30/05/20

O mito das raças


«Lutar contra o racismo, para citar uma alegoria do filósofo americano Rudolf Carnap (1891-1970), é como tentar consertar um barco que navega no oceano agitado por uma tempestade.», diz-nos Pierre-André Taguieff, filósofo e cientista político francês do Centro Nacional de Pesquisas Científicas, em entrevista concedida à revista Super Interessante, edição 66, de Março de 1993.
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Cada vez mais se me afigura de difícil resolução o combate que se trava contra o mito das raças, que alastra, quer no âmbito do conflito religioso (cada vez mais sangrento pelo fanatismo das religiões que são transversais ao mundo actual, fanatismo incompreendido para o homem que se diz civilizado e temente a Deus), quer no âmbito de políticas divisionistas e raciais que teimosamente insistem no conceito da raça - superior e inferior - que simplesmente não existe, e investem, de forma destrutiva, em formas de resolução, que não passam de hipócritas e oportunistas tentativas.
A lei dos tempos actuais, e com razão, insiste em que, se não existe o conceito de raça, maior razão há para que seja eliminado o racismo pondo termo às velhas teorias de raça. Pura ilusão! Não há nada de mais demagógico do que dizer que é possível eliminar a palavra "raça" terminando com o conceito rácico. E porquê? Porque a palavra "raça" não é apenas mero conceito. É uma realidade mais do que simbólica, porque é um termo de linguagem que identifica as várias pessoas pela sua cor da pele. E, negarmos esta evidência, é navegarmos num universo de pura hipocrisia.


Por muito que nos custe, por muito que repugne o "homem bom, não oportunista e civilizado", não nos podemos alhear de que a realidade da "cor da pele" ou do "aspecto dos cabelos", existe. E, existindo - mas não o devendo ser, acentuo -, esta realidade não deveria ser motivo de diferenciação e distinção social, de segregação e estigmatização. Mas, infelizmente, não nos podemos alhear - e, fazê-lo, seria pura hipocrisia demagógica, repito, porque ninguém se consegue abstrair e alhear desta realidade - de que a cor da pele e o aspecto dos cabelos é o grande motivo de segregação.
A noção de "raça" existe, ainda que os cientistas continuem a afirmar de que tal é um mero conceito. E ela é o grande motivo divisionista. Ainda que me force em pensar, com a tentativa de destruir a tese anterior e de me fazer crer a mim mesmo, ser pensante, que, actualmente a noção biológica de desigualdade entre os seres não se põe com a mesma acutilância como o racismo cultural ou diferencialista, neste caso, como as etnias, as culturas, as religiões. Não se hierarquizam, tanto, como até à época hitleriana, em raças superiores e inferiores, em negros e brancos ou amarelos, mas esta ideia de "raça" é imanente ao ser; ao "todo ser"! Sempre assim foi e será. Não apenas àquele que se  julga diferente quando nasce e com direito à diferença negando a igualdade - o que é um absurdo!-, mas ao "todo" ser humano. Esse pensamento de "raça" está compreendido em toda a essência de todo o humano. E negarmos tal evidência é navegarmos num mar de hipocrisia.

A nossa hipócrita sociedade actual, e não apenas a sociedade política, vangloria-se de que cria "fundações" com vista a promover a igualdade de oportunidades para todos. E debate-se com propósitos que não passam disso mesmo: meros propósitos panfletários propostos para angariarem meios e fundos com vista a ampliarem, quantas vezes, partidarismos criados com fins obscuros e indefiníveis, que passam, tão-somente, por políticas que se fundamentam na luta racial mas que, em boa verdade, não vão além de contínuas lutas de classes, que proliferam no mundo. Porque sendo o «racismo e o capitalismo duas faces da mesma moeda» (Steve Biko), o regime de guerras e pobreza, de miséria e opressão, a força da exploração humana usada pelo sistema capitalista que diz renegar a luta de classes com a criação de bolsas para os estudiosos se debruçarem sobre o problema da "luta racial", mais não serve, tantas e tantas vezes, do que os seus próprios interesses capitalistas que usam a opressão e exploração para dividir e reinar. Isto não é mito nem ficção ou telenovela. É a crua realidade encapotada, tantas vezes, com (falsos) propósitos de fins humanitários.

E aqui se reforça a alegoria do filósofo, com que se abre esta crónica: «lutar contra o racismo, é como tentar consertar um barco que navega no oceano agitado por uma tempestade». Assim se (me) afigura de difícil resolução, quiçá, impossível resolução, o combate que se trava contra o racismo.

12/05/20

Pessimista por natureza em relação à existência humana


Este poema, não tem a ver com nada da actualidade e tem a ver, ao mesmo tempo, com tudo o que se passa na actualidade, faz parte deste texto de reflexões à roda do pessimismo, do expressionismo e do existencialismo. Encerra-o, embora aqui o deixe como abertura.

A mãe sozinha em casa pariu a criança ¾ fruto
de um amor longínquo que de enganosamente puro
se transformou em malígno; sobre eles inclinou-se
a traição que se alimentava da mentira piedosa.
_____a dor: o grande teatro do mundo que vive
como fonte lacónica num doce palco de mentira_____
Sobre ambos, a noite pesada, inclinava-se na cama
com o rosto babado de lava ¾ eram outros os lençóis
macerados numa mistura húmida de suor e esperma
e de sexo feito e deixado por fazer.
Quando a mão fria da mãe acarinhava a cara
da criança parida em noite de lua branca embriagada
pelo canto dos sonâmbulos corvos, nos braços esguios
e ressequidos dos pinheirais, lembrava o piedoso acto
do pai, expresso no rosto cinzento da mentira.
imagem de José Marafona
(álbum Delírios)
Os antepassados carinhos, simulacros de doçura
jaziam podres: amor e fantasia outonal.
A febre negra da mão do pai havia de subir um dia
o silêncio sinistro do Monte Calvário de Georg Trakl
e despejar a morte sobre a inocência do filho parido
pela mãe sozinha em casa numa noite branca de luar.
Meditar ajuda a passar o tempo, desde que a meditação seja saudável; ao invés, temos que ter um espírito forte e optimista para não cairmos no desespero insatisfeito da procura em alcançar algo que, não alcançando o almejado, nos pode levar à destruição. Escrever anima a alma; ler os mestres, naquilo que nos deixaram escrito com sabedoria e arte, consola-nos ¾ pelo menos a mim consola-me e alivia-me de outras preocupações.
Às vezes o homem é aquele ser abandonado que resiste ao tempo, embrulhado num frágil fio frio da noite fria, enquanto espera que a manhã regresse presa, apenas, num tão igual débil fio de vida. Dizem-lhe que a manhã tem sempre de regressar, todos os dias, para bafejar as paredes da casa que habita. Ironia das ironias... seria verdade se todos os homens fossem, por igual, filhos de deus; o tal deus dos homens a quem se abandonaram famintos na esperança da bocarra aberta desse túnel misterioso da salvação. Inglória sorte a deste homens abandonados a um deus que esqueceu as dores do mundo. Chamem-lhe lírico, anti-lírico, ateu, filho de nada e de ninguém... quer lá ele saber! Será isso tudo ou nada será, ao mesmo tempo. É, isso sim, aquele que pensa à sua maneira; pensa por si, pela sua cabeça. Pessimista? Talvez sim. Pessimista por natureza em relação à existência humana.
Filosoficamente ser pessimista é não acreditar no valor da existência. Neste sentido, o pessimismo é profundamente existencial na medida em que é a própria existência que surge nesse modo de pensar. Viver é sofrer, com pequenos instantes de felicidade ¾ assim pensavam Kierkegaard e Schopenhauer ao considerarem estes momentos minúsculos de felicidade comparados com a grande amplitude da infelicidade do homem no seio duma sociedade injusta. Schopenhauer em "Dores do Mundo" dizia mais ou menos isto: "Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo." Eis o pessimismo profundamente existencial de Schopenhauer na medida em que é a própria existência que surge nesse modo de pensar. No profundo realismo-pessimista de Schopenhauer do 'viver é sofrer', aponta-nos alternativas ao sofrer, cuja ideia mais poderosa é a vontade de viver "por alguma coisa" ou em razão de alguma coisa ¾ eliminando, consequentemente, os fantasmas pessimistas que enganam a nossa visão e construirmos, nós mesmos, o sentido da nossa própria existência, encontrando o caminho para a libertação na contemplação da Arte ¾ o Belo e a Poesia ¾ para a paz de espírito necessária à vida.
Ora, na linha do pessimismo a efemeridade  do mundo é o palco onde os homens desgraçados representam a sua dolorosa tragédia. Mas tal como Antero de Quental diz "o pessimismo não é um ponto de chegada mas um caminho; é a síntese da negação e o indivíduo é o único responsável em dar significado à sua vida e em vivê-la de modo apaixonado, apesar da existência de muitos obstáculos e tentações de desvios". Cada indivíduo constrói o seu próprio destino, já o dizia o humanista Miguel Torga, sem a intervenção de qualquer deus, e está no indivíduo e na sua vontade, a força para ultrapassar os factores externos e internos que estão envolvidos na 'construção' da desgraça do homem, devendo ser ele próprio a afirmar a sua individualidade e liberdade humana na construção do seu destino.
O pessimismo não é próprio de uma só época: no romantismo e na transição dos séculos seguintes, foram evidentes as correntes pessimistas. Recordemos nos finais do século XIX e século XX, e hoje, ainda há quem assim pense, o pensamento do 'vazio' e do 'absurdo' vê-se em filósofos, escritores, poetas e artistas. Fernando Pessoa, quando entra na personalidade do heterónimo Álvaro de Campos, na sua 3.ª fase marcada pela abulia (desencanto pela vida), revela constantemente o pessimismo em relação à existência ¾ sentia "um súbito impulso para escrever" e não sabia o quê, exprimindo 'toda a emoção' que não era capaz de dar nem a si nem à vida. É o desencanto pela vida ¾ a angústia existencial, o cepticismo de pensar, a memória do mundo fantástico da infância, era o tédio, era a náusea, era o desencanto consigo mesmo e com os outros: "nada me prende a nada / quero cinquenta coisas ao mesmo tempo / anseio com uma angústia de fome de carne".
Há poetas que traduzem na poesia que escrevem a sua rebeldia contra as injustiças e o seu inconformismo diante da podridão do mundo. E o poeta o que é, senão o responsável por fazer esta denúncia?! Muitas vezes os poetas acrescentam uma certa pitada de humor negro a esta poética expressionista, mas está na sua génese (e dos existencialistas, que se lhe seguiram) criarem imagens esdrúxulas e impactantes, carregadas de carga emocional, que signifiquem o grotesco, o bizarro, a dor, a angústia, a morte ¾ até o mórbido e a podridão existente na sociedade. Essas imagens esdrúxulas são o invólucro transitório que encobrem o núcleo onde está contida a verdadeira realidade. É preciso ir para além da capa do transitório, rompê-la e olhar para além dela em busca da verdadeira realidade para ver o que é eterno. O poeta expressionista não olha, vê; não reproduz, recria; não encontra, busca. Nesta transfiguração, os factos adquirem importância na altura em que a mão do poeta, enquanto artista, agarra aquilo que está por detrás deles. Neste caminho para o existencial, interessa colher, abrindo a capa do transitório da coisa, o núcleo que lhe está na origem, na génese ¾ o que é eterno, o imutável da própria arte. A morte, a angústia e a dor casam nos versos dos expressionistas com a sorte do homem desamparado. Às vezes até desgraçado. Não há excepções nem meio termo na desgraça. Ou se é ou não se é desgraçado. E medindo todos os homens que são desgraçados pela mesma bitola, podemos dizer que a desgraça neles é geral. Ontem, como hoje. A bitola só difere para aqueles que nasceram com o cu virado para o sol. Estes, mesmo sendo uma anémona em termos de conhecimento, de sabedoria melhor dizendo, na vastidão do universo, foram bafejados pela sorte; beijou-lhes a sorte o trazeiro esquecendo-se, esta, de que até pouco uso deram ao papel higiénico... mas também pouco importou à sorte lambê-lo com as bordas por limpar, pois quantas vezes ela dividiu com eles a dádiva dos prémios recebidos?!
Esta amarga podridão das coisas ruins do mundo descrito em verso, repugna certos poetas que apenas tentam falar do amor inventado, sem conhecerem a dor que também lhe está vinculada; desprezam falar da dor que esse mesmo amor acarreta, porque não existe amor sem dor.  É preciso buscar, desvendar, rasgar o véu que encobre o transitório e ver o núcleo, entrar nele, escrevê-lo. Mas preferem fugir da dor ¾ o grande teatro do mundo vive num palco de mentira ¾ como o diabo da cruz e não a denunciando, ou não a escrevendo para não perderem as suas audiências que lhe garantem a eternidade de um pódio falso. Esquecem-se deliberadamente das margens com receio de perderem os aplausos daqueles que nunca conheceram o puro horror do sangue, do pus e da dor humana, ou se dele tiveram conhecimento preferiram mudar de passeio para não sujarem as vestes. Esses poetas e essas poetisas de meia bitola querem-se os arautos da literatura que enferma e infesta os salões carunchosos onde se pavoneiam, entre chapéus de aba larga a esconder alqueires de ignorância mal disfarçada e vaporosos vestidos de seda barata encimados por armadas cabeleiras loiras plantadas em moleirinhas cheias de ideias inócuas e obliquantes, simulando-se as intrépidas e sábias críticas desses arautos 'litratos' de vinho tinto de terceira categoria engarrafado fora das caves célebres da Abel Pereira da Fonseca ou da Casa Ermelinda de Freitas. A poesia desses poetas e poetisas está vazia de propósitos; misturam-se vaidosamente no 'nada' orgulhando-se dessa pura vulgaridade. Como diria Almada-Negreiros no seu Manifesto Anti-Dantas, embora de um modo mais brando, uma geração de poetas e de leitores desses poetas que só conhecem deles o lirismo chocho, sem miolo, seco, goro, insípido, estéril, que se revê nos versos do amor tão mal cantado, banalizando-o de tanto e tão mal repetido, é uma geração de poetas rascas e de leitores cegos que não passam, uns e outros, de meros peões de palmas ambulantes. Dói sabê-los assim e em nada se esforçarem por serem outra coisa que não aquela que (in)sabiamente são.
Às vezes pergunto-me, como Schopenhauer ¾ "Se um Deus fez este mundo, eu gostaria de ser esse Deus: (porque) a miséria do mundo esfacelar-me-ia o coração."
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por: Alvaro Giesta (poeta) - 12/5/2020
bém, a morte

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...