22/12/19

O NATAL - das origens, Pagãs, à realidade, Bíblica.


 Artigo publicado em 21 de Dezembro de 2015 na revista online BIRD MAGAZINE sujeito ao mesmo título ora e aqui expresso. Era editor e director da referida revista Ricardo Pinto.

Autor do artigo: Alvaro Giesta
_________
«Pensei que este Natal era para toda a gente...» - actor da novela "A Única Mulher" que desempenha o papel do personagem Kandimba.
 ___________

O texto não reflecte uma opinião do autor. Está baseado nos documentos históricos que adquiriu (a Bíblia Sagrada, edição pastoral, da PAULUS Editora, 7.ª edição 2011, com a revisão literária do Padre João Gomes Filipe), bem como outros que consultou na internet, estudando-os para poder elaborar este texto com propriedade.

 ___________


autor da foto: José Fernando Delgado Mendonça

Capturou-me a tristeza, desenhada entre traços de ansiedade, estampada no rosto do menino negro que desempenha o papel do personagem Kandimba na novela portuguesa mais badalada no momento, e levou-me a escrever sobre o Natal, de modo diferente do que habitualmente se escreve, nesta e desta data: nem conto com o Menino nas palhinhas deitado, ladeado pela vaquinha e jumento, sequer com o pinheiro ricamente ornado com enfeites de múltiplas cores, menos ainda com quanto é possível adjectivar com palavras, com prendas e presentes, unicamente para este dia, singular, que devia ser igual a todos os outros, pois Natal é sempre que o homem queira e o deve ser, e sempre, sem a hipocrisia encoberta nos votos formulados sem a vontade sincera de os fazer, simplesmente para não fugir ao que, protocolarmente, está pré-estabelecido.

Escrever sobre a mística e mítica e mais importante festa para as crianças, é coisa por demais "batida" e banal no recurso que se faz das palavras e dos gestos, tão-sempre iguais para desta data se dizer. Não me interessa saber se, do que aqui fica expresso, me acham tão mordaz ou mais ácido, nas palavras, quanto Eça o foi nos seus escritos realistas. Sou igual a mim mesmo e vertical assim serei, ora e sempre, até que passe à posição final - a horizontal. E de palavras e com palavras, secas e cruas, acredito no que a HISTÓRIA (e a BÍBLIA) me diz: JESUS NÃO NASCEU A 25 DE DEZEMBRO.

Todos os anos se chega à época final de cada ano em que todo o mundo cristão se prepara para celebrar o mais notável acto solene - o nascimento de Jesus Cristo. Para este acto, homenageando um Ser que nasceu pobre e pobre viveu durante a sua curta vida, de sandálias e túnica, tudo se cobre, nefastamente, dos mais ricos e exuberantes gestos de poder que à humildade e à pobreza repugna. «O Messias é pobre» [i] (Lu 2,21), «O Messias veio para os pobres» [ii] (Lu 2,8). «Lucas relata o momento do nascimento de Messias e... quem são as estrelas deste acontecimento? A quem aparecem os anjos a anunciar este sublime acontecimento, esta «boa nova de grande alegria para todo o povo»? Ao sumo-sacerdote? Aos ricos e senhores importantes de Jerusalém? Não. A pastores, humildes e pobres, a trabalhadores do campo, desgraçadamente pobres. A gente insignificante. Lucas, diz-nos, que aquilo que é insignificante é aquilo que Deus valoriza.
E do Natal, regressando às suas origens, falemos, para que os mais novos e os mais humildes - como o humilde actor da novela - fiquem a saber que ele nem sempre foi aquilo que se julga ter sido.


DAS ORIGENS PAGÃS:

Da Enciclopédia Católica [iii] (edição de 1912) «A festa de Natal não estava incluída entre as primeiras festividades da Igreja (...).» Na mesma enciclopédia, ensina-nos ORÍGENES [iv], um dos chamados pais da Igreja que «...não vemos nas Escrituras ninguém que haja celebrado uma festa ou celebrado um grande banquete no dia do seu natalício. Somente os pecadores ("por pecadores entende-se pagãos" como Faraó ou Herodes) celebraram com grande regozijo o dia em que nasceram neste mundo.»
Tardaram os cristãos, mais de três séculos, a celebrar o Natal adulterando, contudo, aquela que parece ter sido (a história assim nos diz) a verdadeira data do nascimento do Homem que veio para redimir o mundo. A história demonstra que, durante os primeiros três séculos da nossa era, os cristãos não celebraram o Natal. Só no século IV (ano 350) após se ter firmado aquilo a que se chamou a igreja estatal do Império Romano (o sistema que hoje é conhecido por Igreja Romana), é que a festa do Natal começou a ser introduzida. Foi o Papa Júlio I [v] que declarou o dia 25 de Dezembro - que fora o dia da festa pagã do deus-Sol - como dia festivo do nascimento do Filho de Deus; contudo, somente no século V é que foi oficialmente ordenado que o Natal fosse observado, para sempre, como festa cristã, e se realizasse no mesmo dia da secular festividade romana em honra ao nascimento do deus-Sol, já que não se conhecia a data exacta do nascimento de Cristo.

E a resposta à pergunta que não é necessário fazer, fica, para sempre, latente no espírito dos cépticos e inquietos: se fosse vontade de Deus que guardássemos e festejássemos o aniversário de seu Filho muito-amado, não nos teria ocultado a sua data, exacta, de nascimento, nem nos teria deixado, sem qualquer referência a ela, exacta, em todo o percurso da Bíblia. E, assim, foi, pelo paganismo, que nos vimos ordenados a adorar Deus, no seu Filho muito-amado no nascimento "inventado" em 25 de Dezembro. Vejamos:


DO (NÃO) NASCIMENTO DE JESUS EM 25 DE DEZEMBRO - analisando Lucas [vi], segundo o seu evangelho:

«Naqueles dias, o imperador Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento em todo o império. Este primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam registar-se, cada um na sua cidade natal. José era da família e descendente de David. Subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até à cidade de David, chamada Belém, na Judeia, para se registar com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, completavam-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogénito. (...)» (Lu 2, 1-7) [vii]

«Naquela região havia pastores, que passavam a noite nos campos, tomando conta do rebanho. Um anjo do Senhor apareceu aos pastores...» (e anunciou) «hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, o Senhor.» (Lu 2, 8-11) [viii]
Ora, é sabido (e adiante se confirmará no capítulo A BÍBLIA MOSTRA QUANDO JESUS NASCEU) que isto jamais pôde acontecer na Judeia durante o mês de Dezembro - os pastores tiravam os rebanhos dos campos em meados de Outubro e abrigavam-se para os proteger no inverno no tempo frio e das chuvas. (Adam Clark Commentary, vol 5, pag. 370) [ix]. E mais: a Bíblia, no livro bíblico Esdras diz-nos que «No terceiro dia, todos os homens de Judá e de Benjamim estavam reunidos em Jerusalém. Era dia vinte do nono mês (logo, Setembro). Todo o povo estava na praça do Templo de Deus (...)» (Esd 10,9) [x]
Ora, nascer Jesus em Dezembro, parece impossível; porque, impossível parece ser a permanência dos pastores com seus rebanhos durante as frias noites no campo, como também parece improvável que o recenseamento fosse convocado para a época das chuvas e frio, como se vê em Lucas 2,1. Mas...


A BÍBLIA MOSTRA QUANDO JESUS NASCEU:

Jesus Cristo nasceu na festa dos Tabernáculos, [xi] a qual acontecia em cada ano no final do 7.º mês (Itenim ou Tshiri) do calendário judaico - correspondente (mais ou menos) ao mês de setembro do nosso calendário, dado que o calendário judaico é lunar-solar e o nosso é solar. E, nessa festa dos Tabernáculos, das Tendas originalmente chamada, Deus, que a instituiu, habitava com o povo de Israel para que sempre o Seu povo se lembrasse dos dias de peregrinação pelo deserto. «Desde o dia quinze do sétimo mês (...) celebrareis a festa do Senhor durante sete dias (...) Morareis em tendas durante sete dias (...) para que (...) saibam (todos os descendentes de Israel) que eu fiz habitar os filhos de Israel em tendas quando os tirei do Egipto.» (Lv 23, 39-43) [xii]

Vejamos, nas Escrituras, alguns detalhes, ainda que superficialmente, que nos vão ajudar a situar, cronologicamente, o nascimento de Jesus:

Os Levitas [xiii] eram divididos em 24 turnos e cada turno ministrava por 1/24 = 15 dias, 2 vezes por ano. Com os números arredondados e corrigida, a cada 3 anos, a distorção entre o calendário judaico lunar-solar e o nosso calendário solar, 24 turnos a 15 dias cada turno, ia dar o correspondente a 365,2422 dias, o equivalente ao ano. (1 Cr 23, 1-32) e (1Cr 24,1-19) [xiv]
O primeiro turno iniciava-se com o primeiro mês do ano judaico - mês de Abibe (março/abril). O quarto turno, correspondente aos meses de junho/julho (mês de Tamuz), era aquele em que o sacerdote Zacarias, pai de João Batista, ministrava no Templo. Terminado o seu turno Zacarias voltou para casa e (conforme a promessa que Deus lhe fez) sua esposa Isabel, que era estéril, concebeu João Baptista (nos finais do mês Tamuz - junho/julho ou princípios do mês Abe - julho/agosto).
«Depois de terminar os seus dias de serviço no santuário, Zacarias voltou para casa. Algum tempo depois, sua esposa Isabel ficou grávida, e escondeu-se durante cinco meses.» (Luc 1, 23-24) [xv]. Jesus foi concebido 6 meses depois, no fim do mês Tebete - dezembro/janeiro ou início de Sebate - janeiro/fevereiro.

Diz-nos S. Lucas:
«No sexto mês (fim do mês Tebete "dezembro/janeiro" ou início do mês Sebate "janeiro/fevereiro"), o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré. Foi a uma virgem, prometida em casamento a um homem chamado José, que era descendente de David. E o nome da virgem era Maria. O anjo entrou onde ela estava e disse: "Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo! (...) Não tenhas medo, Maria (...) Eis que vais ficar grávida, terás um Filho e dar-Lhe-ás o nome de Jesus."» (Lu 1, 26-30) [xvi]
Nove meses depois, no final do mês Itenim ou Tshiri (que cai em setembro e/ou outubro) - o mês em que os judeus comemoravam a Festa dos Tabernáculos, Deus veio habitar, veio "tabernacular" com os homens. Foi o mês em que nasceu Jesus, o Emanuel, o Filho do Altíssimo.
Jesus, o verdadeiro Messias, não nasceu neste mítico dia 25 de Dezembro. Nada existe que prove, cientificamente, que foi nesta data ou noutra qualquer, que Cristo nasceu - nem apóstolos o dizem nem a igreja com propriedade o pode provar, pois jamais a igreja primitiva e/ou os apóstolos celebraram o natalício de Cristo.



O NATAL NAS IGREJAS E OS COSTUMES NATALÍCIOS:

A Nova Enciclopédia de Conhecimento Religioso de Schaff-Herzog [xvii] diz-nos que «Não se pode determinar com precisão até que ponto a data desta festividade teve origem na pagã Brumália», nome dado às festas romanas em honra a Baco - 25 de dezembro, «a que se seguia a Saturnália», festival romano em honra ao deus Saturno que ocorria no mês de dezembro, no solstício de inverno; era celebrada no dia 17 de dezembro, mas ao longo dos tempos foi alargada à semana completa, terminando a 25 de dezembro «e que comemoravam o nascimento do deus-Sol no dia mais curto do ano.» Diz-nos ainda que, «As festividades pagãs de Saturnália e Brumália estavam demasiadamente arreigadas nos costumes populares para serem suprimidas pela influência cristã» que nascia, a quem também agradavam.

Por isso, os pagãos do mundo romano do século IV e V pseudamente «convertidos em massa» ao cristianismo que, sob a influência maniqueísta de Constantino [xviii], identificavam o Filho de Deus com o Sol, levando consigo suas antigas crenças e costumes pagãos, dissimulando-os sob nomes cristãos, «viram com simpatia uma desculpa para continuar celebrando-as sem maiores mudanças», e a adaptarem a sua festa do dia 25 de Dezembro (dia do nascimento do deus-Sol) com o título de «dia de natal do Filho de Deus». Assim foi como se introduziu no mundo ocidental o Natal.

Nesta altura se popularizou, também, a ideia de «a Madona e Seu Filho» na época do Natal. Coisa que vem da longínqua Babilónia e do poderoso caçador CONTRA Deus como se refere no Génesis [xix] «Cuch gerou Nemrod, que foi o primeiro valente da Terra. Foi um valente caçador diante do Senhor (...). As capitais do seu reino foram Babel (...).» (Gn 10,9). Nemrod era tão pervertido que, segundo os escritos, casou-se com a própria mãe, cujo nome era Semiramis. Prematuramente morto, sua mãe-esposa propagou e preservou a "reencarnação" de Nemrod em seu filho Tamuz. E declarou que em cada natal (nascimento) de seu filho, estabelecido como 25 de Dezembro, Nemerod desejaria ter presentes numa árvore. Parece ser esta a verdadeira origem da ÁRVORE DE NATAL.

Semiramis converteu-se na «rainha do céu» e Nemrode (sob diversos nomes) o «filho divino do céu». E esta veneração se propagou a todo o mundo e hoje nos aparece em imagens e estatuetas de «Madona e Seu Filho».

Mas outras leituras nos dizem que a tradição da árvore do Natal vem da Alemanha, tal qual a canção «Noite Feliz». Antes do ano 350 da era cristã, quando o Papa Júlio I, atrás referido, declarou o dia 25 de Dezembro como sendo o dia do nascimento do Messias, já o povo germânico tinha por tradição guardar ramos verdes em casa para afastar os maus espíritos. Esta prática pagã foi substituída pelo hábito cristão de manter ramos verdes em casa como símbolo da vida que Jesus trouxe a este mundo. Mais tarde os ramos foram substituídos por árvores inteiras enfeitados de velas e outros símbolos. A árvore de Natal é, hoje, o maior e principal símbolo do Natal e os ornamentos luminosos significam a luz que Jesus trouxe ao mundo. É a alegria da criançada.

Outros costumes de origem pagã se preservam na festa Natalícia:

A GUIRLANDA (coroa verde adornadas com bolas e fitas coloridas) que enfeita o exterior das portas de tantos lares, significa que ali se celebra o Natal e a demonstração de o compartilhar com os vizinhos. As VELAS, velha tradição pagã que, acesas, serviam para reanimar o deus-Sol, quando este se extinguia para dar lugar à noite.

De PAI NATAL (o Papai-Noel), estudiosos o afirmam, que a figura do bom velhinho foi inspirada no Bispo Nicolau (N. 280 na Turquia), mais tarde tornado santo por milagres relatados, por ser de bom coração, que costumava ajudar as pessoas pobres deixando saquinhos com moedas nas chaminés das casas. 

A associação da imagem do Santo ao Natal nasceu na Alemanha e espalhou-se pelo mundo - nos Estados Unidos tem o nome de Santa Claus, no Brasil Papai Noel e em Portugal Pai Natal. Representado antes (até ao final do século XIX) com uma roupa de inverno de cor marron ou verde escura, apareceu depois, pela criação do cartonista alemão Thomas Nast, em roupas de cor vermelha e branca com cinto preto, que em 1931 uma campanha publicitária da Coca-Cola, que também era da mesma cor, fez sucesso e ajudou a divulgar esta nova imagem do bom velhinho de barbas brancas e radiante pelo mundo: o mundo imaginário das crianças que, na véspera de Natal, deixa o Pólo Norte, onde habita, e, com o seu trenó, puxado por renas, traz presentes - a alegria das crianças - que foram obedientes e se comportaram bem durante o ano.

____________

Bibliografia consultada:




[i] Capítulo 2, versículo 21 do evangelho segundo S. Lucas

[ii] Capítulo 2, versículo 8 do evangelho segundo S. Lucas

[iii] A Enciclopédia Católica: Um trabalho de referência internacional sobre a Constituição, Doutrina, Disciplina, e História da Igreja Católica, também referida como Antiga Enciclopédia Católica e Enciclopédia Católica Original. O primeiro volume apareceu em março de 1907 e os últimos três volumes em 1912, seguindo-se um volume mestre de índices, em 1914, e mais tarde volumes suplementares. Foi projetada para "dar aos seus leitores a informação completa e autorizada sobre o ciclo de interesses católicos, sua ação e doutrina".

[iv] O grande Mestre da Igreja, depois dos Apóstolos, foi um dos maiores teólogos e escritores do começo do cristianismo. Cognominado Orígenes de Alexandria ou Orígenes de Cesareia ou, ainda, Orígenes, o Cristão, foi um teólogo e filósofo neoplatónico e é um dos Padres Gregos. (N. 185 d.C. na Alexandria, Egipto; F. 254 d.C. em Tiro, Líbano.)

[v] Fundamentos Doutrinais (Pg 1462) da Bíblia Sagrada, PAULUS Editora, 7.ª edição, 2011

[vi] Quem foi Lucas? Foi um cristão gentio que talvez tenha sido discípulo de Paulo (Cl 4,14), seja: capítulo 4, versículo 14 do livro bíblico Colossenses.

[vii] Capítulo 2, versículos 1 a 7 do evangelho segundo S. Lucas

[viii] Capítulo 2, versículos 8 a 11 do evangelho segundo S. Lucas

[ix] Adam Clarke (N. 1760 ou 1762; F.1832) foi um teólogo metodista britânico e estudioso da Bíblia. Durante 40 anos estudou a Bíblia, deixando o seu longo estudo em 6 volumes de cerca de 1.000 páginas cada um e que foi o principal recurso teológico Metodista por dois séculos.

x livro bíblico Esdras capítulo 10, versículo 9

[xi] Das três grandes festas ordenadas por Deus, a Festa dos Tabernáculos é a de  maior significado profético para os cristãos. É comemorado no décimo-quinto dia do mês de Tishri, que usualmente bate no final de Setembro ou princípio de Outubro.

[xii] Capítulo 23, versículos 39 a 43 do livro bíblico Levítico
[xiii] Levitas eram aqueles que dominavam a arte do louvor, sendo portadores dos segredos da oração. Derivado do hebraico "lewi" que significa atar ou unir. Relativo a Levi, membro da tribo de Judá, a quem foi confiado a guarda do tabernáculo de Deus quando da partida em direção à terra prometida. Na tradição judaica, um levita é um membro da tribo de Levi. Quando Josué conduziu os israelitas na terra de Canaã, os levitas foram a única tribo israelita que recebeu cidades, mas não foram autorizados a ser  proprietários de terra "porque o Senhor Deus de Israel é sua herança" (Deuteronômio 18:2)

[xiv] livros bíblicos denominados Crónicas 1 e 2

[xv] Capítulo 1, versículos 23 a 24 do evangelho segundo S. Lucas

[xvi] Capítulo 1, versículos 26 a 30 do evangelho segundo S. Lucas

[xvii] É uma enciclopédia religiosa (primeira edição: 1882-84; terceira edição: 1891 com novas edições publicadas em treze volumes 1908-1914). Versa temas relacionados com o cristianismo, essencialmente sob um ponto de vista do protestantismo.

[xviii] Foi um imperador romano, proclamado Augusto pelas suas tropas em 25 de julho de 306, que governou uma porção crescente do Império Romano até a sua morte.

[xix] Capítulo 10, versículos 9 e seguintes

16/12/19

ACERCA DE HÚMUS


(texto lido no dia do lançamento da obra, em Alcantarilha, Algarve)
Autor: Alvaro Giesta


1. Como nasce a obra:
Dizia Einstein «Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio - e eis que a verdade se me revela».
Parece surreal esta introdução de um poeta para começar um texto de apresentação de um livro de poesia, mostrando a necessidade do silêncio que o pai da teoria da relatividade tinha para chegar à verdade que justificava as suas descobertas físicas. Pois... é que esta quietude interior e exterior, este desligarmo-nos de tudo o que nos rouba à quietude interna e externa, é condição sine qua non a quem se entrega à função de descobrir e, quem escreve poesia, quem quer «penetrar surdamente no meio das palavras» (como já dizia Drummond) para descobrir o Belo, tem que ter a brancura do silêncio em si e entre si para fazer do poema a oração necessária.  Também comigo, enquanto poeta, quando me encontro perante o pânico da página em branco tentando encontrar a palavra para erguer o poema, esse pânico consome-me e duplica-se se todos os ruídos do mundo me atormentam e me perturbam. Penso e não encontro o verbo desejado...
          ...este pânico assalta-me, aflige-me o pensar e oiço a minha própria voz a dizer-me que não sou capaz de escrever o poema desejado. E não consigo criar nesse ruído de vozes interiores que me assaltam a alma por dentro. Deixo de pensar, mergulho nesse profundo silêncio tão acolhedor e logo a palavra se me revela nesta "missão" quase messiânica de escrever o poema. E foi assim ao longo de dezasseis noites, mergulhando nessa profundidade silenciosa da noite, que eu escrevi esta obra inicialmente muito longa, de poemas densos que depois transformei, que depois compus com aquilo a que eu chamo o trabalho do oleiro; levando-os quase ao osso, com o labor necessário a moldar a obra em obediência àquele desafio que a perfeição exige..
Nasceu esta obra num dia negro o dia em que minha mulher baixou, intempestivamente, ao Hospital Nossa Senhora do Rosário, do Barreiro, com aquilo que parecia ser uma doença rara e desconhecida no sangue. Assim, no dia 2 de Novembro do ano de 2017, o poema ganhou forma, cresceu e se formou ao longo de 16 noites em que ela foi sujeita a uma multiplicidade dificilmente quantificável de exames hematológicos que os dias eram passados, quase na íntegra, à cabeceira da doente, dando-se por concluído no dia 17 de Novembro, do mesmo ano, com o poema "soltar-se-á o grito de sob a terra dura / no eco da ressurreição". E, com este poema, esta certeza nas palavras dum grande escritor que também ele escreveu uma obra em prosa chamada HÚMUS Raúl Brandão: «a grande verdade e o destino final de cada um de nós, humanos sujeitos à finitude e em nós latente, tem uma certeza, desde o Silêncio à Solidão a Morte, que a cada dia teima em nos bater à porta.»
2. A estrutura da obra:
Húmus é um termo que remonta ao tempo dos antigos romanos, quando era usado para designar o solo como um todo. Apesar do húmus ser estável, ele não é estático, é dinâmico, uma vez que é formado constantemente a partir de resíduos vegetais e animais que são continuamente decompostos por micro-organismos. A importância do húmus para o solo é múltipla. Ele fornece nutrientes para as plantas, regula as populações de micro-organismos e torna os solos férteis. Consequentemente, o Húmus fornece vida. Metaforicamente, é o sítio fértil onde a palavra dormita ainda enterrada em sonhos; a palavra vai criando raízes nesse seio da terra quente e húmida onde se alimenta até nascer para a vida vida que não é mais que um simulacro, pois caminha para esse lugar outro, concreto mas indefinido: a morte.
Este título, embora pareça ser composto de vários poemas é, na realidade, um único poema, formado por seis dezenas de fragmentos, «trabalhando cada componente do poema da obra em prol da própria obra. Como se tratando-se de uma arquitectura em que cada um dos poemas enformadores do livro deixe de o ser e se torne, mais do que fragmento, um órgão: coração, pulmão, rim, fígado, etc. para que o corpo todo adquira vida». (Xavier Zarco, in prefácio à obra A Palavra (des)Velada de AG). Poderá dar a ideia ao leitor que esta forma produzida da escrita poética, seja para facilitar a escrita ao poeta. Mas não, digo-o enquanto autor. Esta forma do poema, assim organizada por fragmentos que se encadeiam uns nos outros parecendo exigir a leitura sequencial para se entender o poema no seu todo, permite, também, que a leitura de cada fragmento possa ser entendida, por si só, como se poema fosse independente dos demais. «A produção da obra, assim pensada e executada, é o resultado de um labor levado à mais extrema das possibilidades do poeta e autor da obra». (Ibidem)


3. A razão desta trilogia com o subtítulo: o Silêncio, a Solidão, a Morte.
Dizia Mário Quintana «Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.» Foi esse encontro com o silêncio, o da noite na solidão do meu quarto vazio, o primeiro leit motiv que me impulsionou a escrever esta obra no silêncio me imaginei um ser-futuro-próximo a conviver com a solidão, aquela para a qual nos projecta o silêncio da noite, do dia, do todo tempo futuro.
Imaginei-me a viver um silêncio de bronze próximo do mármore que faz ricas esculturas mas também fúnebres tumbas. Imaginei-me, numa interminável noite negra, o tal ser-futuro-próximo a um passo tão curto da solidão. Assaltava-me aquele sibilino som que vinha do vazio inalcansável e desconhecido e começava a dar forma a um estado de alma impérvio e nublado tão próximo da solidão. Esse nó inexplicável na garganta que tolhe a voz, esse nó que aperta o peito e estrangula, já não é o silêncio necessário às palavras musicadas, mas o terrível silêncio a mostrar-nos campos de verdades que até aí fingíamos olvidar. E a solidão? Esse terrível medo de estar sozinho está intimamente ligado à nossa percepção de quem somos. Quando sentimos que não somos capazes de cuidar de nós mesmos, experienciamos angústia ao refletir sobre a solidão.
          Continua-se a estar só com a noite / e o silêncio / este silêncio que desliza / no seu inesgotável serpentear réptil / avivando memórias / más memórias / do tempo ingloriosamente perdido.
Aliado ao silêncio, àquele silêncio de estarmos sozinhos e percepcionarmos, enfim, quem somos e o que fomos, lavra sempre a solidão e,
          fio a fio / curva-se a vida à morte / como a luz / à sombra.
A solidão é a condição inevitável do homem Pessoa dizia «Quando estou só reconheço que existo entre outros que são como eu sós». E quantas vezes o homem se sente só, mesmo estando no meio da multidão (já Álvaro de Campos o sentia)!... É nesta profundidade enigmática da sombra que este chão escorregadio nos foge como o mar sem pé, que balouçamos no íngreme abismo entre o céu e o indefinido e ao lado, mesmo ali ao lado da solidão, o espectro da morte. Morte que afinal não é mais do que um caminho para o indefinido, para o lugar nenhum.
          Terrível é amar o silêncio e a tempestuosa / solidão como areia fervente do deserto / terrível é ser-se pó e ter-se por companhia / todas as estrelas pálidas / na lacuna dum céu ausente.

06/11/19

REFLEXOS NO OLHAR de Natália Matos Gomes


por: Alvaro Giesta, poeta

É uma obra de interpretação nada fácil que me desperou a curiosidade, o desejo de a estudar...
          obra de certo modo arrojada, no sentido em que sendo a sua estreia nas publicações a solo se aplica em construir com certa arte e mestria poemas ecfrásticos, coisa incomum nos novos poetas quando digo novos refiro-me àqueles que bastas vezes publicam nas redes sociais.
Obra sobre a qual não posso deixar de dar um recado crítico à coordenação e a quem fez a edição, sobre como a oba foi estruturada. Olhemos para a obra: abre com esse poema que tem por título “Poema Novo “Como eu gostaria de inventar um poema novo: / Sem luar, nem sol, nem mar, / Nem epopeias, nem dias, nem mais... / Apenas um poema novo, / Onde coabitassem loucos e animais”; é esse poema que chama o leitor a seguir a autora para a leitura dos seguintes “Venham comigo / venham”, continua o poema da autora. É um poema ecfrástico em que evoca (traz à lembrança) dois grandes vultos da pintura do sec. XV e XVI, Bruegel e Bosch, respectivamente,  dos muitos que ela evoca ao longo da obra. E, ao longo da obra há mais vinte e dois ou vinte e três poemas que, acompanhados de imagem, ou não, permitiram à poeta escrever o que os sentidos lhe ditaram.

Ora, na minha análise crítica à obra (e não é preciso ser-se crítico, que não sou, para tal se concluir), há logo a seguir ao 1.º poema, que é ecfrástico, uma quebra no segundo poema que nada tem a ver com este tipo de poesia, e novamente traz outro ecfrástico onde evoca Sócrates na Alegoria da Caverna, seguindo-se-lhe novas quebras deste tipo de poesia e outras tantas quebras ao longo da obra, misturando poemas ecfrásticos com outros igualmente muito bons, dentro da lírica, mas desarticulados da écfrase.
Claramente a autora partindo da ideia inicial do “Poema Novo” com que abre a obra e que, claramente, nos está a chamar a atenção para algo que aí vem de novo ao longo da obra, era importante para a sua valorização (da obra) que os poemas ecfrásticos se destacassem dos outros vinte e tal que não são mais do poemas líricos a cantar o amor, o sonho, o tempo, etc... esses poemas ecfrásticos são absolutamente diferentes de todos os outros, pela razão de que a autora “lê nos traços das imagens observadas e exprime por palavras os sentimentos que lhe despertam as feições dessas imagens, sejam telas, sejam esculturas; dialoga com as plásticas dessas imagens que a chamam em prásticas ecfrásticas próximas da tradição grega.”
          Então, quem coordenou a obra, se o fosse verdadeiramente, porque coordenar-se uma obra não se resume apenas à função de mero “pombo correio” que recebe a obra e a remete ao editor, deveria ter proposto à autora, em primeira mão, e ao editor, depois (ou ser este a fazer o que, quem coordenou, não soube fazer) a separação dos poemas por divisão em cadernos: ou seja, o 1.º caderno (que teria subtítulo) abriria com o “Poema Novo” seguindo-se-lhe os restantes ecfrásticos e no 2.º caderno, igualmente com subtítulo, caberiam os outros poemas que nada têm a ver com a poesia ecfrástica. Não tenho dúvidas que qualquer crítico literário verteria algum azedume, mais vinagrento do que o meu, relativamente ao modo como a obra foi estruturada editorialmente. Não deve, quem coordena ou a quem edita, erguer bandeiras apoteóticas quando essas bandeiras são de vã glória.
Duas considerações (exclusivamente minhas e, por isso mesmo, de certo subjectivas)  acerca do conceito do “Novo”, relativamente ao  “Poema Novo” proposto pela autora. A primeira, mais poética, mais sonhadora, mais utópica; a segunda, mais didáctica, mais do âmbito literário.
A consideração mais poética: “Novo” é aquilo que surge de resplandecente, seja no olhar, seja na mente no momento da criação, seja na alma em suas divagações, seja como forma e meio de reformular, perpectuando, sem criticar. Como dizia o poeta Augusto Branco, nascido no coração da Amazónia: “Por que tenho no céu sempre um sol a brilhar, por que tenho a cada amanhecer um novo começo para viver, por que posso partilhar contigo as minhas dores e as minhas maiores alegrias, percebo que neste mundo tudo é de graça, tudo vale a pena!”. É “Novo”  aos olhares da poeta, aquilo que promete ser diferente, é o “Belo” sublimado, é a arte como função poética já transportada e estudada da Grécia Antiga, mas é também esse espaço de fé que temos no mais fundo de nós que nos faz viver apesar das agruras que a vida pode dar-nos, apesar das rasteiras que a vida muitas vezes  nos prega, esse espaço de fé com que a poeta recebe essas agruras da vida a seu modo e se compraz em vivê-las nas palavras com que brinda as alegrias, se são alegrias, as tristezas, se são dissabores.
Isto é utopia ou sonho? Diz Natália: “Como eu gostaria de inventar um poema novo: / Apenas um poema novo, / Onde coabitassem loucos e animais”.
Utopia, é uma ideia fantástica, uma ideia que existe, apenas, no imaginário sem pretensões a ser real; onírica, é uma pretensão com direito ao delírio, dinâmica, nunca estática porque sempre em ruptura com o presente...
          ...loucos são os/as poetas onde apenas com eles, no seu imaginário romântico de sã loucura, consideram que “tudo no mundo é de graça e vale a pena”, como dizia Vinícius de Maraes; louca, mas de sã loucura, é esta poeta que almeja que se possa criar um mundo novo, como “um poema novo, onde coabitem em paz e harmonia loucos e animais”, onde coabitem harmoniosamente todos os seres à face da terra. Utopia ou sonho, é um devaneio poético que (se) imagina como perfeito, como ideal, é o almejado mas utópico, coisa que a poeta sabe irrealizável no real, inalcansável, mas que lhe alimenta a alma onírica, por isso...
          ...advirto, aqui no imaginário poético da autora, o poema novo não é utópico: é fantasia mas, também, é desejo, é o que ambiciona alcançar, é sonho  o maná de todos os poetas. E a poeta nos diz:
“Utopia? Não! É um sonho,                    (um sonho)
Que se concretiza com as quimeras
Que, outrora em minhas manhãs,
As redimensionei no poema novo,
Que ora urge para todo o sempre.”
Os vultos que a poeta evoca no “Poema Novo” nos quais a visão utópica é evidente, são apenas isso “utopia” e não o sonho da autora que o quer ver realizado, hoje e sempre, neste poema novo. Mas não quererá a poeta, também, referindo-se ao “Poema Novo” chamar-nos a atenção para o novo modo de construir o poema que, não sendo de todo novo é, contudo, novo para ela? mais se justifica, aqui, a necessidade de a obra ter sido formatada na edição do modo atrás indicado.
A consideração de “Novo” no conceito mais literário: um dos grandes méritos da literatura moderna, foi reformular o «conceito de tradição a partir da perspectiva do “Novo”» (Octávio Paz). O imaginário clássico propunha, como termo de obrigação, a reverência à tradição como forma de perpectuar o passado sem o criticar; já os escritores modernos, no conceito de Paz, impuseram a via da negação à tradição como forma criativa de com ela se relacionar. Ou seja, esta negação não é recusa ou destruição mas, sim, crítica capaz de manter vivo o passado é uma forma “polémica” de dialogar com o passado e usá-lo de um modo criativo.
Então: por que não olharmos o passado como transtemporal? Sim, porque a poesia ecfrástica mantém uma relação de temporalidade com o passado, nesse diálogo silencioso que a imagem provoca no imaginário do/da poeta! Circunscrevem-se, a partir do imaginário poético, conexões espácio-temporais capazes de inverter o tempo, colocando o passado e o presente em osmose para perspectivar o futuro: aquilo a que se pode chamar de “Novo”. É quase como uma visão cinematográfica, em que o realizador neste caso, o/a poeta faz com que o passado actualize o presente e continue no porvir. Esta imagem do presente no passado, não desconstrói a cronologia do tempo; reconfigura-o, através desta associação de causas temporais nesta relação dialogante “imagem-palavra”.
A écfrase e o pictórico clássico em Natália: evoca a autora, pela écfrase, no poema que abre a obra, como se fosse preâmbulo o seu “Poema Novo”, novo no modo de construir o poema, que não sendo de todo novo, é novo para ela , vultos geniais de indiscutível valor na pintura da Flandres e Holanda dos séculos XV (Bosch) e XVI (Bruegel). E, também alude a esse velho mito da caverna do período clássico da Grécia Antiga, o velho Platão, mas sempre tão actual pela grande verdade que encerra na forma do conhecer, presente no poema “Caverna Oblíqua”. Ao longo de “Reflexos no Olhar”, outros tantos vultos da pintura renascentista, desde Itália a Flandres e Países Baixos, como: Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Nicolaes Maes, Simon Vlieger; depois, num salto quase em fim de livro não deixa de percepcionar Marc Chagall, esse pintor russo da vanguarda modernista que atravessou os séculos XIX e XX, fortemente influenciado pelo cubismo e surrealismo faz das cores da lenda de Lilith esse encantatório poema “Expulsão de Lilith”, a tal figura de lenda hebraica “in.criada por Deus”, antes de Eva, mas originada de um espírito maligno tempestuoso e que mais tarde se tornou identificada com a noite, e foi expulsa do Paraíso. Deixem-me que vos lembre apenas alguns versos deste poema:
Eram apenas bonecas de papel,
Que eu recortava de revistas,
Por vezes, até de cordel.
E furtava-me para o paraíso,
Perdida neste mundo de fantasia.
As minhas bonecas dançavam
Com os deuses e com as árvores,
E os frutos eram reluzentes
E tinham serpentes ondulantes,
Convivendo sem precedentes,
Como a Eva e o Adão,
Que caíram na tentação.
Logo desconstrui Lilith
E expulsei-a do meu jardim...
(...)
Podemos dizer, da força dos poemas aqui deixados, que Natália Matos Gomes é uma estudiosa do pictórico clássico. O estudo das obras sobre que se debruça, de artistas flamengos e do renascimento com as quais tomou contacto nas múltiplas viagens e longas estadias pela Europa, nesses olhares  sobre os lugares por onde passou e passa, transpôs para o verso aquilo que a visão lhe ditou em palavras para escrever grande parte desta obra nela viajou por Toscana, Florença e Siena, estendeu-se, depois, da Rússia à Europa Ocidental (Tchecoslováquia e Alemanha 'com Kafka', Países Baixos e França), para terminar neste recanto da Península Ibérica à beira-mar plantado, em diálogos com as aguarelas actuais do serigrafista deste século, Paulo Ossião.
Vem de longe a écfrase “ekphrasis”, substantivo grego traduzido para o termo latino “descriptio” que tem como objectivo primeiro a produção pelo método discursivo da visão detalhada de algo (objecto, pessoa, pintura, estátua, lugar ou acontecimento), a que Aristóteles chamou “a clareza, a visão clara e distinta”, e a que Cícero acrescentou com o emprego do vocábulo latino “euidentia” (evidência). Écfrase,  é a descrição pela palavra, das suas particularidades sensíveis ou inventadas pela fantasia, que o objecto observado desperta no ouvinte, no leitor, neste caso na poeta Natália que observa, que vê, que lê com os olhos da imaginação e a passa ao papel em seus versos. A poeta usa a “palavra visual” para dar voz à obra de arte, coisa nada fácil de fazer; exprime pela palavra escrita os sentimentos que lhe despertam as feições das pinturas e esculturas ou os lugares por onde passa; dialoga, pela ousadia da imaginação, com as plásticas das imagens que a chamam.
[Quando li Natália pela primeira vez, veio-me à memória Konstandinos Kavafis, poeta grego do sec. XIX, que  “constrói o poema através da imaginação de personagens que fixam a verbalidade textual” (Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, tradutores de Kavafis que lhe prefaciam a obra OS POEMAS). Sei, contudo, que a poeta Natália, de Kavafis, não sofreu influência, porque nem sequer o conhece indiquei-lhe muito recentemente a leitura desta obra.]
Estas práticas ecfrásticas da poesia moderna e contemporânea, próximas da tradição grega  numa relação íntima entre a palavra e a imagem vêm de longe. Possuem uma longa história começando na descrição do escudo de Aquiles, na Ilíada (canto 18, vv 478 a 608).
[Como curiosidade e a propósito da descrição de objectos de caracter artístico, ainda que haja diversas versões da descrição ecfrástica do escudo de Aquiles, com as quais nem sempre os críticos estão de acordo nos seus estudos, a descrição que serve para demonstrar a arte da construção do escudo, ao longo de 130 versos, é feita em cinco camadas chamemos-lhe 5 ciclos diferentes; grosso modo e mal comparado, é muito aquilo que certos poetas consagrados usam, com arte, quando querem escrever uma obra dividida em partes subordinadas ao mesmo tema, mas em termos de circularidade concêntrica.]
E para terminar: “O que há dentro de mim...” o que há de tão mais importante que a écfrase, no poema lírico de Natália? O que há dentro da poeta Natália? O que lhe sai de dentro da alma? Desse “vaso acutilante de seiva / que o tempo quis secar”? Isso nos revela ela num dos mais belos poemas da obra, de que deixo alguns traços:
O que há dentro de mim
É um vaso acutilante de seiva
Que o tempo quis secar, (...)

O amor não morre,
É de uma doçura exausta e mansa;
É um olhar, um recado, uma aventura
Das órbitas cimentadas no corpo.

No corpo e na alma que decide
As vontades – e contraria desejos,
E raciocina sobre a justa medida do amor,
Que se constrói, (...)

O amor é o alimento do momento eterno
E vai sempre em viagem, (...)
Tão mais fascinante que o labor com que talha os poemas da obra, aqueles com recurso à écfrase, é o poder do silêncio das imagens com que afronta a brutalidade dos dramas do tempo e das paixões humanas: “O que há dentro de mim / É um vaso acutilante de seiva / Que o tempo quis secar, mas pugnei / Pelos deuses e eles vieram em socorro”. Do imaginário da poeta Natália nascem visões fantásticas transpostas para imagens catalizadoras de emoções que provocam no leitor atento de “Reflexos no Olhar”, sujestões outras que o farão despertar para a atracção pela criação do Belo.


Alvaro Giesta, poeta

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...