A poesia hoje - a valorização do
particular, do circunstancial e do privado [1]
«Enquanto a glória de Fernando
Pessoa ia subindo todos os degraus, e os seus versos tornados pasto para toda a
mediocridade universitária exibir um amor pela poesia que nunca teve, uma
discreta aura iluminava a espaços Camilo Pessanha - e isso era um sortilégio suplementar. E havia ainda
aquela vida sua vivida (ou antes: não vivida) exemplarmente à margem da
impenitente e sentenciosa e sobranceira verborreia nacional, com o poeta apenas
empenhado numa crítica da eternidade que era o seu caminhar para o silêncio,
mais interessado pelos seus cães que pelos seus contemporâneos.»
Eugénio
de Andrade in Os Afluentes do
Silêncio (Camilo Pessanha, o Mestre)
À semelhança do interseccionismo,
classificado por J(oão) C(orreia) de O(liveira) como «uma intoxicação da
artificialidade», a escrita do "não-obvio" de alguns poetas de hoje - o hoje a que me refiro é o tempo dos
últimos anos do século XX e primeiros do XXI -, é uma «tentativa» de «emocionalizar
uma ideia» na busca de um espaço, não novo mas, que seja seu, só seu, criando
artificialismos egocêntricos em que as abstractas ideias e divagações de
«palavras carregadas de tanta excepção» se entrecruzam com o vago, a maior
parte das vezes com coisa nenhuma, chocando pela falta de sentido estético e
pelo repisar constante e monocórdico da mesma ideia que se perde em divagações,
naquilo que nem sequer é tema. Falta-lhes o diferente, o tal "novo",
ainda que simples, mas que seja arte, para que possa ser, à semelhança do
interseccionismo, uma «demonstração brilhante de inteligência estética e de
capacidade inovadora» ( Dic. da Lit. Port.). São divagações inócuas que deixam
tão embevecidos, quanto perplexos, ao mesmo tempo, pelo não entendimento, os
seus leitores e ouvintes que, embora ignorantes na interpretação do texto, que
não percebem, porque de labirínticas frases-compostas se compõem tais escritos,
envaidecem o(s) seu(s) autor(es) com efusivas palmas de parabéns. Contradição
de pasmar... a pretensa sabedoria duns e a ignorância fatal, bem mal
disfarçada, de outros!
Este modo de escrever, principalmente
em poesia, centrado no ego e implodindo, necessariamente, em temas de
circunstância tão mal cantados e repetidos e, pior que isso, mas por isso,
também, tão artificialmente vulgarizados, não indicia coisa nenhuma senão
ignorante endeusamento dos seus autores que se convencem, convencendo-os ou,
pelo menos, fazendo-os crer de que perseguem uma qualquer nova época literária
ou pseudoescola que dê cobertura àquela. Nada disso. Nada daqui nasce de novo
porque nada, nesta escrita do culto do particular, se faz com sabedoria. Esta
tendência não é arte. Para o ser, torna-se necessário desembaraçarem-se, os
seus autores, de tudo o que é vago e plasticidade. Nada se faz sem sabedoria!
Podia aqui citar alguns autores de
textos, principalmente poéticos, nascidos e a medrar no alfobre dessa rede
social chamada facebook (por onde também eu ando, aspirando a aprender) e
publicados por uma teia de prestadores de serviços - ganho fácil para essas
autointituladas "editoras"(!) - endeusando o que julgam que estão a
endeusar, que delas (das obras) apenas se percebe a artificialidade do conteúdo
no aglomerado, muitas vezes, de palavras inventadas colocadas no texto-poema
sem qualquer critério e/ou sentido, mas fico-me, apenas, pela generalização do
texto, sobre tantos dos que leio e só entendo sempre a mesma coisa - a repetição do mesmo tema particular
e circunstancial que se vulgariza de tantas vezes repetido. Perde-se a POESIA:
a forma mais nobre da escrita.
Quereria e gostaria, antes, de dizer
desses poetas como Eugénio de Andrade escreveu de Teixeira de Pascoaes
«magnífico e luminoso: espontâneo e simples como crianças, mas também terrível
e acusador como um profeta do Velho Testamento», mas não posso. E não posso
porque da maioria dos poetas que ora leio - àquela rede social me refiro e mesmo
a muitos que proliferam nos escaparates e que se escapam a essa rede social -
nenhuma presença, em seus escritos, inquieta, nada em seus poemas deixa os
espíritos sequiosos por algo de novo, inquietos e desassossegados, muito pouco
em seus escritos é inquietante, fracturante e incomoda em nome da verdade.
Quase nenhum deles incomoda em seus versos, como o moscardo atormenta o asinino
em dias de verão abrasador. Nenhum deles inquieta e desperta consciências
adormecidas, porque se prefere que as mesmas continuem anestesiadas,
entorpecidas com a cadência ritmada e cansativa dos «derrames líricos» ou com
as metáforas tantas vezes incompreendidas, porque mal usadas no texto que
pretendem complicar, como que a conferir-lhe propriedade exclusiva como se de
cunho próprio se tratasse.
Atrevo-me a pensar deles, como
Eugénio de Andrade dizia sobre Camilo «Preciso de me livrar de tudo o que nele
me repele: o seu ódio ao corpo, os seus derrames líricos (...) a sua
ambiguidade (...)» e acrescento eu: "o seu virar a cara aos problemas do
mundo que desassossegam, que inquietam, que fazem reflectir e questionar nesta
procura de respostas". «Se me livrar disto...», ficam-me tudo, menos
escritores/poetas da língua e almas atormentadas capazes de escrever em nome da
verdade. É que, como dizia o grande
escritor Eugénio de Andrade «Escrever é desobedecer» e a maioria dos poetas que
me entram pelos olhos dentro vindos deste alfobre que o facebook criou, diz
como Camilo «Escrever é obedecer».
E eu sou alérgico aos grossos títulos
de poesia, especialmente antologias de temas múltiplos e desordenados, espelhando excessos de lirismo decorativo e
folclorizante, numa profusão obscura de cores semitonadas. Prefiro os livrinhos
quase insignificantes, pelo número de páginas, mas com significado pela
qualidade do conteúdo, ainda que sejam de uma escrita levada ao osso,
«dissecada e dissecante» como em «Manual de Instintos Assassinos» do actual
Eduardo Roseira, ou tivessem tido misteriosa e intelectual transparência como
«Clepsidra» de Camilo Pessanha. Prefiro-os, assim, de lâmina cortante e afiada,
aos namoros exibicionistas das metáforas e imagens para além do útil e que
transborda em desnecessário: estes últimos dons de simpatia não me conseguem
embruxar!
Devido a estes três sujeitos
incómodos e subversivos: a proliferação dos maus poetas, dos maus leitores e
dos editores oportunistas - a
que eu chamo prestadores de serviços, embora essas editoras de vão-de-escada tal
não queiram ser -, a
eficácia da poesia, hoje, tornou-se completamente inócua, mesmo sobranceira à
verborreia de poemas medíocres. A maioria do que se escreve em verso, hoje, são
palavras de água morna sem pretensão a efervescência, sem a capacidade
magistral de sugerir, de insinuar, de dizer "não", incapazes de «coar o sarro» dos «derrames
líricos» que, de tão repetidos, tornam banal esta forma mais nobre da escrita:
a POESIA.
Os autores de tal poesia repetida,
confusa e artificial, que intoxica de tanta artificialidade, em que o
repetitivo cansa e causa enjoos com pretensão literária, parecem erguer a
bandeira de qualquer coisa próxima dum sensacionalismo já tão longe no tempo! Já
tão afastado! E, por isso mesmo, tão gasto. Pretendem criar sensações em quem
os escuta e os lê, embevecidos, mesmo não percebendo nada do que está escrito.
Nem uns, nem outros. Nem quem escreve, nem quem lê. Porque, se perguntarmos a
tais autores de tal poesia de circunstância e sensacional, que se perde em
palavras rebuscadas e depois, com recurso ao dicionário, traduzidas noutras de
maior dificuldade de entendimento dando ao poema um sabor sem sabor,
(des)valorizando-o como coisa sua abstracta e confusa, o que querem dizer com
ela, a resposta é simples: a poesia não se explica, explica-se (o que é certo)
e, a explicar-se, fica a critério de quem a lê (não menos verdadeiro).
Parece que o meu teorema ficou de
pernas partidas pela dificuldade de demonstração para se tornar evidente. Mas
não! O predicado da conclusão da premissa diz-me que a «intoxicação da
artificialidade» continua válida: ou seja, para esses poetas (nascidos do e com
o facebook), à semelhança dos do século passado, o que conta é a sensação. É
despertar sensações com recurso à artificialidade. É despertar a mesma sensação
que se repete -
sempre a mesma sensação(!)-
pela (in)sabedoria de despertar outras, ou porque estão socialmente bem
colocados na vida e se esquecem dos que vivem no mundo da sombra, e têm medo de
escrever outras inquietações pelo receio de perderem audiência, ou, então,
desprezam simplesmente o despertar dessas outras inquietações que também
merecem a escrita da denúncia, a palavra da recusa, a poesia do medo e da fuga
ao medo, a poesia da ausência, a palavra da dificuldade em alcançar algo neste
tempo desabitado, a poesia da falta... com palavras cruas e nuas, sem recurso a
jogos malabarísticos de palavras de impossível entendimento.
Para esses poetas e escritores o que
conta é criar malabaristicamente sensações sem intenção de serem sentidas,
fazendo sentir mesmo que eles não sintam coisa nenhuma, mesmo que eles tenham a
certeza de que o seu fingido sentir não é criar. Quase me atreveria a afirmar
que, o que conta para eles é vender mais uns livritos dos que mandam imprimir
por encomenda e não um trabalho sério em prol do social e, até, de uma carreira
literária.
Para esses poetas, à semelhança dos
intersecionistas «a sensação é a única realidade». Para eles e por eles, despreze-se
o real, mesmo sabendo-se da decomposição da sociedade, da destruição dos
verdadeiros valores morais e sociais do mundo em desassossego, em inquietação,
em revolta pelo que vivemos. Para eles, o importante é não nos preocuparmos com
a inquietação da tentativa de resposta nesta ânsia de busca e de procura: isso
é um sortilégio suplementar à margem da sensação e do platónico.
O que importa, a esses
escritores/poetas, é o choradinho e o chorrilho em trocadilhos de palavras
inócuas, ao invés de se debruçarem sobre a inquietude social dramática em que o
ser humano vive em interrogações constantes sobre o presente e o devir, porque
não é esta inquietação que os faz crescer nos seus círculos de amigos que lhes
compram os (maus) livros que mandam editar, mesmo sabendo que jamais alcançarão
foros de literariedade!
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