17/04/18

O Retorno ao Princípio, numa dialéctica Vida- Morte


Duas opiniões sobre a obra "O Retorno ao Princípio" de Alvaro Giesta
Colecção Naïf
-Editora Calçada das Letras, 2014

<< (...) O Retorno ao Princípio, “é o retorno à vida” que nos impele para fora da penumbra suspensa da árvore que “atravessa/o ciclo da vida” quando se abre a porta que deixa entrar o vento das montanhas, “o sulco de luz” que arrasta os corpos nus para um sono, agora sem retorno, devido ao cansaço e à dor, e nos faz cativos “dos lábios da terra/da espuma branca sem mar/da sede, da fome, do frio”. Os insensatos dias que sucedem ao despontar da lucidez trazem a descrença e os caminhos parecem-nos inúteis.
Que sentido ontológico tem, neste trilho poético, o ser que espreita o abismo dentro de si mesmo, não por efeito da incandescência da alma ou de um acto repousado da consciência? A resposta poderá estar na percepção daquele momento decorrido entre a vigília e o sono, do absoluto vazio, espaço de refúgio “em que coincidem/a sombra e a luz” e que nos informa que “(…) o ser é vazio de toda a determinação que não seja a da identidade consigo mesmo” (in “O Ser e o Nada” Jean Paul Sartre).
“naufraga-se num sono/eterno” e o corpo “ascende ao princípio, escreve indelevelmente o poeta na sombra do abismo, porque a abolição de todas as fronteiras ente a vida e a morte, porta aberta ao retorno do ser, projecta o espaço livre que ganha maior nitidez através do movimento, da incandescência, transmitidos pela alma ao corpo antes deste atingir o seu estado de maturação. E assim aperfeiçoa o seu tempo do ser... (...)
Organicamente O Retorno ao Princípio, revela-se ao leitor sob uma dupla face: MORTE e VIDA. Quer a Morte - invisível lucidez que apaga alguns dos sinais de uma travessia, repouso fatal, reacendimento das almas, “prenúncio de um novo dia” -; quer a Vida - sonho por desvendar, beijo de fogo no silêncio, espuma branca, grito na escuridão, medo da morte disfarçada, entrando em nós como um punhal -, concedem-nos um sentimento de amor à palavra vertida no sangue que enfrenta mistérios e ritos, e persistentemente renova o nosso destino, “caminho/à beira-lágrima/onde um deus se perdeu”, chão pisado de memórias indesejadas. Partilhamos vida e morte, num só movimento do tempo, vagueando como duas aves na palma da mão dos infinitos céus, enquanto a clarividência da palavra dos deuses não é senão uma metáfora sobre o império da fé que por milénios nos tem servido de guia e nos tem dividido. O nosso destino é o sol-infinito instalado no espaço vazio e frio da morte, onde o ser “contradiz-se e faz-se/de novo abismo”. O acto poético apresenta-se nestes versos de engenhoso compromisso de Alvaro Giesta, como mediação de sentido do inatingível, voz silenciosa entre dois mundos opacos, dois lugares tão próximos quão longínquos pontuados de muitas incandescências – da alma, do sonho, e das ausências do corpo e da divindade!
Cada uma das partes, Morte e Vida, de que se compõe a obra expande-se por “terreno alheio”, como se de terreno próprio se tratasse. Nisto reside o processo da diálectica Vida-Morte que cimenta a edificação lírica. Na realidade o que o poeta procura em cada uma das partes, é a parte correspondente à outra, enquanto resultado de uma certa complementaridade. Por isso, Morte e Vida, nem sempre se apresentam como faces antagónicas do ser, a substância perecível que incorpora o princípio e precede a ausência do corpo. “tu e eu somos duas partes / da mesma parte / deste ser”.
Fazendo, por vezes, uso de algum mimetismo de valores simbólicos, comumente aceites pela metafísica e no plano religioso, como se estivesse na iminência de se inclinar “sobre o fim/prestes a ser/princípio”, o poeta perscruta as entranhas da morte, a matéria diáfana que emana “do âmago do nada/existente/entre a penumbra e a luz”. Enquanto isto, algures, o sémen da vida vai transformando o universo desconhecido e intemporal em verbo. (...)>>

     do prefácio à obra por Dr. José Baião Santos

" (...) Um dos "papéis" da arte poética é expressar sentimentos humanos e transmitir, de forma subjectiva, aspectos da nossa realidade – medos, angústias, anseios, desgraça, pobreza... tudo quanto seja marginal e que, a maioria dos nossos poetas de hoje fogem a retratar.
O novo, o desconhecido, é algo que nos assusta enquanto seres humanos em quem o receio está presente, em quem a expectativa é uma constante aliada ao medo da dor e da dor na morte que ela nos possa causar. E como vamos nós pensar nesse desconhecido que começa onde a vida acaba e a morte começa?
No fazer poético de alguns poetas, a Morte não é o fim de um ciclo. Ela é transmutação. É apenas o trânsito, a passagem breve para outra vida, passagem ainda que fatal, pela fatalidade que o fenómeno Morte encerra, um ponto de passagem, obrigatório para todos os seres vivos. É apenas a passagem para outra vida, com princípio no próprio fim. Ela é, não deixando apenas de ser o fim, também o princípio que começa onde esse fim termina.
Enquanto poeta Alvaro Giesta, a liberdade da palavra, no uso poético que lhe é dada, permite-lhe, em O Retorno ao Princípio, filosofar acerca da morte. A morte, que é a garantia da ordem no mundo dos homens, que é o que concede o diálogo, pois, no mundo humano adquire-se a vida através da morte. Só, assim, a vida tem sentido.
O filósofo Maurice Blanchot dizia que "a morte é a base de todo o alicerce humano diferentemente do que ocorre no mundo literário". No texto poético as palavras adquirem uma maior liberdade pela soma inesgotável de temas que se nos propõem à imaginação trabalhando a matéria desses temas com a arte poética que eles merecem. Daí que, considere, que não há morte em literatura. A impossibilidade da morte diz respeito ao não-fim. Ou seja, a finalidade da morte que nos surge diariamente na linguagem normal das evidências, não existe na linguagem poética. Mesmo quando poetas como Fernando Echevarría nos dizem que a morte é o fim e que, para além da morte nada mais há senão o fim; o nada; o vácuo.
Mas é exactamente esse fim poético que vai dar origem a novos olhares na poética de Alvaro Giesta, no tema Vida-Morte, à tal "espuma" de Echevarría que lhe foi princípio. Porque, no seu entendimento, é no nada e do nada que nasce a linguagem poética; é aí, no preciso lugar "onde a luz e a obscuridade coincidem e se transformam", que se dá o acto inaugural da palavra. À semelhança, e contrariando Echevarría que na sua linguagem mais filosófica que meta-poética diz que para além da morte nada mais há senão o nada, a morte, em Giesta, é o retorno ao princípio a partir do nada onde se dá o acto inaugural da vida.
A linguagem poética, neste caso na enfatização da morte pela palavra, não procura uma finalidade, uma explicação, não procura atingir algo, atingir um fim - isto, é para as religiões e seitas. Na linguagem poética a palavra não morre. A palavra, se morre, é para dar vida à palavra nova porque "a palavra é a vida dessa morte", como nos diz o filósofo Maurice Blanchot e o poeta Alvaro Giesta, num dos poemas iniciais de O Retorno ao Princípio. (...)"

do posfácio à obra por Fernando A. AlmeidaReis, ortónimo







08/04/18

A influência na invenção do humano poético

Autor: Alvaro Giesta
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Todos os poetas - e apenas a estes, e só a estes, me refiro neste texto -, sofrem da influência dos outros autores e, ao mesmo tempo, torna-se numa angústia presente e permanente naqueles que pretendem que a sua "arte", a sua forma de se dar a conhecer aos outors através da escrita, seja original. Esta "angústia da influência" será aquela de que fala o mais influente e controverso crítico do nosso tempo: Harold Bloom?
O processo da influência nota-se, quer queiramos quer não, muito mais nas artes e nas disciplinas intelectuais do que nas outras formas do saber e do conhecimento - porque enquanto estas exigem a experimentação para um "único pensamento" (Heidegger) pensando-o até ao fim em vista, para quem sofre das artes, da angústia da influência não há fim.

O humano poético inventa-se, a partir da influência que se sofre dos poetas antecessores. Vulgarmente se diz: "inspirei-me no poeta A ou B" - mas, isso, não é inspiração, porque tal, como inspiração, não existe; isso é "influência".
Ninguém, nas artes intelectuais, está isento e livre de sofrer influência e de influenciar outros, resultando de tal acontecimento uma forte inquietação, quando, o que todos os poetas pretenderiam, era terem uma forma só sua e genuína de se expressarem na escrita - seriam, neste caso, mestres de si próprios, mestres sem mestre.
E só não sofre influência quem não teve contacto, lendo ou estudando, os poetas antecessores. Mas esses - os que não sofreram de influência - ou são genuinamente superiores ou raramente passarão de vaidosamente medíocres.

Uns e outros diferentes entre si: os poetas genuinamente superiores, porque do seu pedestal não descem para ler os poetas menores pela pouca ou nenhuma atenção que lhes merecem - seria uma desconsideração para eles, considerados sábios, e uma perda do brilho da auréola, descerem ao mundo inferior dos poetas menores; os que raramente passam de vaidosamente medíocres, porque obcecados que estão com o ego, que julgam já tudo saberem e de tudo serem capazes sem necessidade de com outros aprender, desconhecem que a humildade é a maior sabedoria dos sábios.
- E, sábios, são aqueles que não têm necessidade de falar do seu próprio valor, aqueles que, sem ênfase ou asserção, são capazes de, do mesmo modo, erguer uma montanha sem esforço a partir do pó e dum oceano irado fazer flutuar um átomo. Não os tentando nunca a ostentação, o exibicionismo, a presunção, facilmente se explica o mérito e o poder do mestre e do sábio de, com o mesmo saber, tratar a farsa, a tragédia, a lírica e a narrativa.

Poucos são os autores que têm dons de imaginação poética - quase todos se repetem nos temas e, tantas vezes, na forma de os tratar. Os que têm o dom de se inventar genuinamente, criam-se como mestres de si próprios, quer na forma da sua escrita, quer na genialidade das suas distintas, porque genuínas, ficções poéticas. É um atrevimento dizer que dificilmente houve autores genuínos, únicos e inegualáveis, na forma de executar e criar. E que, no panorama literário português, nem Pessoa foi genuíno na poética - se o foi, apenas isso aconteceu na criação dos heterónimos. Porque o seu grande mestre na forma do verso livre foi Walt Whitman. Disse Harold Bloom que Pessoa era o maior herdeiro português de Whitman. O próprio Pessoa o não desmente nesta declaração poética pessoana em "Saudação a Walt Whitman"[1]: «Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado, / não sou indigno de ti (...) / (...) / Sou dos teus, tu bem sabes (...) / E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias (...) / (...) / Sei que é isso que eu sou (...) dez anos antes de eu nascer (...)». A evidência diz-nos que Pessoa nunca negou a influência de Whitman sobre si.
(...)
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Obs:
O artigo, de que aqui deixo este extracto, segue nos mesmos moldes, a narrativa aqui exposta.
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 A propósito vem o convite que vos faço a uma leitura dupla deste meu poema "da MORTE, cantata em odes mínimas" da influência sofrida daquela que eu considero ser a melhor poeta no arrojo que teve em cantar a morte - Hilda Hilst.
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da MORTE, cantata em odes mínimas

                              1.

Apoderas-te do meu ser, quando? Agora?
Quando unirás a tua boca à minha,
          -- à boca dum poeta, nesse estreito laço?

Que vontade calada de te unires a mim tens
tu, amantíssima Morte, que por mim
esperando em silêncio, vens minando o meu
corpo que junto ao teu repousará um dia
nesse longo e apertado-abraço!

Oh! como almejas o teu corpo colado ao meu
debaixo daquela pedra fria, onde
a tua fome de mim em fogo arde.

                              2.

Desafio-te:
          --vem, hoje, sereníssima e negra
antes que seja tarde; vem, sem medo,
amantíssima vem não sejas cobarde...

          desafio-te, oh Morte, antes que sejas tu,
nesse beijo frio que tanto desejas, a impores-me
a minha própria sorte -- vem, nesta hora.

 Aqui de mim, para ti, firmo a minha escritura:
          -- assim te imponho eu, agora
que venhas serena mas rudemente, assim te quero
e ao mesmo tempo austera, nesta agonia
ácida, escura e amargamente terrena.

          Assim te desafio -- vem, não esperes
pelo abraço final que nos há de selar a sepultura.

                              3.

O meu tempo agora é teu... e há muito dura!
          Ama-me com a fome que tens de mim
em fazer da minha carne -- ânsia que te consome --
o teu leite prometido, a tua carnadura
          -- o diamante puro para o teu altar.

          Já não me atormenta o teu nome!
Porque tu, Morte, és a Vida-semente da minha vida
amor que em ti se prolonga indefinidamente.

Escurecem os teus olhos que por mim brilham
por alimentar o teu ventre esfaimado,
          de mim sequioso e tardio
quando por fim descer à terra escura.

                              4.

Alimenta o teu ventre, esse amor que há tanto dura
pelo meu ser, faminto e doentio. Sim, tu, oh Morte
que tão demasiados anos da minha vida
trouxeste o teu dentro arredado e fugidio.

Hás-me urdir nesse denso e frígido amor
em tempo teu, sobre mim a tua teia.
O tempo virá em que à tua se há de unir
a minha carne -- vida da tua vida.

Como a trovoada que sobre a terra áspera
e dura, derrama o cíclico raio quando nunca chove
e o rochedo seca e abre brechas em sua cíclica
textura, assim escorra tardiamente sobre mim
e a minha vida, o teu amor pela minha sorte,

          -- e tarde o tempo
em fazer da tua vida a minha morte.»
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(da Morte, cantata em Odes Mínimas de Alvaro Giesta, in OPUS, Selecta de Poesia em Língua Portuguesa, Temas Originais, 2018 (31 autores)
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Toma-me

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo 
_________

(Da Morte, Odes Mínimas de Hilda Hilst)




[1] Saudação a Walt Whitman / Canto de Mim Mesmo, Autores Álvaro de Campos|Fernando Pessoa/Walt Whitman, © Guera e Paz, Editores, S.A. 2017, pp 12 a 13


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