14/11/18

Notas breves para um conto que não deve ser lido


"espreguiçando à mesa da esplanada"
Escreveu: Alvaro Giesta
(24/Janeiro/2014, para o jornal "Comércio do Seixal")

          No canto mais isolado desta esplanada, sento-me. Nesta mesa encoberta pelo tronco retorcido de centenária tília, poucos me vislumbram, porque nenhum dos frequentes e distraídos clientes dão por mim. Observo - demoradamente observo - os circunstantes deste café. Hoje, não são muitos, mas é como se fossem "nenhum". Os solitários são apenas sombras do real, mergulhados na ausência total de si mesmos, enquanto fitam qualquer ponto no infinito da memória que perderam no tempo sem nunca o terem enxergado. Mesmo aqueles que se sentam aos pares, como se casais ou outros cúmplices da vida fossem, ou mesmo simples amigos de circunstância, não são uma coisa nem outra. Ainda que parecendo ser, ou até mesmo sendo, não são, efectivamente, porque são do momento, sem ao momento pertencerem. Assemelham-se a robôs, a quem a vida é dada através dum botão com corda ou duma pilha de nove volts.
          Há em cada rosto, mesmo naqueles que se sentam aos pares, um pensamento diferente do par que têm à sua frente. Ausentes. Estão ausentes de tudo, abstractos, fingem ouvir o seu acompanhante que na realidade não escutam, porque nesse momento não são. Fingem ser, não sendo. São tudo num corpo presente com o espírito ausente. Os olhares divagam no espaço em lembranças doutros sítios, doutros astros, doutros céus. Não são, apenas, olhares amorfos; porque, ser amorfo é não ter forma determinada, definida, mas é, ainda que informe. Aqui, os olhares, prescrutam o nada,  são eles próprios protótipo de nada. São ausência, e ser ausência é não-ser, é ser um pensar vazio.

          Os meus cálculos não se enganam. Aquela mesa ao fundo do café - lado oposto a mim -, tem um casal cansado da vida e do tempo. "Tem", digo bem; aquela mesa "tem" - como se o casal fosse simples adorno da mesa que à mesma, como objecto, faz falta, tal como as cadeiras para se sentarem. A existência que a este casal confere vida a dois, perdeu a conjugação do verbo "ser" e substituiu-se pelas formas do verbo "ter".
          Ela deglute, com avidez, um pastel de nata, aos empurrões, goela abaixo, com curtos goles de um néctar consubstanciado de vitaminas, enquanto uma bola de berlim aguarda a sua vez para a entrada naquela boca voraz, de lábios grossos exageradamente pintados de vermelho sangue, esquecendo-se de que o diâmetro do seu corpo mal suporta o elástico da cinta que teima cingir a si, na esperança que esta lhe conferira um formato mais anatómico. Ele, grisalho, bem parecido, apenas entroncado quanto baste, folheia, distraidamente, um livro que não lê, e simula prestar atenção ao que a companheira lhe diz.
          A vida deles não começa aí. Começa lá mais atrás, há meio século, talvez, e aí estagnou. Como se fosse motor dum carro que se tivesse engasgado por fractura nos cabos de carbono que conduzem a energia do distribuidor à câmara de explosão certa, e deixado a apodrecer debaixo da tão querida e frondosa tília, também ela de tronco encarquilhado e centenário, que se ergue no canteiro, onde apenas se vai, de ora em vez, retirar-lhe as flores secas que sobre o tejadilho vão caindo, aproveitando-as para o tão delicioso chá que à noite, e à lareira, vai dar sabor ao amargo silêncio de ambos que lavra na tão amaríssima solidão das suas vidas. Tal como se faz aos livros de estimação que vão amarelecendo espremidos na estante, sacudindo-lhe o pó com o espanador de plumas para demorarem mais um pouco a amarelecer as cansadas folhas, de tão cansadas estarem por não serem manuseadas. Desse meio século, lá atrás, para a frente, foi apenas vegetar, foi apenas, é apenas deixar passar os dias dando hipótese ao tempo, que não chegou e tarda em chegar. Agora a hipótese de ser passou a mera experiência laboratorial, que nunca produziu resultado capaz de ser solução. Nunca foi antídoto para curar o mal que enferma, há muito, seus corpos: o mal da saturação, o mal da perda de interesse de um pelo outro.

          Noutra mesa sentada, já entrada nos setenta, de cabelos oxigenados penteados em piaçaba sobre a testa em abóbora, uma mulher tenta emprestar beleza ao corpo - neste caso ao rosto - que já não é mais do que uma máscara do amargo tempo, usando um qualquer batom que esfrega teimosamente, com mão trémula, nos lábios ressequidos e profundamente enrugados. Fixa continuamente o espelho que surripiou do fundo da sua avultada mala olhando, sorrateiramente, para todos os lados como se num gesto de cumplicidade com o acto envergonhado e comprometido de, com tal idade, se embelezar. Mala tão avultada que nela poderia trazer - e quem sabe se não traz -, todos os pertences necessários a disfarçar as rugas dum rosto que em tempos, já muito recuados, terá sido belo. A seu lado o companheiro, bem mais novo do que ela e de ar cavalheiresco, ausente do mundo e da mulher que parece não sentir próxima de si há muito tempo, vai-se empanturrando com avultada tosta mista e sumarenta caneta de puro malte. Entre as pernas a bengala, com o punho em castão marfim, desliza sob a mesa até aos pés da companheira que ela se apressa a empurrar para o sítio que lhe é devido.
          Não trocam palavra. O ritual da pintura acaba. Ela levanta-se, diz-lhe algo em voz baixa e, sem o fitar no rosto, sai... ele perscruta um lado e outro, certifica-se que ela lhe deu a segurança necessária e ripa de um telemóvel onde digita breves palavras. Talvez um "olá", um "como estás?", um "posso telefonar?", e liga. A cara dele, sisuda até então, amplia-se num sorriso alargado da boca até quase às orelhas, que lhe são longas, quase abanos. Do lado de lá está a razão de qualquer existência, bem diferente daquela que até ali se compunha ao rigor do espelho e do batom. E esquece, por curtos momentos, a idade, que a prisão dos seus dias de tédio não deve tardar em chegar dos lavabos.

          Portanto, os meus cálculos são estes, os de um observador atento: quando tudo parecer irremediavelmente perdido, quando no último momento sentir que estou a morrer, que está tudo acabado, que a minha vida passou repentinamente entre o ser e o não ser, fecho os olhos e idealizo-me em hipóteses de nada e gravo na consciência de que tudo, sendo apenas relâmpago, pode ser prenúncio de filme à beira dum capítulo por descrever. Tudo desfilará diante dele, até ser certeza absoluta, se em desapontamento se não transformar.

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