29/07/20

PARA ALÉM DAS PALAVRAS


(uma crítica à poética de José Baião)
texto de Alvaro Giesta

Introdução:

Sei que há por aí poetas que não gostam que se fale e que se diga poesia e sobre poesia de poetas outros, ainda vivos entre nós ou já passados ao eterno, e preferem que seja a sua poesia a dominar o panorama poético presente e futuro. Puro egoísmo ou absoluta ignorância?
 O que leva a interrogar (-me): como é que eu posso saber, como é que eu posso demonstrar saber, se nunca li nada  ou muito pouco  para além de mim, para além daquilo que eu próprio escrevo? Como é que eu posso dizer que o que escrevo é bom, isto é, tem valor  para além do restrito valor que os amigos atribuem às minhas obras, que muitas vezes nem leem e apenas conhecem pela rama nesse alfobre de poetas facebokeanos que me classificam apenas com curtos adjectivos de cortesia  como é que eu me posso afirmar literariamente apenas com base nos elogios do momento, como é que eu me posso avaliar pelo que sou ou deixo de ser, se eu não tenho, como suporte, em termos comparativos, o conhecimento da escrita dos meus pares? Isto para não falar na crítica literária... assunto melindroso pela falta de honestidade e objectividade dos críticos actuais que funcionam em compadrio com editoras, com certos autores e com certas campanhas de atribuição de prémios literários. Puro mercantilismo. Salvo raras e honrosas excepções, não se faz crítica, aquela que disseca, analisa, pormenoriza, caracteriza, entende, estabelece paradigmas e destila ensinamentos.
Quanto à poética em questão  aquela aqui em análise , atrevo-me a perguntar(-me) a mim mesmo: Como poderia eu falar do Poeta José Baião Santos se não me tivesse interessado por ler de si  ainda que muito pouco , para dele dizer com a propriedade que me confere o meu ponto de vista?!

Sobre o poeta:

Eis a razão da pequena nota de abertura àquilo que vou dizer da poesia do poeta em apreço. Falemos agora de poesia, no geral (apenas um ou dois minutos) para depois enquadrarmos este autor. Nos estudos essenciais para a Poesia e Poema dizia-nos Octávio Paz (e lá voltamos nós aos poetas que já passaram ao eterno para indisposição daqueles que só conhecem, e nalguns casos mal, poetas vivos,  mas que, no dizer do Poeta José Duro  outro que há muito nos deixou  nos dois últimos versos do seu último poema inserto no livro FEL «o poeta nunca morre embora seja agreste / a sua inspiração e tristes os seus versos», sublinho, dizia-nos o poeta chileno Paz, no seu longo ensaio que lhe valeu o Nobel da Literatura em 1990 «A poesia é conhecimento, é um exercício espiritual, é um método de libertação interior; a poesia revela este mundo; cria outro. A poesia é pão dos eleitos; é inspiração e transpiração. É súplica ao vazio, é diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e desespero. É oração, é epifania, é sublimação... é arte de falar.» E eu acrescento: "é arte de escrever em forma superior." Muitas outras qualificações poderiam aqui ser referidas, repetindo Paz ou outros poetas a quem a fama aureolou com palma sobre a cabeça, para definir a indefinível forma superior da escrita  a poesia.
Com muita dificuldade, não de entendimento dos poemas lidos do poeta José Baião em "Poema Sobrevivente", "As casas", "A Linha de Fronteira", "Dança Ritual", "MOMENTANEAmente" e muitos outros das pesquisas feitas  que, diga-se em abono da verdade, não são poemas simples de entender, pela exuberância do verso e do verbo no uso que faz de sábias palavras  mas dificuldade, sim, da escolha, deixo aqui pequenos excertos em obediência ao tempo que me é dado para a prelação.
O "Poema Sobrevivente", como diz o autor «sobressai nos antípodas da retórica corrente o mito da liberdade». Eu digo mais: neste fenómeno da escrita de José Baião Santos, onde provavelmente o poeta nunca quis mais do que fazer acontecer a palavra poética, sem resistência e sob a forma do texto arbitrariamente designado por "Verso Livre", facilmente se depreende  sem a necessidade de ser grande especialista na matéria  de que este projecto (aliás, toda a poesia do poeta que me foi dado conhecer) tem absoluto substracto literário, ainda que o poeta, pela sua humildade e simples modéstia, sem vaidade, nos possa dizer que está longe de si essa intenção. Deliciemo-nos com este poema em que o fenómeno poético, criado pela organização de imagens em associações criativas, dão o essencial significado àquilo que a poesia precisa para tal ser: ritmo e imagem  inseparáveis no articulado dos poemas de José Baião.

«Tu és a agua
 Eu sou o ventre das algas
 Enquanto estivermos a sorrir a máquina eólica vai pulverizando o linho fiado
nas espadas de ébano
Os líquenes        e a dor
Beijam a terra com subterrâneos de casas        e pele envelhecida pelo fogo
Os insectos sobrevoam navios
Dizias-me tu, ontem
Que a guerra só destrói os crânios das árvores,
Deixando intactos os diospiros da morte
Enforcados nos ramos do vento

Esplêndida ideia para os homens:
- Um dilúvio, em vez da deflagração de um violino num casulo de comédia
(...)

O peso e o lume das palavras
Repartem entre si
O espaço sideral        Sulcado de moinhos de chuva
Que se eleva acima
Do ódio e da verdade

Aquele corpo ali
Que foge entre as ameias do mar
Esconde no sexo
Anos de morte e solidão

As aves que voam na sua direcção
São os anjos do pudor
Capazes de ferir um coração sentado nas pétalas do deserto

Pedem-me que me cale
Que ignore a fúria da lealdade
(...)

Querem-me inerte, anémona em vez de livro
Para que se oiça o véu da cobardia
A crisálida azul onde guardavas as joias e os troféus
(...)

O que vocês ambicionam
- confessem lá, ó gigantes do nada! ­
É a perpétua rendição dos desejos
Onde eu me refazia das anestesias da solidão há muitos milhões de anos
Deitado a olhar os segredos
Da neblina»

Parece um poema imprevisto, não é?! Pois a poesia de José Baião não deriva, nem do assunto tratado, nem da forma adoptada  aliás, ele é mestre do verso longo e do extenso poema do verso livre a lembrar Walt Whitman, que o introduziu na América, e continuado por Pessoa e outros que só interessaria aqui referir com mais profundidade se isto fosse ensaio ou aula de literatura para que não estou habilitado academicamente. Mas não é: é apenas uma breve homenagem ao poeta José Baião Santos e, por isso, dele falo.
O poema atrás referido é um pequeno extracto do longo "Poema Sobrevivente" escrito por fragmentos  vinte e um longos fragmentos  de longos versos. Parece ser coisa simples de fazer: escrever um poema que muitas vezes forma uma só obra, por fragmentos e sem sujeição às cadeias da pontuação, especialmente ao ponto final, mas não é. É coisa bastante difícil de fazer pela complexidade e encadeamento da ideia poética que se pretende transmitir a quem lê  é como se cada fragmento do poema fosse, por si só, um órgão: coração, rim, pulmão, membros a dar consistência e força ao poema, a formar o corpo.
O seu poema  e aqui "poema" cabe àquilo que conheço da sua poesia  é a projecção de uma ideia através da emoção. Ele serve-se da emoção  aquilo que faz o encanto na leitura dos seus poemas  não como base da sua poesia mas como ideia para dar às suas palavras a forma de poesia como se fosse epifania (sem conotação religiosa, claro). São encontros casuais de palavras que ele extirpa do sentido comum, são palavras em fricção, em choque entre vocábulos que dão à sua poesia um "jorro enorme de faúlhas sábias".

«Cada palavra
Lançada aos esporos do silêncio  
               abre-se como um fruto
(...)

 A luz das palavras
Devolve a magia dos dedos
Até se refazer da coragem
Dispersa com pedaços de um vento frio
Como toda a agonia da tarde»

A poesia de José Baião vem de longe  vem do âmago, do interior, do fundo da alma, mas toda ela de cariz estético: é nisto que reside a arte da poesia. De verso longo, não hesita em entranhar-se nos sentidos florestais do poeta ­ como se numa passagem de "poesia impura" a "poesia pura" (não aquela que não procura senão a harmonia, o ritmo, a melodia  que não seria mais do que música  mas aquela que se considera ser no poeta Baião, poesia intelectual, embora nunca se expurgando dos vestígios de vida; se assim fosse "expurgada de vida" estaríamos perante uma poesia fria, calculista, uma poesia traçada a compasso e a esquadro como no tempo dos concretistas. Esta, do José Baião, é poesia com a alma do poeta dentro e a existência do real por companhia. Como o poeta diz: «Demos as mãos / eu e a evidência // Acredite-se ou não / recebi como recompensa das mãos da bondade / o veneno do sal». E ainda, dele «(...) pergunto ao camponês que dorme nas esteiras de colmo qual o melhor caminho para alcançar a água dos deuses (mas) nunca ninguém ouviu falar de um tal caminho (...)».
Mesmo quando em "Linha de Fronteira"  um longo poema  ele nos oferece a poesia sob uma crosta áspera, austera, com reservas de eloquente "não-dito", repare-se que a roupagem poética é simples, mas interessa desnudar o corpo, descobri-lo, porque lá dentro há um tesouro escondido como se fosse a cavidade oca de uma rocha com o interior revestido de cristais.

«De um lado estamos nós, feridos no caule
Do outro lado a plenitude das aves que sobrevoam os corpos de linho
Transpomos os continentes, com uma única excepção ­- O CONTINENTE DISPERSO

Vejo os dias empurrar os navios
Para a linha de fronteira, de lá para cá, com os seus ventres
De sargaço rastejante
Até que o sol denuncie a presença de uma melodia contaminada pelo óxido
Das estradas
Viajo entre dois mundos sem sentir
(...)

A fronteira que divide a paisagem do ódio em dois astros
Reparte as angústias
Acende velas de inconciliável egoísmo
(...)»

É como diz Fernando Lobo em "Elogio Breve" dedicado a José Baião, poeta convidado da Revista Literária A Chama, na sua edição n.º 8 do 2.º trimestre de 2014  os versos do poeta Baião são (e cito) «enlaces de metáforas que o afasta, categoricamente, da falácia doutros poetas para nos projectar no universo ideativo da fala, de modo a descobrirmos uma reentrância no espaço poético e ideológico da palavra.» E eu acrescento: nesta conjugação de palavras poéticas, na ideia de interacção entre elas, o poeta José Baião  que tão arredio anda de edições de novas obras que tardam em chegar  transfere para o poema o mundo sob a forma de eco, e não do eco do mundo. Ele não altera o mundo com as suas palavras porque permite ao outro  a quem o lê e interpreta  a perceção do mundo. Do seu poético e ideal mundo.
Estas «águas fecundas», que alastram «ao ritmo da dissolução da memória»,  servem para resgatar a palavra ao nível da interpretação poética e do conhecimento. Assim, diremos como Gil Jouanard que «a poesia, vem sempre de mais longe do que aonde as palavras são capazes de nos conduzir». E como o poeta chileno Paz  lá voltamos nós ao grande mestre, eixo e ponto de referência: «A poesia polariza-se, congrega-se e isola-se num ponto humano: quadro, canção, tragédia  o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente».
Vejam, em Baião, no "Silêncio da Dor" em EGODISTONIA esta tríade atrás referida ─ poesia que se ergue e forma o corpo:

«(...) o corpo esconde-se na palavra
para poder sofrer
sem que ninguém o ouça
Tudo lhe fere as veias - os ossos
o sémen - penetrando a raiz do medo
Sem dúvida inventaste o grito da terra
para nos aproximar do passado
esse lugar onde desvendamos a fórmula
do silêncio incolor
como o beijo dos felinos»




Plagiando de algum modo palavras do poeta simbolista Gomes Leal, vejo em José Baião um trabalho laborioso da ideia, um lapidar da palavra poética com os versos encatenados entre si formando um rosário luminoso conduzindo-nos sem dificuldade ao objectivo final do poema ─ parece-me um «laboratório intelectual» num processo semelhante ao da natureza transformando da lagarta a borboleta, do carvão o diamante, e da ostra doente a pérola».

E antes de terminar, como comecei em "Sobre o poeta", que o medo era não lhe conseguir, a meu modo, desvendar das sombras o segredo das palavras, subi com ele os degraus de MOMENTANEAmente, livro sabiamente ilustrado com fotografias de Maria do Rosário Veloso, a dar-nos, logo na capa a ânsia de descobrir o rosto da palavra (prefiro dizer "os vários rostos" que a palavra poética tem) por detrás da máscara segura na firmeza da mão feminina  que para lá da palavra poética há muito mais que o seu simples sentido etimológico, ou seja, que a simples verdade das palavras, que o seu simples significado de origem. A linguagem poética em José Baião é como um rio que nas enchentes afaga as margens, mas também as varre numa limpeza sem dó para a renovação da natureza. Porque, como não podia ser de outra forma, a linguagem poética alia-se ao tempo, que em Baião é metamórfico  neste correr sempre renovado das águas do rio o seu tempo poético transforma-se opondo-se ele próprio à sua não-transformação. Ao negar estereótipos, em cada instante poético produz um instante novo  e gerador, capaz de criar novos tempos sempre diferentes do primeiro, porque só assim a poesia não estagna  só assim vive. Ainda que por vezes resista à dificuldade da interpretação, porque a poesia também é isso não mostrando o obvio tem que desencadear sempre no leitor o desejo da interpretação, ela também bebe a seiva na inquietação dos tempos sempre actuais, tão cheios de verdade indignada tantas vezes oculta nas sombras de tratados de mentira.

«escreves a vida
com palavras de terror

o ódio e a crueldade fizeram de ti um monstro de pedra
ambicionavas construir um mundo melhor
sobre as ruínas do que julgaste ser as trevas e a vergonha
No momento em que ergueste o teu cálice para clamar vitória
jorrou uma lágrima de sangue das tuas vítimas
sepultadas no pó da memória

Quando ergueste o teu cálice
o gás da morte envenenou os malmequeres dos corpos
e fez-se um longo silêncio entre o céu e a terra
para escutar o choro das crianças     na noite gelada

escreves a vida
com lendas de terror e fazes tratados de paz com a morte.»

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...