17/04/20

A morte - como valor ou como inevitabilidade?


Alvaro Giesta (todas as folhas têm chão)
Na aragem crepuscular dos longos dias de bruma das nossas vidas, erguias-te tu, trazendo no gesto mais um conselho - “Não andes depressa”, dizias-me. “Olha que a vida, depressa se perde na curva da estrada”. Tu nunca andavas depressa. Nunca tinhas pressa em partir. Recordo-me das zangas que a mãe tinha contigo quando se tratava da ida a qualquer sítio. Nunca tinhas pressa em sair de casa, ainda que te aprestasses a fazê-lo duas horas antes dos outros. Eras sempre o último a sair.
Hoje, sou eu que te peço - não tenhas tanta pressa em partir, deixa-me chegar antes que partas. E, por isso, a carrinha voava por aquela velha estrada a mais de cem quilómetros por hora, quando as curvas da estrada e o próprio piso mal garantiam segurança a metade dessa velocidade. Mas eu tinha que chegar antes que a morte chegasse até ti. Antes que retirassem os tubos que entravam em ti, sem se certificarem que era mesmo o último sopro de vida. Era nestas alturas que eu me lembrava da tua advertência “não andes depressa, olha que a vida depressa se perde na curva da estrada”. Pois é, qualquer vida se perde em qualquer curva de qualquer estrada. Há armadilhas na vida que nos armam com as palavras mais meigas que é possível imaginar, que não são precisas ser curvas para nos fazerem perder na vida.
direitos de imagem: José Fernando Delgado Mendonça
[Onde estiveste tu, hoje, meu pai? Sim, onde estiveste tu, hoje, que não te encontrei no meu sonho? Procurei-te nos quatro cantos, para lá da memória, os cantos que só nós conhecemos, e não te encontrei. Apenas essa cama aberta e os tubos todos pendurados à espera de ti, e tu não estavas. Para onde te levaram? Procurei-te nos quatro cantos da noite, e tu não estavas. Hoje fugiste do meu sonho. Sinto hoje no peito um nó tão apertado. Exactamente isso. Um nó no peito. Pé a fundo, no acelerador, imprimindo à carrinha, naquela estrada cheia de curvas apertadas e perigosas, quase o dobro da velocidade horária permitida por lei. Adivinhava que algo não corria bem. Aquele nó apertado no peito era uma campainha de advertência. Funcionava como um alarme.]
Estacionei à pressa debaixo da sombra acolhedora dos plátanos, e desembaracei-me dos carreiros sinuosos entre canteiros do jardim, saltando, em correria, as sebes e atravessando a relva, com uma olhadela de respeito ao busto do Dr. Sousa Martins, sempre tão rodeado de velas e oferendas, ali depositadas pelos seus crentes. Era ali que eu, naquelas tuas breves paragens de vida que te ocorriam desde que ali chegaste, ia pedir ao venerando médico – que dizem curar como os santos e que, enquanto em vida, se esqueceu dos seus problemas, das suas angústias, das suas frustrações, para acudir aos deserdados da saúde e do amor – que te desse, que mais não fosse, um dia a mais de vida. Nestas alturas as lágrimas rebentavam-me involuntariamente dos olhos e corriam-me pela face sem secarem no seu percurso. Hoje, se fosses vivo, meu pai, contava-te no estado em que te vi no meio daquela ampla e fria enfermaria, onde mais seis ou sete corpos jaziam quase sem vida.
Rodeavam-te o médico e os enfermeiros. Eu tinha livre entrada a qualquer momento, naquela enfermaria, mercê da amizade que aí granjeei com um enfermeiro, ao que parece colega de curso da minha irmã, a tua filha. Já todos os profissionais de saúde me conheciam. Mas, naquele momento, a situação era tão crítica e tão delicada que me mandaram sair e esperar notícias, do teu estado, no corredor. “Está quase a apagar-se”, murmurou-me o enfermeiro.
Nu. Estavas completamente nu. Nunca assim vi um corpo tão esquelético. Nem quando andava pelas terras mais longínquas do leste de Angola onde as pessoas famintas, especialmente crianças, nem se conseguiam levantar da esteira, tal o estado de fraqueza e magreza em que se encontravam. Entre tu e eles duas diferenças apenas - a cor da pele e o enxame de moscas que zuniam no rosto daqueles. Tu eras só pele e osso e o enxame que rodopiava à tua volta, eram o corpo clínico da enfermaria. Tentavam reanimar-te. E tu, preso a este mundo por um ténue fio de vida, parece que me adivinhaste, ali. Abriste os olhos. Os lábios, numa tentativa difícil mal se abriram e balbuciaste algo ininteligível. Adivinhei-te o que querias dizer. Só eu te entendia nessas alturas. Apenas eu sabia ler o que os teus lábios já não conseguiam dizer, mas o teu olhar me transmitia.
          “Ainda não quero morrer... murmuravam num leve sopro de vida os teus oitenta e oito anos”, e novamente o meu nome pronunciado a custo; era o que sempre me dizias naqueles momentos mais críticos, quando ainda havia alguma lucidez em ti.
Segurei, antes de sair a pedido do enfermeiro, por breves segundos a tua mão direita na minha. Como quando te pedia a bênção e a beijava. Para a fragilidade do teu corpo, senti que agarraste com demasiada força a minha mão. Os teus dedos ósseos, demasiado magros e rudes, não me largavam, como se encontrasses, na minha mão, o fio condutor e seguro para te agarrares à vida. Naquele momento, eu era a tua vida; a prece, ao divino, que eu apenas implorava em pensamento, a incógnita e a incerteza - a equipe médica, a difícil tábua de salvação. E lembrei-me daquelas palavras tão sábias do doutor Sousa Martins em quem até eu acreditava que fazia milagres, apesar de ignorar estas crendices - “A noção do infinito é como a luz do sol. Uma e outra, temos de aproveitá-las diluídas.”. Sábias palavras, as de tal mestre! Tive que sair. Desta vez não foram precisas palavras. Um breve arquear de sobrolho, do enfermeiro, para o compreender que tinha mesmo que sair. O médico, na tentativa de te salvar, não queria ali intrusos.
No corredor cruzei-me com o velho padre, porventura chamado à pressa para, mais uma vez, te ministrar o sacramento da extrema-unção, sempre adiada. Desta vez parecia-me que, até, a contragosto dele. Naquele puído fato cinzento, em passos hesitantes e incertos, o apóstolo de Pedro num corpo seco e gasto encimado por um rosto cadavérico e sem expressão e, na voz cava, a mesma conversa murmurada de sempre, ao passar por mim.       “Deus-Pai todo poderoso, não se esquece dos filhos que ama, tem sempre, para os bons, um lugar reservado no céu. Está a pôr à prova a sua fé!” - Estranha forma desse Deus, desse teu Deus se lembrar dos filhos “bons” que ama! Fazê-los sofrer, para seu gáudio e prazer, para depois lhes reservar um lugar no seu céu?!
Com os olhos marejados pelas lágrimas, entendi, agora, aquele nó apertado, no peito, que me apoquentou durante o percurso de mais de cem quilómetros, desde casa, onde ficara a mãe entregue ao seu pranto e orações, até ti. Estavas em debate, duro, com a morte! Ou, talvez, com ambas – com a morte e com a vida.
Fui agarrar-me ao busto daquele médico que dizem ser santo, e conversei com ele durante longos minutos. Pedi-lhe para te não deixar partir, ainda, pelo menos sem conheceres uma neta que estava para chegar, vida da tua única filha - que afinal não chegaste a conhecer, porque partiste antes de ela nascer. Rodeado de velas acesas, que os crentes do médico milagreiro continuamente renovavam, tive um momento em que senti que me ouvia. O coração dizia-me, disse-me nessa altura, por breves segundos, que a vida ainda não fora desta vez que te deixara. Senti que voltavas desse poço negro para onde algo estranho te puxava, nessas alturas, como que impulsionado por uma força centrípeta no sentido inverso àquela força centrífuga que te afundava, sempre, nesse vazio. E corri para a porta da enfermaria, saltando mais uma vez as sebes dos espaços ajardinados, agora por outro motivo – a esperança na vida – para não me demorar nos meandros dos floridos canteiros. No corredor cruzei-me, outra vez, com o apóstolo da igreja que me murmurou, como se a descontento, por se sentir mais uma vez ludibriado pela morte, ou antes, por saber que mais uma vez tu trocaste as voltas à morte, e com um falso sorriso, referindo-se a ti - “Enganou-me, outra vez!”. Oh Deus dos crentes, deixa que te lastime o triste apóstolo que teu filho deixou em teu nome aqui na terra! Espreitei. Lá ao fundo o enfermeiro. Vi que te amarrava os braços à cama. Por segundos ergueu o polegar direito, ao céu, em sinal de que voltavas à vida. Senti-lhe, debaixo da máscara que lhe cobria o rosto, o sorriso de vitória. Aventurei-me e avancei até aos pés da cama - “Sabe, é preciso…”, justificava o gesto de te amarrar os braços com ligaduras “…é que, quando volta a si, arranca tudo”. Referia-se às agulhas que te injectavam no corpo os ténues sopros de vida. Abriste os olhos - “És tu, meu filho?”, sempre chamando-me pelo nome e, logo de seguida - “Vi a morte à minha frente. Empurrava-me para um buraco negro, que depois era tão luminoso que essa luz me cegava. Não me deixes morrer meu filho.”
[Há momentos de reflexão de que não nos podemos alhear. A morte, por exemplo, - vemo-la como valor ou como inevitabilidade? Difícil é falar sobre esta imensa desconhecida. Desconhecida, não porque não saibamos que ela existe e que está a cada momento presente em nós e à espera da hora certa para nos “naufragar num mar sem fundo” embora preferindo, antes, ignorarmos a sua existência, mas desconhecida porque é difícil arguir sobre todas as teorias da morte. Da sua existência não nos podemos alhear. Ela é inevitável - porque somos finitos e porque temos um prazo de existência física. Como nascemos, morremos, e é nesse espaço, entre o nascer e o morrer, que nos relacionamos, enquanto objectos individuais. Atormenta-nos o desconhecido, o que está para além do terrível fenómeno real designado por morte. Esta ausência física para os que cá ficam à espera da sua vez, transforma-se num santuário de silêncio e de encontro com a terrífica solidão em que mergulham. Tudo se desune, tudo se destrói neste universo fluente se não houver uma relação de amor entre o ser e o criador. Este criador, aqui referido, não é o ser espiritual, supremo e desconhecido, que está para além de nós. Este criador é aquele que nos deu o ser, aquele de quem somos carne da sua carne, carne da mesma carne.
Nesta dinâmica criativa e criadora, o amor é a única força capaz de enfrentar sem temor e sem medo o imenso desconhecido, porque o amor é poderoso, dignifica, vai para além da mera invenção poética, vai para além do simples acto de compreender o semelhante. O amor é a dimensão superior que transcende as dimensões do tempo e do espaço. E que, sustentado pela fé, prolonga o mistério da (in)finitude da morte, deste tempo e deste espaço, num outro espaço e num outro tempo a que chamamos o eterno.]       

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...