17/12/18

O POEMA E O POETA -- um abismo de palavras por escrever ( e um poema)


Autor: Alvaro Giesta


¾ Difícil é escrever um longo poema em que não é apenas o número de versos que lhe confere grandeza, mas o valor ontológico que em si está contido, em que o poeta consegue dizer ao longo dele, o que ele julga ser tudo, sem se perder nem desviar do pensamento que pretende transmitir.
¾ Difícil é também, com poucas palavras, escrever-se um grande poema do qual se possa intuir sobre a verdade ontológica da poesia - isto é, se dela se pode conhecer quando ela se limita ao questionamento directo do óbvio, ou nada se pode conhecer de todo o abismo que envolve a palavra poética, interrogando-a e interrogando-se, questionando-a e questionando-se numa tentativa de resposta, pondo em causa a sua obscura natureza quando o não-óbvio está presente no texto poético.
¾ Muito mais «difícil é escrever uma obra em livro por fragmentos, em que cada um dos fragmentos por si só se constitui poema mas, também, em que cada fragmento-poema é um componente - muitas vezes decomposto em unidades mais ínfimas e delicadas que conduzem à ideia errada de facilidade da escrita - que trabalha em prol da própria obra. Isto é, confere à obra uma arquitectura tal que faz com que cada um dos poemas enformadores do livro deixe de o ser, se torne fragmento como se fosse um órgão - coração, rim, pulmão, fígado, cérebro, etc., - para que o livro, tornado corpo, adquira vida.» Xavier Zarco transmite esta ideia de concepção de obra por fragmentos no prefácio a projecto de obra minha subordinada ao título "da Palavra (Des)Velada" que reune Meditações sobre a Palavra e Um Arbusto no Olhar.

¾ Face a tais considerações, cabe perguntar-nos, então: o que é este abismo que envolve a palavra poética?
¾ É o projecto poético que cada poeta reformula com tendência a outra realização diferente do poeta anterior; é a busca interminável composta de avanços e recuos, descobertas e ocultações, obscuridades e luminosidades, certezas e dúvidas, numa espiral de sentimentos que reciprocamente se descobrem e encobrem numa linguagem complexa onde a palavra poética diz e não diz, é e não é, nesta rede de atalhos do caminho do tempo desabitado e a percorrer.
Porque nada em poesia é definitivo, é aqui que o homem, em permanente angústia, porque órfão da verdade definitiva, coloca a cada resposta possível uma nova questão.

¾ O que é a poesia, afinal?
¾ É o lugar incómodo das perguntas, porque nenhuma verdade o é em absoluto. É o lugar onde o Novo - o que ainda não existe - se manifesta. Não há respostas concretas em poesia nem para definir a poesia, porque se a palavra poética é e não é, diz e não diz, então o que o homem escreve merece pesquisa e resiste.
Não há definição de poesia. É um fenómeno especial de linguagem inventiva - é a imaginação e a sensibilidade unidas num abraço comum e fraterno, contudo, divorciadas do raciocínio. É o pensar poético, o pensar com a alma, é o alarme necessário e encantatório que despoleta os sentidos e dá claridade à verdade simbólica.

¾ Quem é, então, o poeta, esse dinossauro da palavra que nada afirma, mas que tudo diz? ­Quem é "essa Ave Metafísica" como perguntava Sant´Anna Dionísio do Poeta do Marânus?
¾ É o moscardo que pica, que incomoda e que resiste. Mas, é também aquele ser que está para além do telúrico, aquele espírito ávido para a propensão de "ver formas ilusórias onde o vulgo vê realidades"; aquele ser que é capaz de, nas suas divagações "alucinadas", alcançar a linha incorpórea observada nos astros a partir da terra e ver, com a alma, que o autêntico está no plano invisível e não, decerto, no plano visível. Nesta perspectiva, o poeta vê percepções e não verdades - aliás, algures certo filósofo escreveu com alguma ironia séria, que "quem não possuir propensaão para a mentira não está fadado para a poesia".
Assim sendo, o poeta é aquele que nesta fome de crer, ser e ver, insiste e resiste.

¾ Mas resiste a quê?
¾ Ao nada das palavras, às palavras gastas, confusas e poluídas que invadem o nosso espaço, o nosso tempo quotidiano, palavras já incapazes de formular questões e até de dar respostas neste tempo da interrogação, neste tempo desabitado, neste tempo da ausência e do desassossego, neste tempo do vazio de Deus e dos Homens sempre na ânsia de alcançar algo.


I
«Penso para além de mim
com um pensamento destruidor, fulminante
mas contemplativo
como o sabor amanhecente da montanha
ou o incêndio que destrói.

Terrível é esta audácia de pensar assim:
 ¾ terminante e elíptica, esta fúria de pensar
sossega-me no rescaldo do relâmpago que
abre uma clareira na noite incendiada
de sombras e mistérios.

II.
Quando esta fúria de ao pensamento dar luz
parece sossegar,
quando este fogo que (me) atormenta a alma
e a acalma ao mesmo tempo
entra no rescaldo,
logo outro novo relâmpago a incendeia
e a clareira da floresta da imaginação
se abre em labareda a alumiar(-me) o caminho.

III.
O silêncio deixa de ter o sossego
calmo e mudo do silêncio que tudo diz
e abre-se devagar ao tumulto, neste ascender
arrebatador, das minhas entranhas.

Insólito é este pensamento de mim
com sabor oracular ¾ repentinamente
se afastam os que se dizem poetas
e se aproximam os poetas de nascença:

¾ os primeiros, pela cegueira se repelem
e eles próprios em tal cegueira se castigam;
¾ os segundos, pelo saber se consomem
e à palavra se entregam.

17/12/2018

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