06/05/19

No Hálito de Afrodite (poesia erótica) de CÉLIA MOURA

Autor: Alvaro Giesta



1.       Introdução
 Assim os olhos se deleitem com os versos que compõem a obra poética; assim os olhos se extasiem no prazer da leitura e no encontro com o/a autor/a nas páginas da obra que nos dá; assim os olhos se interroguem daquilo que apreendem dos poemas de fértil obra, quando a obra é fértil; assim o tempo não se esgote no silêncio das palavras e nos faça parar, apenas, no tempo do/a poeta, para nelas meditar e entre elas respirar
                                                                                                                        ↓
                                                                                                  [assim eu escreva com o rigor possível da obra a analisar, mesmo não aspirando a púlpitos nem louvores, sequer formas remuneratórias, que o prazer da escrita é o único leit motiv por que o faço.]
         ↓
         Porque todo o rigor é resistência à (in)exactidão do que se possa escrever e do que se possa dizer, pois há sempre o receio de injustiça em cada um de nós, que analisa e critica, quando nos propomos debruçar sobre livro de poeta ou escritor com obra já formada. E porque toda a memória se nos deve reger pela seriedade imposta no princípio da isenção quando vertemos opinião sobre obra de autor conhecido, distanciemo-nos do seu nome, separando o que a obra nos merece dizer da amizade que ao mesmo nos liga.


2.       A crítica
        (...)

3.   A obra
         ¾ dos limites da literatura erótica às fronteiras do pornográfico:
Dos muitos poemas lidos na obra "No Hálito de Afrodite" concluiu-se que nela, ainda que num ou noutro poema se roce as raias do pornográfico, não se vai além do erotismo ¾ embora um erotismo ousado que eclode num "amor-paixão", mas nunca ditando uma poesia nitidamente fálica ou clitoriana. Há, contudo, versos e poemas onde a libido corre livre e solta, em avalanches e rios como "mãos, dedos, flancos, coxas, ventre, nádegas, mamilos, línguas, gemidos, gritos, sexo, púbis, beijos, sémen, seios, virilhas, infinito clitoriano, prazer, tesão..." e muitos, muitos mais, num léxico marcadamente erotizado onde a poeta-mulher é o centro do universo, o receptáculo e fonte do prazer, subordinando-se, submissa (quase sempre) ao desígnio masculino.
Vejamos dois ou três exemplos:
         "na púbis do teu pincel me devoras", "no declínio do meu ventre descansas", "que tuas mãos sejam / o lume que invade as minhas coxas", "línguas que se perdem e prendem", "se permito que te aninhes no meu néctar / e me devores / é apenas porque a sacerdotisa do tempo / urge morrer em ti" e "só assim renasço".

Mas nem sempre é passiva; ela é, também, sujeito activo no envolvimento dos corpos.
Vejamos:
         "desço pelas virilhas que já ousei morder", "quero sangue, seiva, sémen / muito mais...", "escorre-me pelas pernas / este frémito / é como um séquito / o desejo / que me invade a púbis, as coxas / e o tal infinito clitoriano", "escorrem-me pelas pernas os beijos / que me não dás / pelos abundantes seios que acaricio / faço renascerem erectos os mamilos", "no teu sémen / faz-me vir de novo".

Na obra nota-se deliberadamente, quase descaradamente, uma ânsia de dádiva total por parte do sujeito poético, quer seja passivo ou activo ¾ é próprio duma pulsão contemplativa numa entrega total do corpo e, ao mesmo tempo, uma luta pela verdade: "quero mais alva a verdade / mais veloz que o vento / e feroz", "mais verdade o amanhã / no amor que me juraste", "só as línguas (...) são verdade / e eu fico aqui nas escarpas do abismo a aguardar / a verdade do amanhã".
Destaca-se que, ao longo da obra, há certas palavras escritas a letra maiúscula, usadas no verso com um certo sentido onírico: "Alienação, Vertigem, Caminho, Verdade, Amanhã, Loucura, Ternura, Silêncio, Dor, Vida, Xadrez, Sonho, Bem, Mal, Partida...", e outras com sentido  mitológico quando cita divindades antigas, a começar pelo nome da obra: "Afrodite, Olimpo, Ísis..." indispensáveis e necessárias a uma obra de conteúdo erótico e de valor literário, como não podia deixar de ser nesta obra.

         ¾ da semântica:
Uma vista, ao de leve, sem me embrenhar na semântica, que isso é para técnicos, que não sou.
Nota-se na obra e com certa intensidade o pronome pessoal em adjacência verbal com a decisão intencional do pronome, no final do verbo: "desabito-te", "embriaga-me", "guarda-me", "sobrevive-me", "sacudindo-te", "faz-me (vir de novo)". Reside, no valor semântico das formas verbais (quando no modo imperativo) mais do que uma súplica ou um pedido, uma ordem, aliando-a ao movimento quando, adjacente, se emprega o gerúndio.
No modo subjuntivo (um modo de incerteza, de desejo, de possibilidade, de dúvida, hipotético, incerto, de irrealidade) há uma estrutura verbal subordinada a outro verbo no verso muito verificada ao longo da obra ¾ é uma acção subentendida ou expressa que está ligada à vontade, à imaginação, ao sentimento, estabelecendo até, muitas vezes, uma relação condicional: "fico aqui a aguardar", "se permito que te aninhes e me devores" é porque, e "que ao menos me acariciasses / e me fizesses gritar", "vou ao sémen das madrugadas / à procura de um sorriso", "quando te deitares comigo / não pises as camélias", "aguardo o teu corpo / onde me arrasto", "quisera eu ser meu próprio vinho / e voltar a ser eu".

         ¾ da exaltação do corpo:
Há um universo extravagante e fantasioso nesta obra. Quase sonhos perpétuos ¾ o amar-se, o sentir-se amada. Poemas extremamente belos como "Urge enxotar-te do meu corpo", ou como "Quisera eu ser teu âmago" onde, na exaltação ao corpo, o próprio "eu" se expurga do outro-eu ou do eu-outro, daquilo que o "outro" deixou de si em si, como se isto fosse um acto de purificação: "urge enxotar-te do meu corpo / retornar a mim / remover a paixão / deambular descalça pela estrada / e sentir-me viva".
Até poderemos considerar que o "outro" é o próprio "eu" narcisista no regresso a si, ainda que duvide ter sido algo, alguma vez: "quisera eu ser meu próprio vinho / meu regaço / minha alma à berma / do Caminho / e voltar a ser eu / aquela que fui / coisa nenhuma".
Há poemas em que neste desejo narcisista a poeta (quase) se deseja imperial, (quase) se deseja oiro e o grito que ordena e exige: "se permito que te aninhes no meu néctar / e me devores / é apenas porque a sacerdotisa do templo / sorri / e urge morrer em ti / (...) / e só assim renasço..."; ainda que se reconheça "mutilada" quiçá por acontecimentos que a marcaram anteriormente e que não deseja recordar: "meu oxigénio não passa desse umbral", "embriaga-me no frenesim / do teu corpo / e não me deixes regressar / ao porto de abrigo", "embriaga-me de lua cheia (...) / só não me deixes regressar".


(Para terminar abre-se aqui um parênteses para dizer que a mente criadora é maravilhosa quando a dúvida incendeia o ser que se interroga e se questiona na esperança de alcançar o seu próprio espaço, mas perigosa quando na mente criadora existem laivos bipolares agravados pela obsessão. Duvidar de si e amar-se, ao mesmo tempo, é um dom imanente a certos poetas e com isso sofrem e muitas vezes os levam a fins trágicos. Sempre assim foi, a literatura está cheia disso.)




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