagem, essa representação simbólica que dá a possibilidade de mentalmente reconstruirmos a realidade, usando o símbolo, a sublimação mais elevada do pensamento expresso em palavras. Então, olhando às características com que o autor construiu, em verso livre  esta obra, pergunto: 

Há ou não há arte no verso livre? Se há arte, cai então por terra o argumento dos teorizadores que dizem que o verso livre feito com arte não é livre, porque a arte agrilhoa o pensamento. Nada mais falso e os teorizadores do verso livre estavam redondamente enganados - a "arte" não agrilhoa o pensamento, não inibe de pensar, a arte obriga a pensar; "a arte é um meio para a reflexão", "a arte ensina a pensar", "a arte substitui o pensamento na tarefa da interpretação do mundo". O que esses teorizadores do verso livre queriam, era anarquismo no verso. E o anarquismo busca sempre o fim de qualquer coisa. E quanto à rima e ao esquema que não tem, efectivamente, o verso livre, diz-nos Eliot: "o verso livre não se define pela ausência de rima ou ausência de esquema, pois há formas de verso sem rima (é o caso do verso branco) e sem esquema, nem se define pela ausência de metro, visto que até o pior verso pode ser escandido". Por isso, diz-nos ele "a divisão entre Verso Conservador e verso livre não existe, porque há apenas versos de boa qualidade, versos de má qualidade e o caos".

É esta a característica do poeta Martins - fazer a coisa poética com qualidade e arte e eu testemunho-o porque o conheci na execução do soneto, a forma poética por excelência. Ele é como aquele fotógrafo profissional que, ao fotografar a modelo retira tudo o que é acessório na fotografia: o banco, o animal, o lixo, o penico com a planta a tentar embelezar a entrada da porta... assim procede o autor na poesia deste livro. A temática desta obra não é una e vou chamar-vos a   atenção apenas para dois ou três tópicos, aqueles que me prenderam mais a retina. Na obra há amor e onde há amor há sonho; há tormentos, também, e desassossego e, se há isto, há na proposta do autor o apelo ao sumo-Bem; há a preocupação do Ser pelo Outro, mas também a preocupação desassossegada do Eu, na tentativa do encontro consigo mesmo.
"Elícito ao teu olhar / (...) / me reduzi à ínfima partícula do ser" (logo no 2.º poema) - Elícito: reparem nesta palavra vernácula que significa "sentimento produzido pela alma, atraído por ela, sedução benévola direccionada para a prática incondicional do Bem ® Tomás de Aquino dizia que "o apetite é elícito quando tende para a apreensão do Bem". Mas há limites a condicionar a produção do Bem, e o poeta alerta-nos disso: as mentiras acumuladas que medram no "espaço terréu"; palavra latina muito bem aproveitada pelo autor, terréu - o espaço terrestre, a terra com estas ervas daninhas, a incompreensão da sociedade que vive arredia da palavra "amor".
Aqui é que está o valor literário da coisa literária - pelo ritmo aliado à imagem, um e outro ao encontro da poesia. Na obra, pela perícia no uso da palavra, aquilo a que eu chamo "o profano ofício das palavras", brilha a descrição das emoções pelo fogo que põe nas imagens, nos sentires, nos olhares das falas, porque as falas também veem, e os sorrisos também têm sabores... Neste conflito, nesta dualidade entre o sentimento da prática do Bem produzido pela alma e a mancha da sociedade que produz as ervas daninhas, traça o autor uma esquadria poética (nome dado a um poema seu) onde endireita e propõe o traço do caminho recto a seguir - é o sonho poético.
Na obra há a memória - a lembrança do tempo passado, a saudade e o ensejo do tempo futuro. Sim, há saudade, também - o jogo da palavra vento que promete trazer ao poeta as vivências esquecidas, não aquelas que se guardam na memória, porque essas são perenes e não esquecem nunca, não morrem nunca, mas aquelas que, pensadas esquecidas, afinal estavam apenas latentes na memória, ocultas por leve névoa. Há o passado mas, também há a esperança radiosa de que o futuro será sempre "a surpresa de cada amanhecer", diz-nos o poeta em Renascer na simplicidade de viver.
Na obra há o tempo - o tempo é como um rio, lembra-nos Gustavo Ascher: "nunca podemos tocar na mesma água do rio duas vezes"; a certeza de que, como dizia o filósofo Heráclito "a mesma água nunca passa duas vezes por baixo da mesma ponte". Diz-nos Martins "não mais seremos como fomos"; devemos aproveitar cada minuto da vida e, por isso, procurar boas aparências e pessoas perfeitas é tempo perdido porque elas não existem ® o poeta diz-nos isso mesmo em Renascer Impróprio - que o sentir é fugaz, quando o olhar tem a idade da diferença e o sangue não nasce com a pujança necessária, quiçá a pujança dos outros tempos. Em palavras suas: "Por ora / tudo em ti / reflecte estagnação / e o sangue / já não te nasce / com a pujança necessária."
Na obra, também há o corpo - o corpo aliado indubitavelmente ao amor e ao tempo: um corpo de raízes abre-se como o grito na vastidão do tempo. Sob o cabelo feminino o arrepio e o ventre ávido pulsam sob a pele, como a febre nos hospícios cresce no corpo à espera de novos remédios por inventar. Assim rodopia no corpo a fome do prazer reinventado; abre-se à vastidão dos dias devorados pelas garras ardentes do prazer; mas... depois é a falência do corpo: (nas palavras do poeta) "A falência das forças / apodera-se do corpo e o olhar mortiço / parece visionar // um horizonte de inexistências./ (...) // A matéria torna-se pó / na cal do contínuo infortúnio."
Há, em JUÍZOS NA NOITE, fortes juízos do Eu, sobre o Eu enquanto Ser, do Ser-Outro, do sempre aliado tempo Passado-Presente-Futuro, nesta poesia reflexiva, às vezes até metafísica, em que só o silêncio da noite ou o isolamento necessário dos ruídos do mundo, faz medrar a produção de tais juízos poéticos. E, para terminar, há outras meditações sobre a palavra - na certeza do Verbo, como o autor lhe chama: "O verbo, será sempre o verbo, / mas já não tem a soberba determinação / de outrora."
Meditando sobre esta certeza da incerteza do Verbo, para que nos chama a atenção o poeta: "O verbo, será sempre o verbo, / mas já não tem a soberba determinação / de outrora" - vem-me à memória o que, não muito longe no tempo, disse, com certo pessimismo, em entrevista  escrita no Jornal da Biblioteca Pública de Paraná e deixado exarado em livro seu de ensaios, a mui reputada e renomada professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Leyla Perrone-Moisés, autora de livros de ensaio como Inútil Poesia e Altas Literaturas, sobre a perda da relevância da literatura no meio cultural e de como grandes autores do nosso tempo lutam contra esse cancro, que é o cenário do fim da literatura. E, afirmou, à pergunta do entrevistador:

"A senhora escreve que não é possível estudar literatura sem passar pelos textos clássicos.(...)"
Responde a Mestra:
"Para estudar literatura, é necessário partir dos clássicos. O mesmo acontece no campo científico. Isaac Newton dizia: «Se vi mais longe foi por estar sobre ombros de gigantes». Os professores de literatura podem e devem propor textos contemporâneos em suas aulas, pois sua temática é mais próxima da vivência dos alunos. Mas o bom professor, assim como o bom escritor contemporâneo, tem de conhecer os 'gigantes' da história literária, porque estes não apenas criaram as bases da literatura moderna e contemporânea, mas são sempre atuais quanto às grandes questões humanas."

Permito-me finalizar com a leitura do "Mais Belo Poema" desta obra:
"Quando te li, / a primeira vez, / foi em verso.  // Percorri teu corpo / com o sentido olhar da palavra / e com ela saboreei / os mais apaladados pretextos. // Carente do desejo de ler-te, / em definitivo, / te vislumbrei, interiorizando-te, / da cabeça aos pés. // Depois... / te beijei, / intensamente, / tocando quase todos os teus caminhos. // Então, / te senti, / finalmente, / poema!...". E regresso, em ponto final, àquilo que atrás enunciei sobre o ofício das palavras, com dois versos deixados na minha futura obra GRAVITAÇÕES-O Profano Ofício das palavras, e aqui em homenagem a Juízos na Noite: "que mistério este / o do nascimento da palavra!..."
29/Out/2019
Alvaro Giesta
Poeta e Coordenador Literário
Imagem da divulgação da obra:
In-Finita (Acessoria Literária)

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...