27/06/18

O verso livre, quando a prosa se concilia com a tonalidade da poesia, em João Dordio


 Autor do texto: Alvaro Giesta


«Ninguém é louco sem escrever.
Ninguém se apaixona sem ser louco.
Ninguém é poeta sem amar...»

João Dórdio, Quando os loucos escrevem
 in Não Faças Barulho. Fui Ali Gritar Que Te Amava, Emporium Editora, 2018


          A poética de João Dórdio, em evidência na sua segunda publicação (1.º título poético) "Não Faças Barulho. Fui ali gritar que te amava", construída com despreocupação total por moldar na forja o verso em obediência à estrutura que o define enquanto tal, bebe a inspiração em si próprio, melhor dizendo, não sofre da angústia da influência de qualquer mestre adjacente, porquanto a maneira como apreende a natureza do objecto literário e o reverte numa forma poética, onde a luminosidade da intenção literária da prosa ou verso livre se transforma em poesia, é exclusivamente sua.

          A sua poética é marcadamente romântica, objectiva pelo tema tratado - o amor -, é idealista com certo desfoque do "eu-poético" que se desloca para o "objecto-poético" (o "eu-outro" como parte integrante de si, o ser amado que em si e nele se revê), onde se foca com inquietação permanente, quase de "maneira louca" por "ver e ter" o ser amado em tudo quanto vê e tem - até no "vazio, no silêncio, na ausência e na saudade".

          A sua prosa é poética, melhor dizendo, a sua prosa é verso livre quando se concilia com a tonalidade da poesia, que também pretende ser prosa quando, em verso livre, está à mesma distância da narrativa (e vice-versa). Uma e outra - prosa e poesia - completam-se dando ao discurso poético uma linguagem só sua - a metalinguagem -, sem grande obliquidade, porque a amplitude da imaginação do poeta João Dórdio, não procura nos tropos - ou seja, no recurso à imagem, à metáfora, à sinestesia, às antíteses e a outras figuras da linguagem, com que as palavras usurpam umas às outras o sentido que lhes não pertence - outra intenção, que não seja, a de mostrar um ego inquieto e insatisfeito (o do prosador-poeta ou do poeta-prosador) à sua maneira e único no seu universo poético, que prima pela intenção de atingir o universo de cada leitor transmutando-o, consigo, quando, enquanto "poeta", sonha e transforma o sonho em palavras, quando, enquanto "ser" apaixonado se interroga e se perde para além de si e do que existe, para se encontrar em si, quando, enquanto "amante", se aglutina, se transforma, se une em osmose perfeita com o objecto amado.

          Mesmo quando o autor classifica de "prosa" o seu 1.º livro, "O Suspiro de Odin" - inserido pelo editor na colecção "Viagem Filosófica", sem que este editor tivesse o cuidado exigido na leitura e análise da obra para o rigor que, para tal classificação de "filosófica", tais obras merecem - em abono das evidências, nos parece que este autor, nesta obra, não laborou, propriamente, no domínio do pensamento; é mais, e acima de tudo, na sua linguagem e método criativo, um tangedor de instrumentos poéticos e estados líricos de alma, mesmo na prosa, quase sempre, no princípio do onírico. É mais sonhador que pensador! Contudo, e apesar desta narrativa onírica e poética da prosa, cada uma das duas obras aqui referidas, ocupa o seu tempo e lugar próprio, com o forte atributo de, uma e outra, poderem ser consideradas literárias.

          De cariz ficcional é este diálogo do "eu-lírico" com o "eu-outro" (subentenda-se, a razão, a voz autocrítica da consciência) magnificamente reproduzido na intenção do "eu-poético" se suicidar, enquanto poeta, sem ter, ainda, demonstrado sê-lo por obra publicada. Talvez o autor pretenda ironizar, porque ele sabe - tal como o personagem Odin, criado no imaginário do prosador-poeta para ser o seu confidente, o seu confessor, o seu conselheiro e salvador, o seu outro na sua voz da consciência a falar-lhe e a levá-lo à razão - que começa o poeta, nesta obra em prosa, a afirmar-se pelo sonho, pela interrogação enquanto ser apaixonado, pela presença dum ego inquieto e insatisfeito, muito antes da obra, propriamente poética, nascer.

          Dada está a resposta, a nós que nos adentrámos na leitura da obra "O Suspiro de Odin", sobre "quem é este Odin, a quem o poeta-prosador se recolhe, a quem o prosador-poeta se confessa neste confiteor do "eu" em sofrimento de amor, do amor em sofrimento, do arrependimento de algo, da saudade, do desejo de regressar ao tempo antigo, do desejo de mudança - este confiteor como se fosse desejo de redenção. Odin, não é outro senão ele mesmo, no antes e no agora, no antes e no depois, no tempo passado e no presente, onde o prosador-poeta se agarra, como se fosse tábua de salvação, se recolhe como se fosse porto de abrigo e se aceita ao aceitar as repreensões de Odin - "Poeta, um dia vou retirar-te (...) estas vozes que te invadem a mente e que te cortam o discurso".

          Odin, é a voz da razão do poeta, a própria voz da consciência do prosador-poeta que em breve se vai dar a conhecer como poeta-prosador, a voz da consciência do "eu-lírico", no já poeta em "O Suspiro de Odin", que se autoflagela nesta transfiguração do "eu". O poeta, aqui fragmentado no "eu", que ama e sofre, e no "eu-outro", que amou e sofreu, a voz da razão na figura do imaginário e literária de Odin, que se auto analisa, se recrimina e se aprende.

          [- Poeta, tão louco e pensativo outra vez?
          - Penso e falo contigo, Odin. Para ver se me conheço e me percebo. E por vezes encontro-me. (...)
          - Queres voltar para mudar alguma coisa, Poeta? Queres ainda tentar um novo rumo?
          - Odin, rumos são só realmente rumos de mão dada. E caminhos só são realmente caminhos quando a sombra que vemos em redor não é sombra, é a nossa paixão que nos acompanha...]

          A vontade do poeta de voar sobre mares distantes e por horizontes longínquos na ânsia de descobrir novos céus. É a oposição do efémero ao eterno e a angústia à metafísica da existência humana:

          [- Odin, tenta perceber a tortura de colocar nas letras o que me está a acontecer...
          - Poeta, existem falcões que levam as palavras sábias vindas dessa tortura para que fiquem imortalizadas.]

          E a voz da consciência a alertar o poeta para a angústia da existência do ser, inconfundível com a existência de Deus. - Aqui, em evidência, o princípio do onírico e do sobrenatural.

          [- Tu não és ainda um Deus. São as asas do falcão que te confundem. Não é a tempestade, nem o respirar de quem te beija. São as asas...]

          Façamos aqui a separação e, ao mesmo tempo, a junção das águas na escrita de João Dórdio, seja ela prosa poética ou verso em prosa:

          Nesta construção efabulatória, isto é, neste modelo gerado e criado pelo autor, não por geração espontânea mas, alicerçado no seu grande poder imaginário, característico da literatura, quer ao criar um geracional monólogo entre o "ele" antes, e o "ele" depois, (o sujeito-poético) na voz crítica do personagem Odin, no livro em prosa "O Suspiro de Odin", quer no livro em verso livre "Não Faças Barulho. Fui ali gritar que te amava", onde concilia a poesia com a tonalidade da prosa num foco de inquietação permanente entre o "eu" enquanto "sujeito-poético" e o "eu-outro" (o ser amado), enquanto "objecto-poético" que em si se aglutina numa osmose perfeita formando-se um só ser enquanto "sujeito-objecto-poético", há-de explicar-se, certamente, a possível e previsível classificação no seu modus da escrita, se a explicarmos como "origem própria" ou seja, de qualquer outro escritor diferente, desde que igual a si não haja.

          E assim seja sempre, inovadora, longe da angustia da influência de seus antecessores e diferente dos seus contemporâneos se firme com pendor literário, assim sempre, com esta iluminação própria para que possa ser lido como se fosse contemplação - poderá ser chamada, então, um dia, a partir desta peculiaridade de escrever, em prosa e verso, se assim se mantiver, escrita Dordiana.

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Alvaro Giesta é poeta, ficcionista, estudioso do verso, coordenador literário e editor gráfico
[a minha crítica não pretende púlpitos, não se vende, nem compra aplausos; é apenas um mero exercício do (meu) pensar]


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