13/04/22

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo
estes versos…
É do peso da espingarda,
é do canto que se obrigam a escrever
na esperança de te encontrar,
para dizer-te

do silêncio profundo que me habita
a alma, e da dor que me atormenta
quando me vejo obrigado
para não morrer a ter de matar

in “há o silêncio em volta”
ed Vieira da Silva, Alvaro Giesta


Pede-me o autor da obra um texto que anteceda aquilo que escreveu, a recordar-nos o que parece perdido “Na Teia do Esquecimento”.

1. DAS CONSIDERAÇÕES,
ATENDENDO AO LEITMOTIV DA OBRA:

A memória dos homens é tão traiçoeira quanto o tempo da loucura que nos nega a possibilidade de procurarmos no mais fundo de nós os registos do (nosso) passado. É natural que tropecemos com esses registos ― amargos registos ― que deviam permanecer, para todo o tempo, na memória, como quando tropeçamos com as pedras soltas da calçada sempre prontas a cortar-nos o caminho do pensamento. Para garantir um retorno ao passado, às coisas boas e más que um dia a memória perderá, nada como a palavra gravada na folha branca do papel. É a nossa história, vivenciada, ou a dos outros de quem ouvimos os factos, que é a nossa história, também, enquanto integrados no todo da humanidade, mau grado a vontade vergonhosa e desavergonhada dos oposicionistas e negacionistas deste universo tão fluente e influenciado por maus seguidores da razão ― factos que permanecerão indeléveis na memória do tempo e dos homens que abarcam o tempo com a mesma força da paixão com que abraçam o ente querido à partida para o Eterno.

Esta representação visual captada pelos cinco sentidos com a ajuda da linguagem, (re)cria no nosso sistema emocional camadas de representação que vão dar a conhecer, aos vindouros mortais, experiências concretas que um dia se viveram ― neste caso, as experiências da guerra em que nos vimos envolvidos pela defesa dum credo, duma causa, duma pátria (aquela que nos diziam que era “nossa”). Obvio que sendo as palavras símbolos de experiências concretas, elas vão sofrer, na e pela transformação do tempo em movimento constante, neste fenómeno mental, processos de modelagem: por omissão, por distorção e por generalização, de modo que concluiremos da certeza de que um evento gravado na memória nunca é, exactamente, fiel ao acontecimento que gerou a gravação.

E o autor da obra ― que aqui não interessa esquadrinhar, pois, sendo poética, ficam seus versos à interpretação livre de cada leitor ― diz-nos na entrada de sua “Nota Prévia”: “Na Teia do Esquecimento não é um relato de situações testemunhadas ou vivenciadas pelo autor”; e, se fosse (dizemos nós), volvido que está meio século do fim da “guerra (ex)colonial à data em que escrevemos estes prolegómenos”, não podemos deixar de afirmar que é esta guerra o vero leitmotiv da obra. Não é de admirar que (só agora) o autor dê voz às suas inquietações (movido por relatos que lhe chegaram, quer contados quer lidos de outros intervenientes na guerra), que neste tempo de ausência a revolta e a descrença nos homens nos leva a protelar por anos, que parecem séculos sem fim, aquilo que durante muito tempo se calou mas ficou guardado “na teia do esquecimento”, quantas vezes por vontade própria com o medo ― e vergonha, até, ― dos julgamentos que os outros homens (os de má fé) nos possam fazer.


E a prova ― dada por tantos ex-combatentes que bem podiam deixar estas palavras como prolegómenos ao título, antes do corpo da obra propriamente dita ― é que, hoje, o antigo combatente, olhando-se ao espelho, vê-se a impotência de ter sido jovem e explorado pelo país que, quando se é velho deixa de ter préstimo, qualquer préstimo, ainda que tenha tido, no passado, a importância suficiente para que o arrebatassem à terra e à família e o desterrassem para a lonjura de outro hemisfério diferente e desconhecido, em defesa daquilo a que chamavam pátria, e de onde havia de regressar, para o hemisfério de onde partiu e agora também, nele, desconhecido.

Eis as relíquias de um passado longínquo, de um passado presente na memória e agarrado, como sanguessugas, ao peito, a esguichar sangue, em pedaços de latão em forma de escudo e em pedaços de bronze em forma de cruz, debruados a madrepérola a lembrar a pátria que os esqueceu. Nenhum antigo combatente tem uma borracha ou qualquer tinta indelével que apague, da memória, aquilo que viveu na guerra: é a voz da consciência a falar-lhe da sua condição de antigo combatente, é a sua história, é a (sua) vida de um passado sempre presente como se fosse o esgaravatar de uma aranha que constantemente lhe atormenta as têmporas ― cobarde, seria, não recordar o vivido e o sangue derramado.

E o autor Antero Jerónimo tem consciência disso (embora não tivesse vivido a guerra), ao dizer-nos como mediação, singela, pura e dura:
“Não há prisão maior para um Homem, do que ser refém da sua própria consciência.”



2. DA OBRA:

O autor percorre as páginas deste livro com voz persistente, não a descrever a guerra em que não andou envolvido mas, tão-somente, no intuito de (ele próprio o diz em nota prévia) celebrar, erguer e preservar os nobres “valores fundamentais da lealdade e nobreza de carácter e espírito de coragem, sacrifício e missão que regem os Combatentes em defesa da Pátria” ― aqui se escreve em maiúscula “Combatentes” e “Pátria” em sentido valorativo que o autor dá aos “Homens” (sem distinção de género) que, por força da “Missão” deram a vida e agora caídos na “teia do esquecimento” da Pátria que defenderam.

Na limpidez da escrita, como se quer, aliás, numa obra que pretende como aviso conta a liberdade e as injustiças sociais (que é impossível ocultar e amenizar sob a beleza das metáforas), vai-nos alertando a memória sobre os erros cometidos no passado, na pretensão do ensinamento para que esses mesmos erros se não repitam no futuro. E o poeta vai semeando palavras da cor do sangue vertido na guerra…

…invocando os feitos (nem sempre nobres como são reconhecidos em “Os Lusíadas” de Camões, e aqui lembrados no primeiro poema de abertura de que se serviu pelas palavras do General Joaquim Chito Rodrigues ― “Esta é a ditosa Pátria minha amada / Que poeta enaltece e imortaliza / Mas que chegado ao fim da caminhada / Julga ver morrer consigo, quem eterniza”.

…invocando, também, aqueles que se curvaram “perante a grandeza dos que fizeram da pena a sua outra espada”, sentindo com eles a dor desses destemidos que, agora, se contorcem “de pasmo e agonia em seus túmulos seculares” ― é a glória dos heróis, humildes e audazes, que não reclamam para si os louvores, mas exigem o reconhecimento do sangue vertido de tantos combatentes incógnitos em tão longínquos campos de batalha. Assim, chama ao exemplo dos feitos de que devemos colher ― “saber e identidade” daqueles que esta “ditosa Pátria” imortalizaram.

Na guerra há estados de alma difíceis de escrever em verso; e as palavras repetem-se ao longo da obra, quase sem cessar, em revoltas interiores, traumas que ficaram para a vida ― existe, nos versos de uma guerra, a perda impossível de remediar porque a morte é o mote neste convívio que parece impossível existir ― não fossem as lembranças de amor e sonho que nunca abandonaram o combatente, teria ele enlouquecido nesta terrível travessia que lhe foi imposta.


Nos versos do poeta há o tempo da ausência, um tempo de raiva e desespero numa mistura de desassossego e medo ― há “memórias eternas de um tempo escoado / cicatrizes visíveis na carne / de um presente atormentado”. Porque, depois da guerra, fica a angústia e o silêncio amordaçado ― essa ausência da verdade nas palavras pelo medo do julgamento que ao combatente possam injustamente fazer. Mas, como nos diz o poeta em seus versos “a verdade erguer-se-á das cinzas, envolta em majestoso manto de claridade”. Há-de ruir a injustiça dos homens que julgaram os outros homens:
― aqueles que tiveram a coragem de escrever da guerra em que andaram envolvidos e de que saíram, tantas vezes, mutilados no corpo, destruídos no cérebro e esmagados na alma. Os peitos, onde lhe penduraram a cruz de guerra, sangrarão de dor até ao juízo final.


Outubro de 2021
Alvaro Giesta, poeta
(pseudónimo de Fernando A. Almeida Reis,
combatente no Ultramar Jan71 a Jul74)

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