29/07/20

PARA ALÉM DAS PALAVRAS


(uma crítica à poética de José Baião)
texto de Alvaro Giesta

Introdução:

Sei que há por aí poetas que não gostam que se fale e que se diga poesia e sobre poesia de poetas outros, ainda vivos entre nós ou já passados ao eterno, e preferem que seja a sua poesia a dominar o panorama poético presente e futuro. Puro egoísmo ou absoluta ignorância?
 O que leva a interrogar (-me): como é que eu posso saber, como é que eu posso demonstrar saber, se nunca li nada  ou muito pouco  para além de mim, para além daquilo que eu próprio escrevo? Como é que eu posso dizer que o que escrevo é bom, isto é, tem valor  para além do restrito valor que os amigos atribuem às minhas obras, que muitas vezes nem leem e apenas conhecem pela rama nesse alfobre de poetas facebokeanos que me classificam apenas com curtos adjectivos de cortesia  como é que eu me posso afirmar literariamente apenas com base nos elogios do momento, como é que eu me posso avaliar pelo que sou ou deixo de ser, se eu não tenho, como suporte, em termos comparativos, o conhecimento da escrita dos meus pares? Isto para não falar na crítica literária... assunto melindroso pela falta de honestidade e objectividade dos críticos actuais que funcionam em compadrio com editoras, com certos autores e com certas campanhas de atribuição de prémios literários. Puro mercantilismo. Salvo raras e honrosas excepções, não se faz crítica, aquela que disseca, analisa, pormenoriza, caracteriza, entende, estabelece paradigmas e destila ensinamentos.
Quanto à poética em questão  aquela aqui em análise , atrevo-me a perguntar(-me) a mim mesmo: Como poderia eu falar do Poeta José Baião Santos se não me tivesse interessado por ler de si  ainda que muito pouco , para dele dizer com a propriedade que me confere o meu ponto de vista?!

Sobre o poeta:

Eis a razão da pequena nota de abertura àquilo que vou dizer da poesia do poeta em apreço. Falemos agora de poesia, no geral (apenas um ou dois minutos) para depois enquadrarmos este autor. Nos estudos essenciais para a Poesia e Poema dizia-nos Octávio Paz (e lá voltamos nós aos poetas que já passaram ao eterno para indisposição daqueles que só conhecem, e nalguns casos mal, poetas vivos,  mas que, no dizer do Poeta José Duro  outro que há muito nos deixou  nos dois últimos versos do seu último poema inserto no livro FEL «o poeta nunca morre embora seja agreste / a sua inspiração e tristes os seus versos», sublinho, dizia-nos o poeta chileno Paz, no seu longo ensaio que lhe valeu o Nobel da Literatura em 1990 «A poesia é conhecimento, é um exercício espiritual, é um método de libertação interior; a poesia revela este mundo; cria outro. A poesia é pão dos eleitos; é inspiração e transpiração. É súplica ao vazio, é diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e desespero. É oração, é epifania, é sublimação... é arte de falar.» E eu acrescento: "é arte de escrever em forma superior." Muitas outras qualificações poderiam aqui ser referidas, repetindo Paz ou outros poetas a quem a fama aureolou com palma sobre a cabeça, para definir a indefinível forma superior da escrita  a poesia.
Com muita dificuldade, não de entendimento dos poemas lidos do poeta José Baião em "Poema Sobrevivente", "As casas", "A Linha de Fronteira", "Dança Ritual", "MOMENTANEAmente" e muitos outros das pesquisas feitas  que, diga-se em abono da verdade, não são poemas simples de entender, pela exuberância do verso e do verbo no uso que faz de sábias palavras  mas dificuldade, sim, da escolha, deixo aqui pequenos excertos em obediência ao tempo que me é dado para a prelação.
O "Poema Sobrevivente", como diz o autor «sobressai nos antípodas da retórica corrente o mito da liberdade». Eu digo mais: neste fenómeno da escrita de José Baião Santos, onde provavelmente o poeta nunca quis mais do que fazer acontecer a palavra poética, sem resistência e sob a forma do texto arbitrariamente designado por "Verso Livre", facilmente se depreende  sem a necessidade de ser grande especialista na matéria  de que este projecto (aliás, toda a poesia do poeta que me foi dado conhecer) tem absoluto substracto literário, ainda que o poeta, pela sua humildade e simples modéstia, sem vaidade, nos possa dizer que está longe de si essa intenção. Deliciemo-nos com este poema em que o fenómeno poético, criado pela organização de imagens em associações criativas, dão o essencial significado àquilo que a poesia precisa para tal ser: ritmo e imagem  inseparáveis no articulado dos poemas de José Baião.

«Tu és a agua
 Eu sou o ventre das algas
 Enquanto estivermos a sorrir a máquina eólica vai pulverizando o linho fiado
nas espadas de ébano
Os líquenes        e a dor
Beijam a terra com subterrâneos de casas        e pele envelhecida pelo fogo
Os insectos sobrevoam navios
Dizias-me tu, ontem
Que a guerra só destrói os crânios das árvores,
Deixando intactos os diospiros da morte
Enforcados nos ramos do vento

Esplêndida ideia para os homens:
- Um dilúvio, em vez da deflagração de um violino num casulo de comédia
(...)

O peso e o lume das palavras
Repartem entre si
O espaço sideral        Sulcado de moinhos de chuva
Que se eleva acima
Do ódio e da verdade

Aquele corpo ali
Que foge entre as ameias do mar
Esconde no sexo
Anos de morte e solidão

As aves que voam na sua direcção
São os anjos do pudor
Capazes de ferir um coração sentado nas pétalas do deserto

Pedem-me que me cale
Que ignore a fúria da lealdade
(...)

Querem-me inerte, anémona em vez de livro
Para que se oiça o véu da cobardia
A crisálida azul onde guardavas as joias e os troféus
(...)

O que vocês ambicionam
- confessem lá, ó gigantes do nada! ­
É a perpétua rendição dos desejos
Onde eu me refazia das anestesias da solidão há muitos milhões de anos
Deitado a olhar os segredos
Da neblina»

Parece um poema imprevisto, não é?! Pois a poesia de José Baião não deriva, nem do assunto tratado, nem da forma adoptada  aliás, ele é mestre do verso longo e do extenso poema do verso livre a lembrar Walt Whitman, que o introduziu na América, e continuado por Pessoa e outros que só interessaria aqui referir com mais profundidade se isto fosse ensaio ou aula de literatura para que não estou habilitado academicamente. Mas não é: é apenas uma breve homenagem ao poeta José Baião Santos e, por isso, dele falo.
O poema atrás referido é um pequeno extracto do longo "Poema Sobrevivente" escrito por fragmentos  vinte e um longos fragmentos  de longos versos. Parece ser coisa simples de fazer: escrever um poema que muitas vezes forma uma só obra, por fragmentos e sem sujeição às cadeias da pontuação, especialmente ao ponto final, mas não é. É coisa bastante difícil de fazer pela complexidade e encadeamento da ideia poética que se pretende transmitir a quem lê  é como se cada fragmento do poema fosse, por si só, um órgão: coração, rim, pulmão, membros a dar consistência e força ao poema, a formar o corpo.
O seu poema  e aqui "poema" cabe àquilo que conheço da sua poesia  é a projecção de uma ideia através da emoção. Ele serve-se da emoção  aquilo que faz o encanto na leitura dos seus poemas  não como base da sua poesia mas como ideia para dar às suas palavras a forma de poesia como se fosse epifania (sem conotação religiosa, claro). São encontros casuais de palavras que ele extirpa do sentido comum, são palavras em fricção, em choque entre vocábulos que dão à sua poesia um "jorro enorme de faúlhas sábias".

«Cada palavra
Lançada aos esporos do silêncio  
               abre-se como um fruto
(...)

 A luz das palavras
Devolve a magia dos dedos
Até se refazer da coragem
Dispersa com pedaços de um vento frio
Como toda a agonia da tarde»

A poesia de José Baião vem de longe  vem do âmago, do interior, do fundo da alma, mas toda ela de cariz estético: é nisto que reside a arte da poesia. De verso longo, não hesita em entranhar-se nos sentidos florestais do poeta ­ como se numa passagem de "poesia impura" a "poesia pura" (não aquela que não procura senão a harmonia, o ritmo, a melodia  que não seria mais do que música  mas aquela que se considera ser no poeta Baião, poesia intelectual, embora nunca se expurgando dos vestígios de vida; se assim fosse "expurgada de vida" estaríamos perante uma poesia fria, calculista, uma poesia traçada a compasso e a esquadro como no tempo dos concretistas. Esta, do José Baião, é poesia com a alma do poeta dentro e a existência do real por companhia. Como o poeta diz: «Demos as mãos / eu e a evidência // Acredite-se ou não / recebi como recompensa das mãos da bondade / o veneno do sal». E ainda, dele «(...) pergunto ao camponês que dorme nas esteiras de colmo qual o melhor caminho para alcançar a água dos deuses (mas) nunca ninguém ouviu falar de um tal caminho (...)».
Mesmo quando em "Linha de Fronteira"  um longo poema  ele nos oferece a poesia sob uma crosta áspera, austera, com reservas de eloquente "não-dito", repare-se que a roupagem poética é simples, mas interessa desnudar o corpo, descobri-lo, porque lá dentro há um tesouro escondido como se fosse a cavidade oca de uma rocha com o interior revestido de cristais.

«De um lado estamos nós, feridos no caule
Do outro lado a plenitude das aves que sobrevoam os corpos de linho
Transpomos os continentes, com uma única excepção ­- O CONTINENTE DISPERSO

Vejo os dias empurrar os navios
Para a linha de fronteira, de lá para cá, com os seus ventres
De sargaço rastejante
Até que o sol denuncie a presença de uma melodia contaminada pelo óxido
Das estradas
Viajo entre dois mundos sem sentir
(...)

A fronteira que divide a paisagem do ódio em dois astros
Reparte as angústias
Acende velas de inconciliável egoísmo
(...)»

É como diz Fernando Lobo em "Elogio Breve" dedicado a José Baião, poeta convidado da Revista Literária A Chama, na sua edição n.º 8 do 2.º trimestre de 2014  os versos do poeta Baião são (e cito) «enlaces de metáforas que o afasta, categoricamente, da falácia doutros poetas para nos projectar no universo ideativo da fala, de modo a descobrirmos uma reentrância no espaço poético e ideológico da palavra.» E eu acrescento: nesta conjugação de palavras poéticas, na ideia de interacção entre elas, o poeta José Baião  que tão arredio anda de edições de novas obras que tardam em chegar  transfere para o poema o mundo sob a forma de eco, e não do eco do mundo. Ele não altera o mundo com as suas palavras porque permite ao outro  a quem o lê e interpreta  a perceção do mundo. Do seu poético e ideal mundo.
Estas «águas fecundas», que alastram «ao ritmo da dissolução da memória»,  servem para resgatar a palavra ao nível da interpretação poética e do conhecimento. Assim, diremos como Gil Jouanard que «a poesia, vem sempre de mais longe do que aonde as palavras são capazes de nos conduzir». E como o poeta chileno Paz  lá voltamos nós ao grande mestre, eixo e ponto de referência: «A poesia polariza-se, congrega-se e isola-se num ponto humano: quadro, canção, tragédia  o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente».
Vejam, em Baião, no "Silêncio da Dor" em EGODISTONIA esta tríade atrás referida ─ poesia que se ergue e forma o corpo:

«(...) o corpo esconde-se na palavra
para poder sofrer
sem que ninguém o ouça
Tudo lhe fere as veias - os ossos
o sémen - penetrando a raiz do medo
Sem dúvida inventaste o grito da terra
para nos aproximar do passado
esse lugar onde desvendamos a fórmula
do silêncio incolor
como o beijo dos felinos»




Plagiando de algum modo palavras do poeta simbolista Gomes Leal, vejo em José Baião um trabalho laborioso da ideia, um lapidar da palavra poética com os versos encatenados entre si formando um rosário luminoso conduzindo-nos sem dificuldade ao objectivo final do poema ─ parece-me um «laboratório intelectual» num processo semelhante ao da natureza transformando da lagarta a borboleta, do carvão o diamante, e da ostra doente a pérola».

E antes de terminar, como comecei em "Sobre o poeta", que o medo era não lhe conseguir, a meu modo, desvendar das sombras o segredo das palavras, subi com ele os degraus de MOMENTANEAmente, livro sabiamente ilustrado com fotografias de Maria do Rosário Veloso, a dar-nos, logo na capa a ânsia de descobrir o rosto da palavra (prefiro dizer "os vários rostos" que a palavra poética tem) por detrás da máscara segura na firmeza da mão feminina  que para lá da palavra poética há muito mais que o seu simples sentido etimológico, ou seja, que a simples verdade das palavras, que o seu simples significado de origem. A linguagem poética em José Baião é como um rio que nas enchentes afaga as margens, mas também as varre numa limpeza sem dó para a renovação da natureza. Porque, como não podia ser de outra forma, a linguagem poética alia-se ao tempo, que em Baião é metamórfico  neste correr sempre renovado das águas do rio o seu tempo poético transforma-se opondo-se ele próprio à sua não-transformação. Ao negar estereótipos, em cada instante poético produz um instante novo  e gerador, capaz de criar novos tempos sempre diferentes do primeiro, porque só assim a poesia não estagna  só assim vive. Ainda que por vezes resista à dificuldade da interpretação, porque a poesia também é isso não mostrando o obvio tem que desencadear sempre no leitor o desejo da interpretação, ela também bebe a seiva na inquietação dos tempos sempre actuais, tão cheios de verdade indignada tantas vezes oculta nas sombras de tratados de mentira.

«escreves a vida
com palavras de terror

o ódio e a crueldade fizeram de ti um monstro de pedra
ambicionavas construir um mundo melhor
sobre as ruínas do que julgaste ser as trevas e a vergonha
No momento em que ergueste o teu cálice para clamar vitória
jorrou uma lágrima de sangue das tuas vítimas
sepultadas no pó da memória

Quando ergueste o teu cálice
o gás da morte envenenou os malmequeres dos corpos
e fez-se um longo silêncio entre o céu e a terra
para escutar o choro das crianças     na noite gelada

escreves a vida
com lendas de terror e fazes tratados de paz com a morte.»

30/05/20

O mito das raças


«Lutar contra o racismo, para citar uma alegoria do filósofo americano Rudolf Carnap (1891-1970), é como tentar consertar um barco que navega no oceano agitado por uma tempestade.», diz-nos Pierre-André Taguieff, filósofo e cientista político francês do Centro Nacional de Pesquisas Científicas, em entrevista concedida à revista Super Interessante, edição 66, de Março de 1993.
______

Cada vez mais se me afigura de difícil resolução o combate que se trava contra o mito das raças, que alastra, quer no âmbito do conflito religioso (cada vez mais sangrento pelo fanatismo das religiões que são transversais ao mundo actual, fanatismo incompreendido para o homem que se diz civilizado e temente a Deus), quer no âmbito de políticas divisionistas e raciais que teimosamente insistem no conceito da raça - superior e inferior - que simplesmente não existe, e investem, de forma destrutiva, em formas de resolução, que não passam de hipócritas e oportunistas tentativas.
A lei dos tempos actuais, e com razão, insiste em que, se não existe o conceito de raça, maior razão há para que seja eliminado o racismo pondo termo às velhas teorias de raça. Pura ilusão! Não há nada de mais demagógico do que dizer que é possível eliminar a palavra "raça" terminando com o conceito rácico. E porquê? Porque a palavra "raça" não é apenas mero conceito. É uma realidade mais do que simbólica, porque é um termo de linguagem que identifica as várias pessoas pela sua cor da pele. E, negarmos esta evidência, é navegarmos num universo de pura hipocrisia.


Por muito que nos custe, por muito que repugne o "homem bom, não oportunista e civilizado", não nos podemos alhear de que a realidade da "cor da pele" ou do "aspecto dos cabelos", existe. E, existindo - mas não o devendo ser, acentuo -, esta realidade não deveria ser motivo de diferenciação e distinção social, de segregação e estigmatização. Mas, infelizmente, não nos podemos alhear - e, fazê-lo, seria pura hipocrisia demagógica, repito, porque ninguém se consegue abstrair e alhear desta realidade - de que a cor da pele e o aspecto dos cabelos é o grande motivo de segregação.
A noção de "raça" existe, ainda que os cientistas continuem a afirmar de que tal é um mero conceito. E ela é o grande motivo divisionista. Ainda que me force em pensar, com a tentativa de destruir a tese anterior e de me fazer crer a mim mesmo, ser pensante, que, actualmente a noção biológica de desigualdade entre os seres não se põe com a mesma acutilância como o racismo cultural ou diferencialista, neste caso, como as etnias, as culturas, as religiões. Não se hierarquizam, tanto, como até à época hitleriana, em raças superiores e inferiores, em negros e brancos ou amarelos, mas esta ideia de "raça" é imanente ao ser; ao "todo ser"! Sempre assim foi e será. Não apenas àquele que se  julga diferente quando nasce e com direito à diferença negando a igualdade - o que é um absurdo!-, mas ao "todo" ser humano. Esse pensamento de "raça" está compreendido em toda a essência de todo o humano. E negarmos tal evidência é navegarmos num mar de hipocrisia.

A nossa hipócrita sociedade actual, e não apenas a sociedade política, vangloria-se de que cria "fundações" com vista a promover a igualdade de oportunidades para todos. E debate-se com propósitos que não passam disso mesmo: meros propósitos panfletários propostos para angariarem meios e fundos com vista a ampliarem, quantas vezes, partidarismos criados com fins obscuros e indefiníveis, que passam, tão-somente, por políticas que se fundamentam na luta racial mas que, em boa verdade, não vão além de contínuas lutas de classes, que proliferam no mundo. Porque sendo o «racismo e o capitalismo duas faces da mesma moeda» (Steve Biko), o regime de guerras e pobreza, de miséria e opressão, a força da exploração humana usada pelo sistema capitalista que diz renegar a luta de classes com a criação de bolsas para os estudiosos se debruçarem sobre o problema da "luta racial", mais não serve, tantas e tantas vezes, do que os seus próprios interesses capitalistas que usam a opressão e exploração para dividir e reinar. Isto não é mito nem ficção ou telenovela. É a crua realidade encapotada, tantas vezes, com (falsos) propósitos de fins humanitários.

E aqui se reforça a alegoria do filósofo, com que se abre esta crónica: «lutar contra o racismo, é como tentar consertar um barco que navega no oceano agitado por uma tempestade». Assim se (me) afigura de difícil resolução, quiçá, impossível resolução, o combate que se trava contra o racismo.

12/05/20

Pessimista por natureza em relação à existência humana


Este poema, não tem a ver com nada da actualidade e tem a ver, ao mesmo tempo, com tudo o que se passa na actualidade, faz parte deste texto de reflexões à roda do pessimismo, do expressionismo e do existencialismo. Encerra-o, embora aqui o deixe como abertura.

A mãe sozinha em casa pariu a criança ¾ fruto
de um amor longínquo que de enganosamente puro
se transformou em malígno; sobre eles inclinou-se
a traição que se alimentava da mentira piedosa.
_____a dor: o grande teatro do mundo que vive
como fonte lacónica num doce palco de mentira_____
Sobre ambos, a noite pesada, inclinava-se na cama
com o rosto babado de lava ¾ eram outros os lençóis
macerados numa mistura húmida de suor e esperma
e de sexo feito e deixado por fazer.
Quando a mão fria da mãe acarinhava a cara
da criança parida em noite de lua branca embriagada
pelo canto dos sonâmbulos corvos, nos braços esguios
e ressequidos dos pinheirais, lembrava o piedoso acto
do pai, expresso no rosto cinzento da mentira.
imagem de José Marafona
(álbum Delírios)
Os antepassados carinhos, simulacros de doçura
jaziam podres: amor e fantasia outonal.
A febre negra da mão do pai havia de subir um dia
o silêncio sinistro do Monte Calvário de Georg Trakl
e despejar a morte sobre a inocência do filho parido
pela mãe sozinha em casa numa noite branca de luar.
Meditar ajuda a passar o tempo, desde que a meditação seja saudável; ao invés, temos que ter um espírito forte e optimista para não cairmos no desespero insatisfeito da procura em alcançar algo que, não alcançando o almejado, nos pode levar à destruição. Escrever anima a alma; ler os mestres, naquilo que nos deixaram escrito com sabedoria e arte, consola-nos ¾ pelo menos a mim consola-me e alivia-me de outras preocupações.
Às vezes o homem é aquele ser abandonado que resiste ao tempo, embrulhado num frágil fio frio da noite fria, enquanto espera que a manhã regresse presa, apenas, num tão igual débil fio de vida. Dizem-lhe que a manhã tem sempre de regressar, todos os dias, para bafejar as paredes da casa que habita. Ironia das ironias... seria verdade se todos os homens fossem, por igual, filhos de deus; o tal deus dos homens a quem se abandonaram famintos na esperança da bocarra aberta desse túnel misterioso da salvação. Inglória sorte a deste homens abandonados a um deus que esqueceu as dores do mundo. Chamem-lhe lírico, anti-lírico, ateu, filho de nada e de ninguém... quer lá ele saber! Será isso tudo ou nada será, ao mesmo tempo. É, isso sim, aquele que pensa à sua maneira; pensa por si, pela sua cabeça. Pessimista? Talvez sim. Pessimista por natureza em relação à existência humana.
Filosoficamente ser pessimista é não acreditar no valor da existência. Neste sentido, o pessimismo é profundamente existencial na medida em que é a própria existência que surge nesse modo de pensar. Viver é sofrer, com pequenos instantes de felicidade ¾ assim pensavam Kierkegaard e Schopenhauer ao considerarem estes momentos minúsculos de felicidade comparados com a grande amplitude da infelicidade do homem no seio duma sociedade injusta. Schopenhauer em "Dores do Mundo" dizia mais ou menos isto: "Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo." Eis o pessimismo profundamente existencial de Schopenhauer na medida em que é a própria existência que surge nesse modo de pensar. No profundo realismo-pessimista de Schopenhauer do 'viver é sofrer', aponta-nos alternativas ao sofrer, cuja ideia mais poderosa é a vontade de viver "por alguma coisa" ou em razão de alguma coisa ¾ eliminando, consequentemente, os fantasmas pessimistas que enganam a nossa visão e construirmos, nós mesmos, o sentido da nossa própria existência, encontrando o caminho para a libertação na contemplação da Arte ¾ o Belo e a Poesia ¾ para a paz de espírito necessária à vida.
Ora, na linha do pessimismo a efemeridade  do mundo é o palco onde os homens desgraçados representam a sua dolorosa tragédia. Mas tal como Antero de Quental diz "o pessimismo não é um ponto de chegada mas um caminho; é a síntese da negação e o indivíduo é o único responsável em dar significado à sua vida e em vivê-la de modo apaixonado, apesar da existência de muitos obstáculos e tentações de desvios". Cada indivíduo constrói o seu próprio destino, já o dizia o humanista Miguel Torga, sem a intervenção de qualquer deus, e está no indivíduo e na sua vontade, a força para ultrapassar os factores externos e internos que estão envolvidos na 'construção' da desgraça do homem, devendo ser ele próprio a afirmar a sua individualidade e liberdade humana na construção do seu destino.
O pessimismo não é próprio de uma só época: no romantismo e na transição dos séculos seguintes, foram evidentes as correntes pessimistas. Recordemos nos finais do século XIX e século XX, e hoje, ainda há quem assim pense, o pensamento do 'vazio' e do 'absurdo' vê-se em filósofos, escritores, poetas e artistas. Fernando Pessoa, quando entra na personalidade do heterónimo Álvaro de Campos, na sua 3.ª fase marcada pela abulia (desencanto pela vida), revela constantemente o pessimismo em relação à existência ¾ sentia "um súbito impulso para escrever" e não sabia o quê, exprimindo 'toda a emoção' que não era capaz de dar nem a si nem à vida. É o desencanto pela vida ¾ a angústia existencial, o cepticismo de pensar, a memória do mundo fantástico da infância, era o tédio, era a náusea, era o desencanto consigo mesmo e com os outros: "nada me prende a nada / quero cinquenta coisas ao mesmo tempo / anseio com uma angústia de fome de carne".
Há poetas que traduzem na poesia que escrevem a sua rebeldia contra as injustiças e o seu inconformismo diante da podridão do mundo. E o poeta o que é, senão o responsável por fazer esta denúncia?! Muitas vezes os poetas acrescentam uma certa pitada de humor negro a esta poética expressionista, mas está na sua génese (e dos existencialistas, que se lhe seguiram) criarem imagens esdrúxulas e impactantes, carregadas de carga emocional, que signifiquem o grotesco, o bizarro, a dor, a angústia, a morte ¾ até o mórbido e a podridão existente na sociedade. Essas imagens esdrúxulas são o invólucro transitório que encobrem o núcleo onde está contida a verdadeira realidade. É preciso ir para além da capa do transitório, rompê-la e olhar para além dela em busca da verdadeira realidade para ver o que é eterno. O poeta expressionista não olha, vê; não reproduz, recria; não encontra, busca. Nesta transfiguração, os factos adquirem importância na altura em que a mão do poeta, enquanto artista, agarra aquilo que está por detrás deles. Neste caminho para o existencial, interessa colher, abrindo a capa do transitório da coisa, o núcleo que lhe está na origem, na génese ¾ o que é eterno, o imutável da própria arte. A morte, a angústia e a dor casam nos versos dos expressionistas com a sorte do homem desamparado. Às vezes até desgraçado. Não há excepções nem meio termo na desgraça. Ou se é ou não se é desgraçado. E medindo todos os homens que são desgraçados pela mesma bitola, podemos dizer que a desgraça neles é geral. Ontem, como hoje. A bitola só difere para aqueles que nasceram com o cu virado para o sol. Estes, mesmo sendo uma anémona em termos de conhecimento, de sabedoria melhor dizendo, na vastidão do universo, foram bafejados pela sorte; beijou-lhes a sorte o trazeiro esquecendo-se, esta, de que até pouco uso deram ao papel higiénico... mas também pouco importou à sorte lambê-lo com as bordas por limpar, pois quantas vezes ela dividiu com eles a dádiva dos prémios recebidos?!
Esta amarga podridão das coisas ruins do mundo descrito em verso, repugna certos poetas que apenas tentam falar do amor inventado, sem conhecerem a dor que também lhe está vinculada; desprezam falar da dor que esse mesmo amor acarreta, porque não existe amor sem dor.  É preciso buscar, desvendar, rasgar o véu que encobre o transitório e ver o núcleo, entrar nele, escrevê-lo. Mas preferem fugir da dor ¾ o grande teatro do mundo vive num palco de mentira ¾ como o diabo da cruz e não a denunciando, ou não a escrevendo para não perderem as suas audiências que lhe garantem a eternidade de um pódio falso. Esquecem-se deliberadamente das margens com receio de perderem os aplausos daqueles que nunca conheceram o puro horror do sangue, do pus e da dor humana, ou se dele tiveram conhecimento preferiram mudar de passeio para não sujarem as vestes. Esses poetas e essas poetisas de meia bitola querem-se os arautos da literatura que enferma e infesta os salões carunchosos onde se pavoneiam, entre chapéus de aba larga a esconder alqueires de ignorância mal disfarçada e vaporosos vestidos de seda barata encimados por armadas cabeleiras loiras plantadas em moleirinhas cheias de ideias inócuas e obliquantes, simulando-se as intrépidas e sábias críticas desses arautos 'litratos' de vinho tinto de terceira categoria engarrafado fora das caves célebres da Abel Pereira da Fonseca ou da Casa Ermelinda de Freitas. A poesia desses poetas e poetisas está vazia de propósitos; misturam-se vaidosamente no 'nada' orgulhando-se dessa pura vulgaridade. Como diria Almada-Negreiros no seu Manifesto Anti-Dantas, embora de um modo mais brando, uma geração de poetas e de leitores desses poetas que só conhecem deles o lirismo chocho, sem miolo, seco, goro, insípido, estéril, que se revê nos versos do amor tão mal cantado, banalizando-o de tanto e tão mal repetido, é uma geração de poetas rascas e de leitores cegos que não passam, uns e outros, de meros peões de palmas ambulantes. Dói sabê-los assim e em nada se esforçarem por serem outra coisa que não aquela que (in)sabiamente são.
Às vezes pergunto-me, como Schopenhauer ¾ "Se um Deus fez este mundo, eu gostaria de ser esse Deus: (porque) a miséria do mundo esfacelar-me-ia o coração."
___________
por: Alvaro Giesta (poeta) - 12/5/2020
bém, a morte

17/04/20

A morte - como valor ou como inevitabilidade?


Alvaro Giesta (todas as folhas têm chão)
Na aragem crepuscular dos longos dias de bruma das nossas vidas, erguias-te tu, trazendo no gesto mais um conselho - “Não andes depressa”, dizias-me. “Olha que a vida, depressa se perde na curva da estrada”. Tu nunca andavas depressa. Nunca tinhas pressa em partir. Recordo-me das zangas que a mãe tinha contigo quando se tratava da ida a qualquer sítio. Nunca tinhas pressa em sair de casa, ainda que te aprestasses a fazê-lo duas horas antes dos outros. Eras sempre o último a sair.
Hoje, sou eu que te peço - não tenhas tanta pressa em partir, deixa-me chegar antes que partas. E, por isso, a carrinha voava por aquela velha estrada a mais de cem quilómetros por hora, quando as curvas da estrada e o próprio piso mal garantiam segurança a metade dessa velocidade. Mas eu tinha que chegar antes que a morte chegasse até ti. Antes que retirassem os tubos que entravam em ti, sem se certificarem que era mesmo o último sopro de vida. Era nestas alturas que eu me lembrava da tua advertência “não andes depressa, olha que a vida depressa se perde na curva da estrada”. Pois é, qualquer vida se perde em qualquer curva de qualquer estrada. Há armadilhas na vida que nos armam com as palavras mais meigas que é possível imaginar, que não são precisas ser curvas para nos fazerem perder na vida.
direitos de imagem: José Fernando Delgado Mendonça
[Onde estiveste tu, hoje, meu pai? Sim, onde estiveste tu, hoje, que não te encontrei no meu sonho? Procurei-te nos quatro cantos, para lá da memória, os cantos que só nós conhecemos, e não te encontrei. Apenas essa cama aberta e os tubos todos pendurados à espera de ti, e tu não estavas. Para onde te levaram? Procurei-te nos quatro cantos da noite, e tu não estavas. Hoje fugiste do meu sonho. Sinto hoje no peito um nó tão apertado. Exactamente isso. Um nó no peito. Pé a fundo, no acelerador, imprimindo à carrinha, naquela estrada cheia de curvas apertadas e perigosas, quase o dobro da velocidade horária permitida por lei. Adivinhava que algo não corria bem. Aquele nó apertado no peito era uma campainha de advertência. Funcionava como um alarme.]
Estacionei à pressa debaixo da sombra acolhedora dos plátanos, e desembaracei-me dos carreiros sinuosos entre canteiros do jardim, saltando, em correria, as sebes e atravessando a relva, com uma olhadela de respeito ao busto do Dr. Sousa Martins, sempre tão rodeado de velas e oferendas, ali depositadas pelos seus crentes. Era ali que eu, naquelas tuas breves paragens de vida que te ocorriam desde que ali chegaste, ia pedir ao venerando médico – que dizem curar como os santos e que, enquanto em vida, se esqueceu dos seus problemas, das suas angústias, das suas frustrações, para acudir aos deserdados da saúde e do amor – que te desse, que mais não fosse, um dia a mais de vida. Nestas alturas as lágrimas rebentavam-me involuntariamente dos olhos e corriam-me pela face sem secarem no seu percurso. Hoje, se fosses vivo, meu pai, contava-te no estado em que te vi no meio daquela ampla e fria enfermaria, onde mais seis ou sete corpos jaziam quase sem vida.
Rodeavam-te o médico e os enfermeiros. Eu tinha livre entrada a qualquer momento, naquela enfermaria, mercê da amizade que aí granjeei com um enfermeiro, ao que parece colega de curso da minha irmã, a tua filha. Já todos os profissionais de saúde me conheciam. Mas, naquele momento, a situação era tão crítica e tão delicada que me mandaram sair e esperar notícias, do teu estado, no corredor. “Está quase a apagar-se”, murmurou-me o enfermeiro.
Nu. Estavas completamente nu. Nunca assim vi um corpo tão esquelético. Nem quando andava pelas terras mais longínquas do leste de Angola onde as pessoas famintas, especialmente crianças, nem se conseguiam levantar da esteira, tal o estado de fraqueza e magreza em que se encontravam. Entre tu e eles duas diferenças apenas - a cor da pele e o enxame de moscas que zuniam no rosto daqueles. Tu eras só pele e osso e o enxame que rodopiava à tua volta, eram o corpo clínico da enfermaria. Tentavam reanimar-te. E tu, preso a este mundo por um ténue fio de vida, parece que me adivinhaste, ali. Abriste os olhos. Os lábios, numa tentativa difícil mal se abriram e balbuciaste algo ininteligível. Adivinhei-te o que querias dizer. Só eu te entendia nessas alturas. Apenas eu sabia ler o que os teus lábios já não conseguiam dizer, mas o teu olhar me transmitia.
          “Ainda não quero morrer... murmuravam num leve sopro de vida os teus oitenta e oito anos”, e novamente o meu nome pronunciado a custo; era o que sempre me dizias naqueles momentos mais críticos, quando ainda havia alguma lucidez em ti.
Segurei, antes de sair a pedido do enfermeiro, por breves segundos a tua mão direita na minha. Como quando te pedia a bênção e a beijava. Para a fragilidade do teu corpo, senti que agarraste com demasiada força a minha mão. Os teus dedos ósseos, demasiado magros e rudes, não me largavam, como se encontrasses, na minha mão, o fio condutor e seguro para te agarrares à vida. Naquele momento, eu era a tua vida; a prece, ao divino, que eu apenas implorava em pensamento, a incógnita e a incerteza - a equipe médica, a difícil tábua de salvação. E lembrei-me daquelas palavras tão sábias do doutor Sousa Martins em quem até eu acreditava que fazia milagres, apesar de ignorar estas crendices - “A noção do infinito é como a luz do sol. Uma e outra, temos de aproveitá-las diluídas.”. Sábias palavras, as de tal mestre! Tive que sair. Desta vez não foram precisas palavras. Um breve arquear de sobrolho, do enfermeiro, para o compreender que tinha mesmo que sair. O médico, na tentativa de te salvar, não queria ali intrusos.
No corredor cruzei-me com o velho padre, porventura chamado à pressa para, mais uma vez, te ministrar o sacramento da extrema-unção, sempre adiada. Desta vez parecia-me que, até, a contragosto dele. Naquele puído fato cinzento, em passos hesitantes e incertos, o apóstolo de Pedro num corpo seco e gasto encimado por um rosto cadavérico e sem expressão e, na voz cava, a mesma conversa murmurada de sempre, ao passar por mim.       “Deus-Pai todo poderoso, não se esquece dos filhos que ama, tem sempre, para os bons, um lugar reservado no céu. Está a pôr à prova a sua fé!” - Estranha forma desse Deus, desse teu Deus se lembrar dos filhos “bons” que ama! Fazê-los sofrer, para seu gáudio e prazer, para depois lhes reservar um lugar no seu céu?!
Com os olhos marejados pelas lágrimas, entendi, agora, aquele nó apertado, no peito, que me apoquentou durante o percurso de mais de cem quilómetros, desde casa, onde ficara a mãe entregue ao seu pranto e orações, até ti. Estavas em debate, duro, com a morte! Ou, talvez, com ambas – com a morte e com a vida.
Fui agarrar-me ao busto daquele médico que dizem ser santo, e conversei com ele durante longos minutos. Pedi-lhe para te não deixar partir, ainda, pelo menos sem conheceres uma neta que estava para chegar, vida da tua única filha - que afinal não chegaste a conhecer, porque partiste antes de ela nascer. Rodeado de velas acesas, que os crentes do médico milagreiro continuamente renovavam, tive um momento em que senti que me ouvia. O coração dizia-me, disse-me nessa altura, por breves segundos, que a vida ainda não fora desta vez que te deixara. Senti que voltavas desse poço negro para onde algo estranho te puxava, nessas alturas, como que impulsionado por uma força centrípeta no sentido inverso àquela força centrífuga que te afundava, sempre, nesse vazio. E corri para a porta da enfermaria, saltando mais uma vez as sebes dos espaços ajardinados, agora por outro motivo – a esperança na vida – para não me demorar nos meandros dos floridos canteiros. No corredor cruzei-me, outra vez, com o apóstolo da igreja que me murmurou, como se a descontento, por se sentir mais uma vez ludibriado pela morte, ou antes, por saber que mais uma vez tu trocaste as voltas à morte, e com um falso sorriso, referindo-se a ti - “Enganou-me, outra vez!”. Oh Deus dos crentes, deixa que te lastime o triste apóstolo que teu filho deixou em teu nome aqui na terra! Espreitei. Lá ao fundo o enfermeiro. Vi que te amarrava os braços à cama. Por segundos ergueu o polegar direito, ao céu, em sinal de que voltavas à vida. Senti-lhe, debaixo da máscara que lhe cobria o rosto, o sorriso de vitória. Aventurei-me e avancei até aos pés da cama - “Sabe, é preciso…”, justificava o gesto de te amarrar os braços com ligaduras “…é que, quando volta a si, arranca tudo”. Referia-se às agulhas que te injectavam no corpo os ténues sopros de vida. Abriste os olhos - “És tu, meu filho?”, sempre chamando-me pelo nome e, logo de seguida - “Vi a morte à minha frente. Empurrava-me para um buraco negro, que depois era tão luminoso que essa luz me cegava. Não me deixes morrer meu filho.”
[Há momentos de reflexão de que não nos podemos alhear. A morte, por exemplo, - vemo-la como valor ou como inevitabilidade? Difícil é falar sobre esta imensa desconhecida. Desconhecida, não porque não saibamos que ela existe e que está a cada momento presente em nós e à espera da hora certa para nos “naufragar num mar sem fundo” embora preferindo, antes, ignorarmos a sua existência, mas desconhecida porque é difícil arguir sobre todas as teorias da morte. Da sua existência não nos podemos alhear. Ela é inevitável - porque somos finitos e porque temos um prazo de existência física. Como nascemos, morremos, e é nesse espaço, entre o nascer e o morrer, que nos relacionamos, enquanto objectos individuais. Atormenta-nos o desconhecido, o que está para além do terrível fenómeno real designado por morte. Esta ausência física para os que cá ficam à espera da sua vez, transforma-se num santuário de silêncio e de encontro com a terrífica solidão em que mergulham. Tudo se desune, tudo se destrói neste universo fluente se não houver uma relação de amor entre o ser e o criador. Este criador, aqui referido, não é o ser espiritual, supremo e desconhecido, que está para além de nós. Este criador é aquele que nos deu o ser, aquele de quem somos carne da sua carne, carne da mesma carne.
Nesta dinâmica criativa e criadora, o amor é a única força capaz de enfrentar sem temor e sem medo o imenso desconhecido, porque o amor é poderoso, dignifica, vai para além da mera invenção poética, vai para além do simples acto de compreender o semelhante. O amor é a dimensão superior que transcende as dimensões do tempo e do espaço. E que, sustentado pela fé, prolonga o mistério da (in)finitude da morte, deste tempo e deste espaço, num outro espaço e num outro tempo a que chamamos o eterno.]       

13/01/20

JUÍZOS NA NOITE, de António MR Martins



É usual, no lançamento duma obra que acaba de nascer, os leitores estarem na expectativa de ouvir falar do livro, para os ajudarem na decisão da compra ou da compreensão da obra; é também essa a função do prefácio, do antelóquio, do exórdio, dos prolegómenos, chame-se o que se chamar àquele texto que precede a obra do autor no sentido de a apresentar ao leitor; não de a fazer compreender, porque isso é tarefa do leitor, mas de dizer ao leitor nas linhas do prefácio, do que fala o autor. Coisa que nem sempre acontece: nem nos prefácios, menos ainda nas apresentações das obras em lançamento.
Nos prefácios, há prefaciadores que escrevem tudo à volta de si com o propósito vaidoso de se mostrarem, que até se esquecem do objecto em mãos - o livro sobre o qual nada dizem no prefácio. Em muitos lançamentos de obras, fala o apresentador de si e nos dois últimos minutos apenas dá o abraço de parabéns ao amigo autor. Da obra, nada disse. Como há outros lançamentos em que, apesar da boa vontade do apresentador em falar da obra, já não vale a pena dela dizer algo, porque tudo já foi dito pelos amigos do autor nas duas horas precedentes, com leituras de trechos e de poemas e com uma multiplicidade de adjetivações sobre as amizades com o autor. Não será o caso vertente.
Falemos da obra JUÍZOS NA NOITE de António MR Martins, para que o leitor saiba que o livro que vai levar para casa não é um "barrete" mas uma obra com verdadeiro valor literário. Mas, antes, esclareço: a minha relação com o texto criativo de Martins é absolutamente isenta de afectividade. E, embora o que escrevi em nada se pareça com um trabalho crítico à obra, vou manter-me, como se o fosse, no plano restrito da relação com o texto.
Duas consideraçoes impõem-se, contudo, para justificar o conceito de coisa literária:
1. O que são obras literárias? São criações esteticamente construídas e com utilização de diversos recursos estilísticos, que transmitem intenções comunicativas do autor para com o leitor. Abro um parentese para dizer que não é preciso ir-se à faculdade de letras para aprender sobre poesia; mesmo nascendo-se sem o dom (contrariando o que muitos dizem que "não é poeta quem quer, mas quem nasce poeta"), sublinho, mesmo nascendo-se sem o dom, pode aprender-se sobre poesia... mas é preciso ler-se, ler-se muito - poesia, literatura e ensaios.
2. O que são tertúlias literárias?  São reuniões culturais com vista à discussão e troca de conhecimentos relativos à literatura e obras literárias. Outro parentese - não são, apenas, a simples leitura de textos do autor ou do amigo do autor.
Portanto, uma criação literária, seja obra ou tertúlia, não é uma forma simples de contar um facto ou escrever um poema num arrazoado de palavras inócuas, como não é a simples leitura de poemas do poeta ou de amigos seus. É muito mais do que isso.
E antes de falarmos de JUÍZOS NA NOITE, construído num tipo de verso a que os seus teorizadores no princípio do modernismo chamaram de verso livre, assim o considerando porque negava a rima, desprezava o pentâmetro jâmbico e cada poeta, segundo esse conceito, deveria inventar a sua própria forma cada vez que compunha o poema, deveria ser escrito em total liberdade desprezando a arte demonstrando desprezo pelas anteriores formas poéticas, vamos falar um pouco neste tipo de verso contemporâneo para enquadrarmos o verso de Martins.
Em todas as épocas, em todas as culturas, poeta era aquele que praticava a "arte" de submeter as palavras a uma série de convenções que as transformava em poesia - a rima, a métrica, a estrutura, o ritmo. Verso livre era, então, segundo esses teorizadores, aquele que não obedecia a este padrão métrico regular, seria então qualquer trecho de prosa dividido arbitrariamente em linhas a imitar versos, seria todo aquele trecho construído em total liberdade, sem arte, porque segundo o conceito dos teorizadores do verso livre, a arte era portadora de cadeias que impediam a liberdade poética. Porém, isso não é assim, ainda que muitos continuem a pensar que assim é. O verso livre - o verso contemporâneo - tem que ter de comum aquilo que todas as formas poéticas têm: a utilização consciente do ritmo e aqui ritmo entende-se como uma figura de periodicidade, em analogia com a harmonia musical. Mas o ritmo da poesia não tem nada a ver com a harmonia da música, nem sequer com a prosa, se bem que o ritmo não seja exclusivo da poesia porque em toda a linguagem verbal há ritmo (eu, ao ler este texto estou a imprimir ritmo à leitura). Estará, até, mais próxima da poesia a linguagem verbal que a própria prosa. O ritmo da poesia é diferente e único, é singular porque está articulado com o essencial do significado que a poesia deve ter sempre: a imagem. Porque, como nos diz Paz em El Arco e la Lyra "ritmo e imagem são inseparáveis" na construção do poema. Seja ele rimado ou branco, seja ele metrificado ou (verso) livre. A linguagem verbal tem limites; mas, quando damos à palavra o sentido que ela oculta, atribuímos-lhe o valor poético que a palavra tem: a imagem é o essencial da sua significação;  aliando-a ao ritmo, temos o poema que vai de encontro à poesia. Se não houver ritmo não há poema - há prosa poética, diz Paz. E diz ainda, o ritmo, aliado à imagem, é o pulsar do sangue que circula nas veias do poema. É movimento; é emoção; é vida; é poesia. Tal como para o artista, das mais variadas expressões de arte, o ritmo expressa movimento. Fernando Pessoa dizia que "A poesia é a emoção expressa em ritmo através do pensamento, como a música é essa mesma expressão, mas directa, sem o intermédio da ideia».
Recordo-vos que defendido por uns - os revolucionadores da poesia com o argumento da liberdade poética, mesmo sem arte - atacado por outros, os que dizem que o verso livre não existe por falta de êxito e que só existe pela negativa, como defende o poeta e crítico literário T.S. Elliot, há outros, como João Cabral Neto - e aqui vale a pena referir esta inconsistência do crítico, pela mudança radical da ideia acerca do verso livre - que antes o defendeu (em 1953) em entrevista concedida a Vinicius de Maraes com estas palavras "(o verso livre) é fabuloso, e abrir mão da aquisição da poesia moderna será banir a poesia do mundo moderno"; porém, 30 anos depois (em 1988), depois de ver o mau uso do verso livre entre os poetas que apareciam como formigas, (como lêndeas, agora neste alfobre do facebook, digo eu), afirma em entrevista dada a Mário César Carvalho: "uma das coisas fatais da poesia foi o verso livre; antes, trabalhava-se o texto, agora desde o momento em que existe o verso livre todo o mundo acha que descrever a sua dor de corno é poema". O que pretendia dizer o poeta? Coisa que é válida ora e sempre - que mesmo o verso livre tem que ser trabalhado com arte retirando, dele, o inútil.
É aqui que Martins marca pontos em relação a muito pretenso verso contemporâneo ou livre, chamemos-lhe por este nome, que por aí prolifera. Martins edificou JUÍZOS NA NOITE com uma construção rítmica excelsa para que se afaste da prosa, quebrando o verso no sítio certo da cesura, para que o hemistíquio seguinte dê a feição de um novo verso, imprimindo-lhe, assim, o tal ritmo, que deve ser isto a essência do chamado verso livre. E mais: aliou-o à imagem, essa representação simbólica que dá a possibilidade de mentalmente reconstruirmos a realidade, usando o símbolo, a sublimação mais elevada do pensamento expresso em palavras. Então, olhando às características com que o autor construiu, em verso livre  esta obra, pergunto: 

Há ou não há arte no verso livre? Se há arte, cai então por terra o argumento dos teorizadores que dizem que o verso livre feito com arte não é livre, porque a arte agrilhoa o pensamento. Nada mais falso e os teorizadores do verso livre estavam redondamente enganados - a "arte" não agrilhoa o pensamento, não inibe de pensar, a arte obriga a pensar; "a arte é um meio para a reflexão", "a arte ensina a pensar", "a arte substitui o pensamento na tarefa da interpretação do mundo". O que esses teorizadores do verso livre queriam, era anarquismo no verso. E o anarquismo busca sempre o fim de qualquer coisa. E quanto à rima e ao esquema que não tem, efectivamente, o verso livre, diz-nos Eliot: "o verso livre não se define pela ausência de rima ou ausência de esquema, pois há formas de verso sem rima (é o caso do verso branco) e sem esquema, nem se define pela ausência de metro, visto que até o pior verso pode ser escandido". Por isso, diz-nos ele "a divisão entre Verso Conservador e verso livre não existe, porque há apenas versos de boa qualidade, versos de má qualidade e o caos".

É esta a característica do poeta Martins - fazer a coisa poética com qualidade e arte e eu testemunho-o porque o conheci na execução do soneto, a forma poética por excelência. Ele é como aquele fotógrafo profissional que, ao fotografar a modelo retira tudo o que é acessório na fotografia: o banco, o animal, o lixo, o penico com a planta a tentar embelezar a entrada da porta... assim procede o autor na poesia deste livro. A temática desta obra não é una e vou chamar-vos a   atenção apenas para dois ou três tópicos, aqueles que me prenderam mais a retina. Na obra há amor e onde há amor há sonho; há tormentos, também, e desassossego e, se há isto, há na proposta do autor o apelo ao sumo-Bem; há a preocupação do Ser pelo Outro, mas também a preocupação desassossegada do Eu, na tentativa do encontro consigo mesmo.
"Elícito ao teu olhar / (...) / me reduzi à ínfima partícula do ser" (logo no 2.º poema) - Elícito: reparem nesta palavra vernácula que significa "sentimento produzido pela alma, atraído por ela, sedução benévola direccionada para a prática incondicional do Bem ® Tomás de Aquino dizia que "o apetite é elícito quando tende para a apreensão do Bem". Mas há limites a condicionar a produção do Bem, e o poeta alerta-nos disso: as mentiras acumuladas que medram no "espaço terréu"; palavra latina muito bem aproveitada pelo autor, terréu - o espaço terrestre, a terra com estas ervas daninhas, a incompreensão da sociedade que vive arredia da palavra "amor".
Aqui é que está o valor literário da coisa literária - pelo ritmo aliado à imagem, um e outro ao encontro da poesia. Na obra, pela perícia no uso da palavra, aquilo a que eu chamo "o profano ofício das palavras", brilha a descrição das emoções pelo fogo que põe nas imagens, nos sentires, nos olhares das falas, porque as falas também veem, e os sorrisos também têm sabores... Neste conflito, nesta dualidade entre o sentimento da prática do Bem produzido pela alma e a mancha da sociedade que produz as ervas daninhas, traça o autor uma esquadria poética (nome dado a um poema seu) onde endireita e propõe o traço do caminho recto a seguir - é o sonho poético.
Na obra há a memória - a lembrança do tempo passado, a saudade e o ensejo do tempo futuro. Sim, há saudade, também - o jogo da palavra vento que promete trazer ao poeta as vivências esquecidas, não aquelas que se guardam na memória, porque essas são perenes e não esquecem nunca, não morrem nunca, mas aquelas que, pensadas esquecidas, afinal estavam apenas latentes na memória, ocultas por leve névoa. Há o passado mas, também há a esperança radiosa de que o futuro será sempre "a surpresa de cada amanhecer", diz-nos o poeta em Renascer na simplicidade de viver.
Na obra há o tempo - o tempo é como um rio, lembra-nos Gustavo Ascher: "nunca podemos tocar na mesma água do rio duas vezes"; a certeza de que, como dizia o filósofo Heráclito "a mesma água nunca passa duas vezes por baixo da mesma ponte". Diz-nos Martins "não mais seremos como fomos"; devemos aproveitar cada minuto da vida e, por isso, procurar boas aparências e pessoas perfeitas é tempo perdido porque elas não existem ® o poeta diz-nos isso mesmo em Renascer Impróprio - que o sentir é fugaz, quando o olhar tem a idade da diferença e o sangue não nasce com a pujança necessária, quiçá a pujança dos outros tempos. Em palavras suas: "Por ora / tudo em ti / reflecte estagnação / e o sangue / já não te nasce / com a pujança necessária."
Na obra, também há o corpo - o corpo aliado indubitavelmente ao amor e ao tempo: um corpo de raízes abre-se como o grito na vastidão do tempo. Sob o cabelo feminino o arrepio e o ventre ávido pulsam sob a pele, como a febre nos hospícios cresce no corpo à espera de novos remédios por inventar. Assim rodopia no corpo a fome do prazer reinventado; abre-se à vastidão dos dias devorados pelas garras ardentes do prazer; mas... depois é a falência do corpo: (nas palavras do poeta) "A falência das forças / apodera-se do corpo e o olhar mortiço / parece visionar // um horizonte de inexistências./ (...) // A matéria torna-se pó / na cal do contínuo infortúnio."
Há, em JUÍZOS NA NOITE, fortes juízos do Eu, sobre o Eu enquanto Ser, do Ser-Outro, do sempre aliado tempo Passado-Presente-Futuro, nesta poesia reflexiva, às vezes até metafísica, em que só o silêncio da noite ou o isolamento necessário dos ruídos do mundo, faz medrar a produção de tais juízos poéticos. E, para terminar, há outras meditações sobre a palavra - na certeza do Verbo, como o autor lhe chama: "O verbo, será sempre o verbo, / mas já não tem a soberba determinação / de outrora."
Meditando sobre esta certeza da incerteza do Verbo, para que nos chama a atenção o poeta: "O verbo, será sempre o verbo, / mas já não tem a soberba determinação / de outrora" - vem-me à memória o que, não muito longe no tempo, disse, com certo pessimismo, em entrevista  escrita no Jornal da Biblioteca Pública de Paraná e deixado exarado em livro seu de ensaios, a mui reputada e renomada professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Leyla Perrone-Moisés, autora de livros de ensaio como Inútil Poesia e Altas Literaturas, sobre a perda da relevância da literatura no meio cultural e de como grandes autores do nosso tempo lutam contra esse cancro, que é o cenário do fim da literatura. E, afirmou, à pergunta do entrevistador:

"A senhora escreve que não é possível estudar literatura sem passar pelos textos clássicos.(...)"
Responde a Mestra:
"Para estudar literatura, é necessário partir dos clássicos. O mesmo acontece no campo científico. Isaac Newton dizia: «Se vi mais longe foi por estar sobre ombros de gigantes». Os professores de literatura podem e devem propor textos contemporâneos em suas aulas, pois sua temática é mais próxima da vivência dos alunos. Mas o bom professor, assim como o bom escritor contemporâneo, tem de conhecer os 'gigantes' da história literária, porque estes não apenas criaram as bases da literatura moderna e contemporânea, mas são sempre atuais quanto às grandes questões humanas."

Permito-me finalizar com a leitura do "Mais Belo Poema" desta obra:
"Quando te li, / a primeira vez, / foi em verso.  // Percorri teu corpo / com o sentido olhar da palavra / e com ela saboreei / os mais apaladados pretextos. // Carente do desejo de ler-te, / em definitivo, / te vislumbrei, interiorizando-te, / da cabeça aos pés. // Depois... / te beijei, / intensamente, / tocando quase todos os teus caminhos. // Então, / te senti, / finalmente, / poema!...". E regresso, em ponto final, àquilo que atrás enunciei sobre o ofício das palavras, com dois versos deixados na minha futura obra GRAVITAÇÕES-O Profano Ofício das palavras, e aqui em homenagem a Juízos na Noite: "que mistério este / o do nascimento da palavra!..."
29/Out/2019
Alvaro Giesta
Poeta e Coordenador Literário
Imagem da divulgação da obra:
In-Finita (Acessoria Literária)

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...