“Ser uma coisa evidente é ficar
reduzido a quase nada”
Esta
frase, do poeta dramaturgo Teixeira de Pascoais, explica em poucas palavras os
conceitos que Alvaro Giesta aplica na arte da escrita. Nada do que sai de sua
pena fica restrito ao evidente. Há, quase sempre, algo mais a ser entendido,
para lá da palavra escrita. Há, quase sempre, matéria que, não sendo secundária
(bem pelo contrário), merece tanta ou mais atenção. Há, quase sempre, algo que,
fazendo sombra à evidência, nos obriga a ver para lá do óbvio e a decifrar
entre linhas.
Copyright da imagem Jose Fernando Delgado Mendonça
E
o título da obra que temos em mãos é o exemplo perfeito. O SERENO FLUIR DAS
COISAS, na sua fórmula evidente, ficaria reduzido ao simples e básico nada. No
entanto, o poeta, enquanto mestre conhecedor das ferramentas que depuram a
poesia e sabedor daquilo que se auto-exige, usou-as para que o conteúdo
contrariasse o título, transformando-o numa ironia: o interior deste livro é
tudo menos sereno, direi mesmo inquietante. Em contraponto, porquanto a arte
poética não tem linearidade, o título desta obra também pode ser entendido como
uma reflexão pela naturalidade com que devemos encarar as coisas que acontecem,
seja na concepção da obra, seja naquilo que, afinal, é a vida de todos nós. As
coisas acontecem porque tem de ser assim e devem ser entendidas como
inevitabilidades da condição humana.
Alvaro
Giesta já demonstrou, em diversas ocasiões, o quanto domina a arte do
subliminar e essa capacidade é fruto de um trabalho apurado, consciente e,
acima de tudo, permanente. Afinal, é esse rigor, no uso da linguagem simples,
que se exige ao poeta. Se assim não for sobra apenas o banal. Mas não se
confunda o banal com o simples. Existem diferenças abismais entre estes dois
conceitos. Entenda-se o banal como algo frívolo, vulgar, o tal nada a que se referia Pascoais. O
simples, ou a simplicidade na escrita, é algo bem mais complicado de se atingir
mas uma vez alcançado pode ser sublime por não ser evidente.
Disse
Herberto Helder:
“Escreve-se um poema devido à
suspeita de que enquanto o escrevemos algo vai acontecer, uma coisa formidável,
algo que nos transformará, que transformará tudo”
Alvaro
Giesta labora a sua escrita por acreditar que, enquanto escreve, as
transformações acontecem. E fá-lo para, no mínimo, transformar o banal em algo
formidável, porque a estética também diz muito sobre o trabalho do poeta.
Esta
simbiose (trabalho/estética), tão querida ao poeta, acaba por ser a imagem de
marca da sua obra mas não explica tudo porquanto a primeira é apenas o meio
para alcançar a segunda. E se sobre a estética cada um pode interpretar a seu
bel-prazer e entendimento, sobre o trabalho não há margem para duvidar que o
poeta se escreve a cada verso.
Neste
sentido, e porque não existe uma só forma de dissertar sobre a obra de Alvaro
Giesta, não resisto a fazer um paralelismo, já tão gasto como o tempo, entre a
escrita poética e a escultura. Ao contrário de muitos contemporâneos que dizem
esculpir o poema da matéria bruta, desbastando aqui e limando acolá, Alvaro
Giesta usa o texto como matéria prima e, com o cinzel de poeta, vai retirando
os excessos que o envolvem, até ficar apenas o que sempre existiu: o poema.
Dito isto, é fácil deduzir que a poesia está dentro do poeta e ele limita-se a
colocá-la cá fora somente quando entende que o poema atingiu a maturidade
necessária para se dar a conhecer – o estado de quase perfeição.
“Os homens são como as obras de
arte: é preciso que se não entenda tudo delas duma só vez”
Esta
frase de Miguel Torga ajuda-nos a fundir e resumir tudo o que dissertei até
aqui. A mestria de Alvaro Giesta no uso da linguagem simples, através do
burilamento do poema, e a arte de transformar essa simplicidade em algo
formidável mas nada evidente, para que cada leitor, a cada nova leitura, vá
descobrindo ou decifrando o poema e o poeta. Neste contexto, faço um parêntesis
e ouso escrever que O SERENO FLUIR DAS COISAS é a menos hermética das obras de
Alvaro Giesta mas, em contrapartida, talvez seja a que mais nos fala do homem
que dá corpo ao poeta e assim o vamos conhecendo pouco a pouco.
Sintetizando,
e fazendo uso de uma discussão tão antiga quanto a poesia, creio que a forma
mais adequada, para definir a poética deste autor, é considerar que, aquilo que
para muitos é inspiração/criatividade, para Alvaro Giesta é
transpiração/trabalho, porque o ofício de poeta o exige e a demanda pela
perfeição também. Ou como disse Fernando Pessoa: “Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter”.
Emanuel
Lomelino
Outubro de 2018
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