23/11/18

E fez-lhe sinal para que avançasse


2.ª parte do conto in "entre nós, CUMPLICIDADADES", Calçada das Letras, 2015
autor: Alvaro Giesta
(Esta, de quem se conta, era a guardiã daquela porta, onde diariamente pedia o pão para mitigar a fome. Esta que há muito estava enterrada no mais fundo das suas memórias, agora repentinamente avivadas por um reflexo de instantânea luz.) 

- Espera.
Levantou-se de um salto do sofá que naquelas horas transviadas e de loucura servia de cama, também. Dirigiu-se à janela, subiu a persiana de guilhotina cerca de um palmo e certificou-se que lá fora estava tudo bem com a filha de sete anos que brincava com a amiga, da mesma idade, enteada da vizinha do andar de cima. Aquele corpo nu, curvado na janela situada ao nível da rua possibilitando apenas vislumbrar parte da cabeça se alguém do lado de fora se desse ao trabalho de espreitar, despertou nele, ainda que rendido da anterior refrega, ânsias desmedidas. Por instantes saiu da janela. De cócoras, agora, procurava nos múltiplos álbuns musicais, de vinil, espalhados numa desordem total pelo chão da sala, um que não tardou em encontrar.
- Achei… ¾ disse ela, esbaforida, naquela voz da gaiata alegre e despreocupada que acaba por descobrir o brinquedo, que um dia teve valor, há muito perdido no desarrumado daquelas mil coisas já sem interesse e deixadas esquecidas no fundo mais recôndito do armário e da memória.
Pô-lo a rodar no prato do gira-discos de alta-fidelidade, coisa boa e única que conseguiu salvar dum casamento esfrangalhado e desfeito. Pink Floyd em Signs of Life. Os acordes nostálgicos das cordas à mistura com o marulhar das vagas batendo nos costados duma embarcação, pareciam gotas de orvalho que se desprendiam do éter e vinham mergulhar nas profundezas daquele abismo paradisíaco chamado monumento de mulher, que punha o mais exigente mortal, mesmo que frio como o mais gelado glaciar, com a cabeça atordoada.
- Vem… (e fez-lhe sinal para que avançasse) Anda, vem… ¾ pedia ela enquanto massajava numa carícia demorada e de veludo, que aturdia, o interior daquelas nádegas firmes e perfeitamente modeladas, uniformemente bronzeadas no último verão na Ericeira.
O seu corpo debruçou-se, mais uma vez, para a janela que mantinha subida a persiana no seu curto palmo de abertura. O suficiente para espreitar a filha que continuava a brincar no passeio oposto, ou para ver as pernas dos passantes apressados. Veio ele a saber, mais tarde, quando ela extravasava nas suas confidências, que era hábito aquele desafio ao ex-marido e, também, a um amante velho ¾ quase o triplo da sua idade ¾ que tivera no fulgor dos seus ávidos vinte e seis anos.
- Vem... ¾ pediu ela novamente. Foi uma súplica, desta vez uma súplica rouca mais parecendo o gemer ferido das cordas do violoncelo. Oferecia as firmes, espetadas e morenas nádegas ao desejo. Entreabertas, as pernas, deixavam à vista a vulva meticulosamente aparada.
- Vem… oh, vem… ¾ gemia agora. Aquele vem era apenas um sussurro.
E olhava-o com olhar lânguido numa oferta de prazer incomensurável. Um leve toque de cabeça (não o vulgar tique, mas aquele trejeito já gasto de tão estudado e repetido) fez-lhe cair sobre o rosto a farta franja, em leque, de uma cabeleira negra, exageradamente negra. Aquele olhar provocante, de mulher tropical, e de características acentuadamente tropicais, desafiava-o para o inventar de uma nova origem, qualquer outra maneira linda de fazer amor.  Ele, estirado nu naquele sofá-cama, gozava em silêncio aquele vulcão que brotava lavas incandescentes de desejos.  Um vulcão prestes a explodir. Um vulcão em erupção constante. Na semiobscuridade daquela sala, transformada em antro de luxúria, quase depravação, flutuava no ar, misturado com as notas musicais de Pink Floyd que continuava a rodar no prato do gira-discos, um agridoce odor a suor e a esperma por lavar, que aquele corpo plúmbeo ainda exalava.
- Esta música é capaz de me fazer cavalgar nua no dorso duro e sem sela dum cavalo selvagem, pelas longínquas estepes africanas… noite e dia, sem parar. Não sentes o mesmo?
Perguntava ela, fazendo alusão à sua terra natal: Moçambique. E as suas mãos começavam agora uma dança louca, que já lhe era conhecida de outras horas, percorrendo as intimidades do seu corpo nu à mistura com suspiros de prazer, que não tardariam (porque já lhe conhecia a intensidade)  a serem ouvidos do lado de fora da janela.
- Fecha essa porra... ¾ ordenou-lhe ele, referindo-se à janela.
- Não. Quero que na rua, quem passa, oiça os meus gemidos enquanto tu aí os sentes. ¾ Retorquiu, enquanto se certificava, pelo palmo da persiana aberta, se a filha se encontrava segura no exterior onde continuava a brincar.
Começou-o a incomodar aquela atitude depravada que sempre tinha. Uma atitude que ela levaria até aos limites da sua intenção. Extravasava, mesmo, esses limites. Sabia-o bem. Daquilo que dela conheceu, nestes longos nove meses de relacionamento a que decidiu por fim, jamais deixou de consumar um acto a que ela se propusesse. Começou a dar voltas à cabeça imaginando como sair daquela situação. Sabia o quão iria ficar embaraçado, porque daí a poucos minutos ela estaria a fazer solicitações entre gemidos e gritos de luxúria que se ouviriam na rua. Até era capaz de abrir ainda mais a persiana, pois, maníaca como era, gostava de ser observada enquanto gozava com o seu corpo. «Se viesse ao menos alguém interromper a sessão…» (pensou), «…tocar a campainha, por exemplo…» (quase o implorou, em pensamento, à divina providência).



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