25/02/19

NOS DEDOS AS PALAVRAS - a obra de Ana P de Madureira




A poesia de Ana P de Madureira é marcadamente feminina. Minimalista e contida nas expressões que enformam o verso. Torrencial pela forma com que as palavras nele agem entre si, pondo no verso todo o ênfase. Às vezes numa linguagem quase conceptual. De uma engenhosa habilidade, apurada nos signos com que ergue a obra, são convite à aprendizagem de quem a lê. Desprezo total pelos recursos prosódicos que conferem ao texto ritmo, entoação e pausa. A estrutura vérsica com que Madureira veste o poema desprezando a pontuação, vem provar que não há limites impositivos para imprimir melodia ao verso. Versos curtos mas acutilantes, como que fragmentados, são o grito do prazer, o grito de dor, também, são os seus estados nus, de alma nua, arrancados à floresta dos segredos, sem medo de dizer. Mostra-nos uma poesia virginal preenchida de sensualismo na pura clareira dos sentidos ¾ entenda-se, aqui, o "virginal" no sentido da poesia pura.

Ana P de Madureira joga com as palavras com sábia maestria; digamos que, nesse jogo sensual, usa um flirt dinâmico, ao mesmo tempo tornado um só "corpo e verso", na narração poética intimista, sensual, às vezes quase mítica. Nesta lide sensual das palavras com as quais a poeta respira, não procura apenas o mítico corpo para se afundar nos prazeres que de si colhe e dele há-de beber mas "exige o amor"; e ela diz "quero o suor / em que o amor / é poro poço"  ¾ é "poro", o amor é aquilo que me faz respirar mas também é "poço" onde ele me faz mergulhar e afundar para o prazer ¾ "e quero a fúria terna do olhar / em que o amor / namora a vontade / nesse despir de alma / que se afunda no corpo / quero o amor até que os mares / se espumem unos / na torrência que os levita". Aqui está a natureza poética de Madureira na voz do mar do Algarve ¾ o azul da bonança que se levanta nas ondas sensuais de um espírito que se mostra rebelde pela ousadia da sua palavra poética, mas onde o sentimento e a sensualidade temperamental são sãos e racionais: "o que são as palavras / senão anjos que me tomam / alquimias de auroras / e no longo do cabelo a libido / que caminha (...) / para lá do alto das vagas"(?) A poética de Madureira é como este amor que ela nos traz nos versos ¾ "fogo / labaredas das mil palavras / silêncio das manhã escondidas / vozes não ditas / guardadas nos mistérios" do corpo. De sabor sensual é, sem dúvida, a poética de Ana P de Madureira. Mas se há erotismo nesta poética, ele não é o ousado, menos ainda a perversão.
Convém, aqui e numa palavra, dizer que erotismo é uma pulsão, definida por alguns como angustiante;  por mim, aceite como corajosa e direccionada para o desconhecido. E nesta poética, o desconhecido será a viagem pelo corpo do outro e/ou ao corpo do outro a partir do corpo da poeta; possivelmente uma viagem sem retorno como aquela em que nos lançámos, através da palavra poética, em busca do desejado, muitas vezes não experienciado ou, se experienciado, não conseguido. É a imaginação gratificante a trabalhar. Logo, e no meu entendimento da poética de Ana P de Madureira, este erotismo suave ¾ prefiro chamar-lhe assim ¾ vejo-o como a fusão com o outro e com o universo, que desemboca neste êxtase mítico-sensual, e nunca com a mera fruição da sexualidade. Mas também existe alguma sexualidade, algum desejo refreado, no texto de Madureira.
Cabe-nos aqui perguntar: até que ponto o discurso poético erótico-sensual de Madureira é real? Nós sabemos que toda a obra literária tem suporte no real. E muito do que existe em poética, também. Porque são as mundividências pessoais do/a autor/a que hão de formar a ordenação da matéria necessária para a sua produção literária. E o/a autor/a há de trabalhar a sua matéria em obediência aos signos por si criados ¾ "signos" são aquilo que confere valor literário à obra. Cabe-nos a nós, leitores atentos ¾ como se fossemos críticos ¾ decifrar esses sinais, vê-los, lê-los e interpretá-los. Porque toda a obra poética aceita, sem hesitar, novos olhares interpretativos. Toda a obra poética permite ao leitor ¾ ao bom leitor ¾ ler e tirar dessa leitura especulativa novas interpretações, interpretações até diferentes daquelas que o autor desenhou no seu acto de criar.

E chegado àquilo que deve ser o bom leitor, cito Luís Carmelo, poeta, ensaísta e crítico, nas palavras deixadas em entrevista, em 2017, a Luís Ganhão: «O leitor deve estar sempre de pé atrás, deve fazer o papel daquela pessoa que está a ser seduzida, mas que recusa a sedução.» Isto compreende-se na medida em que é esta a posição a assumir, como crítica, pelo leitor que o faz ser o tal "bom leitor". E a pergunta impõe-se ¾ quem é este bom leitor? Respondo ¾ é o melhor crítico que o poeta, que o escritor tem. É o leitor inteligente e criativo que não se quer ver diminuído enquanto bom leitor. Não será, de certeza, aquele que aceita o produto que lhe impinge o autor, porque o conhece e lho compra a troco de palmadinhas nas costas. Esse, é um leitor menos atento, menos inteligente que não se quer dar ao trabalho de pensar para criticar, ou que não critica porque receia não cair nas graças do autor. Muitas vezes nem lê a obra que compra; limita-se a elogiar sem ler; elogia pela amizade e esquece-se da função de "bom leitor" ¾ aquele que deve criticar para fazer crescer o autor.

Mas, tratando particularmente da nossa poetisa... a sua poesia é brilhante, às vezes, quase visionária; mostra-nos que o corpo animal e a sensualidade poética são o mesmo grito ¾ comungam o mesmo pão e bebem, da mesma taça, o mesmo vinho.
Torrencial é esta "alquimia das auroras" onde Nos Dedos as Palavras o "sol ardente / chama o mar" e no "fervilhar do sangue" e na "força dos vendavais" os corpos "peregrinos de mistérios" se unem "na intimidade do tempo" como a força das tempestades ¾ é como se tsunami fosse cada verso num torrencial de ondas controláveis, E, "controláveis", porque há ternura e veemência nas suas palavras ¾ são como brasa que perene arde com a fúria do querer e da vontade de ter e possuir.
Nua e "NUA", sempre na clareza do verso que se ergue curto e expande forte como a abertura, para o rumo, na clareira da floresta. Podem chamar-lhe poesia complexa, poesia sinestética, ou mesmo poesia visionária nesta combinação de campos semânticos em jogos de palavras ¾ eu chamo-lhe, sobretudo, poesia sensual diferente do que comumente nos mostram a maioria dos poetas portugueses que ao tema se entregam.
O corpo feminino está em comunhão afável com a natureza, aquela que lhe é mais próxima: o mar do Algarve. O suor, a "língua silenciosa", a pele quente "na inquietude do dentro", a "carne fogo" parece enxertada do "frémito das águas" azuis cristalinas do mar. A poética de Madureira é aquilo a que podemos chamar uma poesia corporal ¾ o corpo domina a palavra e esta subjuga-se-lhe com doçura mas firmeza, intimista, mística e profunda, num jogo de batalhas e flirtes entre sinfonias, quase celestiais, e cataratas florescentes, como que iluminadas por mágicos e multicolores arco-íris.
Ana P de Madureira é o nascimento e a erupção da e na palavra que habita o espaço em branco entre o céu e a terra, como se fosse a "placenta das palavras proibidas" e "a ternura de quem deu à luz um filho", ou vinda das profundidades da terra se expande em lava antes de ao seio da terra retornar: "filmarei / cada milímetro da morte / com a força sinestésica / que o corpo comporta" para depois "caminhar o caminho / por onde nada dorme" porque "se o cansaço partiu / e as pálpebras já não tombam // agora é a terra / que me viaja e sonha / enquanto com ela / vou".

O que há a dizer da poética deste livro de Ana P de Madureira, não se reduz a duas magras folhas de papel preenchidas a um espaço ¾ ela é, no espaço e no tempo, não apenas pele no antes e carne no depois da palavra expressa, mas, no durante, é um repetir de ondas que se refrescam na braveza do mar alto da imaginação da poeta e regressam, depois, reproduzindo-se no vaivém das marés de imagens que lhe florescem na mente, para frutificarem a cada chegada à praia, num sempre verso novo para um sempre refulgente poema, a farejar o vento num crescendo febril a desvendar mistérios em cada palavra e onde cada palavra se interroga no desvendar dum tempo novo.

© Alvaro Giesta, Dezembro de 2018

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