Autor: Alvaro Giesta
1.
Introdução
Assim os
olhos se deleitem com os versos que compõem a obra poética; assim os olhos se
extasiem no prazer da leitura e no encontro com o/a autor/a nas páginas da obra
que nos dá; assim os olhos se interroguem daquilo que apreendem dos poemas de
fértil obra, quando a obra é fértil; assim o tempo não se esgote no silêncio
das palavras e nos faça parar, apenas, no tempo do/a poeta, para nelas meditar
e entre elas respirar
↓
[assim eu
escreva com o rigor possível da obra a analisar, mesmo não aspirando a púlpitos nem
louvores, sequer formas remuneratórias, que o prazer da escrita é o único leit motiv por que o faço.]
↓
Porque todo o rigor é resistência à
(in)exactidão do que se possa escrever e do que se possa dizer, pois há sempre
o receio de injustiça em cada um de nós, que analisa e critica, quando nos
propomos debruçar sobre livro de poeta ou escritor com obra já formada. E
porque toda a memória se nos deve reger pela seriedade imposta no princípio da
isenção quando vertemos opinião sobre obra de autor conhecido, distanciemo-nos
do seu nome, separando o que a obra nos merece dizer da amizade que ao mesmo
nos liga.
2.
A crítica
(...)
3. A obra
¾ dos limites da literatura
erótica às fronteiras do pornográfico:
Dos muitos poemas lidos na obra "No Hálito de
Afrodite" concluiu-se que nela, ainda que num ou noutro poema se roce as
raias do pornográfico, não se vai além do erotismo ¾ embora um erotismo ousado
que eclode num "amor-paixão", mas nunca ditando uma poesia
nitidamente fálica ou clitoriana. Há, contudo, versos e poemas onde a libido
corre livre e solta, em avalanches e rios como "mãos, dedos, flancos,
coxas, ventre, nádegas, mamilos, línguas, gemidos, gritos, sexo, púbis, beijos,
sémen, seios, virilhas, infinito clitoriano, prazer, tesão..." e muitos,
muitos mais, num léxico marcadamente erotizado onde a poeta-mulher é o centro
do universo, o receptáculo e fonte do prazer, subordinando-se, submissa (quase
sempre) ao desígnio masculino.
Vejamos dois ou três exemplos:
"na
púbis do teu pincel me devoras", "no declínio do meu ventre
descansas", "que tuas mãos sejam / o lume que invade as minhas coxas",
"línguas que se perdem e prendem", "se permito que te aninhes no
meu néctar / e me devores / é apenas porque a sacerdotisa do tempo / urge
morrer em ti" e "só assim renasço".
Mas nem sempre é passiva; ela é, também, sujeito
activo no envolvimento dos corpos.
Vejamos:
"desço
pelas virilhas que já ousei morder", "quero sangue, seiva, sémen /
muito mais...", "escorre-me pelas pernas / este frémito / é como um
séquito / o desejo / que me invade a púbis, as coxas / e o tal infinito
clitoriano", "escorrem-me pelas pernas os beijos / que me não dás /
pelos abundantes seios que acaricio / faço renascerem erectos os mamilos",
"no teu sémen / faz-me vir de novo".
Na obra nota-se deliberadamente, quase descaradamente,
uma ânsia de dádiva total por parte do sujeito poético, quer seja passivo ou
activo ¾ é próprio
duma pulsão contemplativa numa entrega total do corpo e, ao mesmo tempo, uma
luta pela verdade: "quero mais alva a verdade / mais veloz que o vento / e
feroz", "mais verdade o amanhã / no amor que me juraste",
"só as línguas (...) são verdade / e eu fico aqui nas escarpas do abismo a
aguardar / a verdade do amanhã".
Destaca-se que, ao longo da obra, há certas palavras
escritas a letra maiúscula, usadas no verso com um certo sentido onírico:
"Alienação, Vertigem, Caminho, Verdade, Amanhã, Loucura, Ternura,
Silêncio, Dor, Vida, Xadrez, Sonho, Bem, Mal, Partida...", e outras com
sentido mitológico quando cita
divindades antigas, a começar pelo nome da obra: "Afrodite, Olimpo,
Ísis..." indispensáveis e necessárias a uma obra de conteúdo erótico e de
valor literário, como não podia deixar de ser nesta obra.
¾ da semântica:
Uma vista, ao de leve, sem me embrenhar na semântica,
que isso é para técnicos, que não sou.
Nota-se na obra e com certa intensidade o pronome
pessoal em adjacência verbal com a decisão intencional do pronome, no final do
verbo: "desabito-te", "embriaga-me", "guarda-me",
"sobrevive-me", "sacudindo-te", "faz-me (vir de
novo)". Reside, no valor semântico das formas verbais (quando no modo
imperativo) mais do que uma súplica ou um pedido, uma ordem, aliando-a ao
movimento quando, adjacente, se emprega o gerúndio.
No modo subjuntivo (um modo de incerteza, de desejo,
de possibilidade, de dúvida, hipotético, incerto, de irrealidade) há uma
estrutura verbal subordinada a outro verbo no verso muito verificada ao longo
da obra ¾ é uma
acção subentendida ou expressa que está ligada à vontade, à imaginação, ao
sentimento, estabelecendo até, muitas vezes, uma relação condicional:
"fico aqui a aguardar", "se permito que te aninhes e me
devores" é porque, e "que ao menos me acariciasses / e me fizesses
gritar", "vou ao sémen das madrugadas / à procura de um
sorriso", "quando te deitares comigo / não pises as camélias",
"aguardo o teu corpo / onde me arrasto", "quisera eu ser meu
próprio vinho / e voltar a ser eu".
¾ da exaltação do corpo:
Há um universo extravagante e fantasioso nesta obra.
Quase sonhos perpétuos ¾ o amar-se,
o sentir-se amada. Poemas extremamente belos como "Urge enxotar-te do meu
corpo", ou como "Quisera eu ser teu âmago" onde, na exaltação ao
corpo, o próprio "eu" se expurga do outro-eu ou do eu-outro, daquilo que o
"outro" deixou de si em si, como se isto fosse um
acto de purificação: "urge enxotar-te do meu corpo / retornar a mim /
remover a paixão / deambular descalça pela estrada / e sentir-me viva".
Até poderemos considerar que o "outro" é o
próprio "eu" narcisista no regresso a si, ainda que duvide ter sido
algo, alguma vez: "quisera eu ser meu próprio vinho / meu regaço / minha
alma à berma / do Caminho / e voltar a ser eu / aquela que fui / coisa
nenhuma".
Há poemas em que neste desejo narcisista a poeta (quase)
se deseja imperial, (quase) se deseja oiro e o grito que ordena e exige:
"se permito que te aninhes no meu néctar / e me devores / é apenas porque
a sacerdotisa do templo / sorri / e urge morrer em ti / (...) / e só assim
renasço..."; ainda que se reconheça "mutilada" quiçá por acontecimentos
que a marcaram anteriormente e que não deseja recordar: "meu oxigénio não
passa desse umbral", "embriaga-me no frenesim / do teu corpo / e não
me deixes regressar / ao porto de abrigo", "embriaga-me de lua cheia
(...) / só não me deixes regressar".
(Para terminar abre-se aqui um parênteses para dizer
que a mente criadora é maravilhosa quando a dúvida incendeia o ser que se
interroga e se questiona na esperança de alcançar o seu próprio espaço, mas perigosa
quando na mente criadora existem laivos bipolares agravados pela obsessão.
Duvidar de si e amar-se, ao mesmo tempo, é um dom imanente a certos poetas e
com isso sofrem e muitas vezes os levam a fins trágicos. Sempre assim foi, a
literatura está cheia disso.)
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