14/03/18

O valor do símbolo na poesia

Na intervenção em certo programa de rádio, falei do entendimento ou não entendimento que a poesia provoca no leitor, quando ela é feita com recurso a certas figuras de estilo que têm por finalidade melhorar, embelezar o texto. E não só - servem, também, para sugerir ideias, interpretações; são estratégias que usa o poeta, o escritor, para imprimir arte literária à sua escrita. É isto que vai provocar, no leitor, o entendimento ou não entendimento da linguagem poética - concretamente, quanto ao efeito criado pela obra de arte literária, é o que nos leva a distanciar a linguagem do senso comum, da maneira como o poeta apreende o mundo e a própria arte - o tal "estranhamento" de que falei.

Assim, somos obrigados a reconhecer que existe uma outra linguagem - a linguagem das metáforas, a que alguns chamam "a linguagem do não-obvio", a que outros chamam "a ambiguidade da palavra poética" - que não é mais do que a linguagem artística que nos permite, a nós, enquanto leitores, a entrar numa outra dimensão só visível pelo olhar estético ou artístico do poeta. É a linguagem literária - por ela, que é diferente da usual, o poeta forma um universo imaginário ou ficcional que leva o leitor a fazer a apreensão do real pela imaginação. É esta a finalidade da arte poética: "dar ao leitor a sensação do objecto como visão e não como reconhecimento" - ou seja, "obscurecer a forma, aumentar a dificuldade (de entendimento do poema) e aumentar da duração da percepção > levando o leitor a apreender o real pela imaginação. É a função da palavra poética no âmbito literário. Escrever com arte, melhor dizendo.

O poema feito com arte, deve provocar no leitor o poder de fazer sentir a mudança, ou seja: a palavra poética deve poder vir a ser "isto" mas também "aquilo" > fazer-nos sentir que há, ali, naquele poema, uma dimensão nova só visível pelo olhar estético ou artístico de quem o escreveu. Esta controvérsia de ler e entender o poema - o tal poema feito com recurso à ambiguidade, feito de molde a provocar no leitor o entendimento ou não entendimento - leva-nos às perguntas:

- o que é o poema?
- e o não-poema?
- serão estas duas questões, contraditórias, que nos levam a definir o que é um poema e um não-poema quando, afinal, é a ambiguidade poética que dita o mais profundo saber que há em poesia?

Nas interrogações "o que é o poema e o não-poema", não confundir "o poema" como sendo, apenas, aquela escrita poética certinha na métrica, na rima, e o "não-poema" como sendo aquela escrita de verso livre, porque "verso livre" (assunto a desenvolver noutro texto) não tem nada a ver com falta de rima ou de métrica, como muitos pensam, muito menos tem a ver com prosa poética - ou talvez, prosa poética, não seja mais que "verso livre" - mas isso é tema para outra ocasião.
Toda a palavra poética é ambígua - diz e não diz; afirma e não afirma - a ambiguidade é o mais profundo saber em poesia.

Esta "ponte debruçada sobre o abismo do "saber" e do "não-saber" (como nos diz Melo e Castro), que frequentemente interroga sem respostas concretas, é que é o maior critério (talvez o único!) da avaliação do poético > é isto que define a maior ou menor arte poética. Trabalhar a palavra poética de ordem a que ela deixe tudo suspenso sobre o nada poético:
- vestir o nada poético de todas as miragens, vivas ou inanimadas;
- provocar com a palavra poética (construída com certo uso da razão e do saber literário) motivos visionários que façam o leitor afinar a visão pela sensibilidade e pelo rigor.

Então, depois desta ambiguidade da palavra poética, cabe perguntar: O QUE É A POESIA? Há resposta concreta a esta pergunta? Há definição exacta para a pergunta "O QUE É A POESIA"?
Vamos deixar tal pergunta à meditação dos leitores e nós vamos tecer a nossa consideração que merece, sem dúvida, oposições:
- A poesia é a expressão da alma > os poetas veem a vida de forma diferente > faz parte do mundo poético podermos raciocinar as ideias de outro modo, usando a razão para imprimir arte à poética quando nos deixamos comandar pelo coração, pela emoção, pelas vivências do dia a dia;
- porque o real é importante na poesia, porque a poesia faz parte da vida quotidiana > o extra-sensorial não pode ser olvidado > cantando-o de maneira diferente em poesia, cativados pela beleza, pelo sentimento, pelos valores, pelas coisas que não podem ser silenciadas:
- a guerra, a injustiça, a ânsia da e na procura, a inquietação, a busca existencial do próprio ser, a falta, a inquietante ausência de Deus.

Assim é a poesia - valor mais alto da literatura; equacionando estes valores, ou a ausência deles, com arte; a caneta dum poeta é arte, quando é cultura, quando é amor, beleza, música, quando é isto tudo. Quando é denúncia, quando é uma constelação de coisas naturais, que têm de ir para além do nosso umbigo; que, metaforizadas ou não, são a arte poética tal qual a música e a pintura.
O poeta, num processo catártico, numa "descida ao mundo inferior" para daí "se subir ao mundo superior", numa "descida aos infernos" para depois "subir aos céus" - ao fim e ao cabo "descida e subida ao mesmo tempo" como nos diz o poeta e filósofo António Telmo - neste processo catártico de maior ou menor profundidade encantatória, o poeta dotado faz vibrar o leitor "com simpatia" com o poema, mesmo que o poema verse tema menos agradável - e disso, ao terminar, vou aqui deixar um poema do poeta que "se outra" na voz do louco (o "outrar-se" é tema poético de que havemos falar na devida altura).

É assim que se definem os artistas do mesmo ofício em "bons" ou "menos bons" e até "maus" ou, como nos diz António Telmo: "É o que distingue o lírico superior daquele que se limita a associar automaticamente imagens umas sobre as outras. Os grandes poetas fazem-nos esquecer as imagens visuais com que nos falam. Tudo sob a sugestão encantatória do ritmo, se dissolve em sons (...) numa mesma, única e indefinível vibração".

alucinação (do livro: O Pranto dos Loucos Lúcidos de Alvaro Giesta, Temas Originais, 2017, Coimbra)

Neste estado de loucura e de reflexão em torno da vida e do eu, numa interrogação profunda em busca de respostas explicativas do Ser, do seu destino e finitude, vociferava o louco nos seus estados mais lúcidos de loucura, numa confrontação com este mundo de injustiças:

[eu sou a vida e a luz.
sou o redentor que chegou p’ra salvar.
sou o mundo; sou a estrela que alumia e que
guia; sou a luz que afugenta a noite e arreda
os medos do mar.

sou a luz que aproxima e repele quem me escuta,
sou a voz que sem medo não se cala e que acusa,
sou o dedo que aponta e não quer recuar.
sou a mão da justiça vingadora que julga
a injustiça  existente neste mundo de ladrões.
- polícias, juízes, ministros, patrões...

sou o pássaro que grita e que voa e que foge
da gaiola; sou a ave que finta o caçador
que o chumba; sou a ave que se escapa a este
chumbo e que volta e que fica para acusar.
sou o mar e sou o vento; sou a tormenta
que atordoa e rebenta no ar.

sou o rei que não se cala e que grita as injustiças.

sou o cais onde a gaivota não descansa,
sou a gaivota à procura doutro cais onde possa
descansar; sou o homem, o enganado,
sou o louco que fizeram e que hoje vive
das migalhas dos ricos que ajudei a enriquecer.

sou o barco a naufragar…

sou o livro que não abri, as páginas que não li
a caneta que não usei e os números que não fiz.
sou a prova disso tudo, duma conta sempre
certa, que alguém me rasurou.

não fui eu quem a escreveu!

sou o alvo da (in)justiça que se fez
o habitante da prisão
cujas grades ninguém fechou.

sou o anjo vingador e sou o verbo.
sou um louco que não cala as injustiças.
sou o louco a pedir céu.]

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Copyright, 2017-2018 ©  Alvaro Giesta
(para o programa de rádio "A Voz de Alenquer" - direitos exclusivos do autor)






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