Na
intervenção em certo programa de rádio, falei do entendimento ou não entendimento
que a poesia provoca no leitor, quando ela é feita com recurso a certas figuras
de estilo que têm por finalidade melhorar, embelezar o texto. E não só - servem, também, para sugerir ideias, interpretações; são estratégias que usa o
poeta, o escritor, para imprimir arte literária à sua escrita. É isto
que vai provocar, no leitor, o entendimento ou não entendimento da linguagem
poética - concretamente, quanto ao
efeito criado pela obra de arte literária, é o que nos leva a distanciar a
linguagem do senso comum, da maneira como o poeta apreende o mundo e a própria
arte - o tal "estranhamento"
de que falei.
Assim,
somos obrigados a reconhecer que existe uma outra linguagem - a linguagem
das metáforas, a que alguns chamam "a linguagem do não-obvio", a que
outros chamam "a ambiguidade da palavra poética" - que
não é mais do que a linguagem artística que nos permite, a nós, enquanto leitores, a
entrar numa outra dimensão só visível pelo olhar estético ou artístico do
poeta. É a linguagem literária - por ela, que é diferente da usual, o poeta
forma um universo imaginário ou ficcional que leva o leitor a fazer a apreensão
do real pela imaginação. É esta
a finalidade da arte poética: "dar ao leitor a sensação do objecto como
visão e não como reconhecimento" - ou
seja, "obscurecer a forma, aumentar a dificuldade (de entendimento do
poema) e aumentar da duração da percepção > levando o leitor a apreender o
real pela imaginação. É a função da palavra poética no âmbito literário.
Escrever com arte, melhor dizendo.
O
poema feito com arte, deve provocar no leitor o poder de fazer sentir a
mudança, ou seja: a palavra poética deve poder vir a ser "isto" mas
também "aquilo" > fazer-nos sentir que há, ali, naquele poema, uma
dimensão nova só visível pelo olhar estético ou artístico de quem o escreveu. Esta
controvérsia de ler e entender o poema - o tal
poema feito com recurso à ambiguidade, feito de molde a provocar no leitor o
entendimento ou não entendimento - leva-nos
às perguntas:
- o que
é o poema?
- e o
não-poema?
- serão
estas duas questões, contraditórias, que nos levam a definir o que é um poema e
um não-poema quando, afinal, é a ambiguidade poética que dita o mais profundo
saber que há em poesia?
Nas
interrogações "o que é o poema e o não-poema", não confundir "o
poema" como sendo, apenas, aquela escrita poética certinha na métrica, na
rima, e o "não-poema" como sendo aquela escrita de verso livre, porque
"verso livre" (assunto a desenvolver noutro texto) não tem nada a ver
com falta de rima ou de métrica, como muitos pensam, muito menos tem a ver com
prosa poética - ou talvez, prosa
poética, não seja mais que "verso livre" - mas
isso é tema para outra ocasião.
Toda a
palavra poética é ambígua - diz e
não diz; afirma e não afirma - a ambiguidade
é o mais profundo saber em poesia.
Esta
"ponte debruçada sobre o abismo do "saber" e do
"não-saber" (como nos diz Melo e Castro), que frequentemente
interroga sem respostas concretas, é que é o maior critério (talvez o único!)
da avaliação do poético > é isto que define a maior ou menor arte poética.
Trabalhar a palavra poética de ordem a que ela deixe tudo suspenso sobre o nada
poético:
-
vestir o nada poético de todas as miragens, vivas ou inanimadas;
-
provocar com a palavra poética (construída com certo uso da razão e do saber
literário) motivos visionários que façam o leitor afinar a visão pela
sensibilidade e pelo rigor.
Então,
depois desta ambiguidade da palavra poética, cabe perguntar: O QUE É A POESIA?
Há resposta concreta a esta pergunta? Há definição exacta para a pergunta
"O QUE É A POESIA"?
Vamos
deixar tal pergunta à meditação dos leitores e nós vamos tecer a nossa
consideração que merece, sem dúvida, oposições:
- A
poesia é a expressão da alma > os poetas veem a vida de forma diferente >
faz parte do mundo poético podermos raciocinar as ideias de outro modo, usando
a razão para imprimir arte à poética quando nos deixamos comandar pelo coração,
pela emoção, pelas vivências do dia a dia;
- porque
o real é importante na poesia, porque a poesia faz parte da vida quotidiana
> o extra-sensorial não pode ser olvidado > cantando-o de maneira
diferente em poesia, cativados pela beleza, pelo sentimento, pelos valores,
pelas coisas que não podem ser silenciadas:
- a
guerra, a injustiça, a ânsia da e na procura, a inquietação, a busca existencial
do próprio ser, a falta, a inquietante ausência de Deus.
Assim
é a poesia - valor mais alto da
literatura; equacionando estes valores, ou a ausência deles, com arte; a caneta
dum poeta é arte, quando é cultura, quando é amor, beleza, música, quando é isto
tudo. Quando é denúncia, quando é uma constelação de coisas naturais, que têm
de ir para além do nosso umbigo; que, metaforizadas ou não, são a arte poética
tal qual a música e a pintura.
O
poeta, num processo catártico, numa "descida ao mundo inferior" para
daí "se subir ao mundo superior", numa "descida aos
infernos" para depois "subir aos céus" - ao
fim e ao cabo "descida e subida ao mesmo tempo" como nos diz o poeta
e filósofo António Telmo - neste processo
catártico de maior ou menor profundidade encantatória, o poeta dotado faz
vibrar o leitor "com simpatia" com o poema, mesmo que o poema verse
tema menos agradável - e disso, ao terminar,
vou aqui deixar um poema do poeta que "se outra" na voz do louco (o
"outrar-se" é tema poético de que havemos falar na devida altura).
É
assim que se definem os artistas do mesmo ofício em "bons" ou
"menos bons" e até "maus" ou, como nos diz António Telmo:
"É o que distingue o lírico superior daquele que se limita a associar
automaticamente imagens umas sobre as outras. Os grandes poetas fazem-nos
esquecer as imagens visuais com que nos falam. Tudo sob a sugestão encantatória
do ritmo, se dissolve em sons (...) numa mesma, única e indefinível
vibração".
alucinação (do livro: O Pranto dos Loucos Lúcidos de Alvaro Giesta, Temas Originais, 2017, Coimbra)
Neste
estado de loucura e de reflexão em torno da vida e do eu, numa interrogação
profunda em busca de respostas explicativas do Ser, do seu destino e finitude,
vociferava o louco nos seus estados mais lúcidos de loucura, numa confrontação
com este mundo de injustiças:
[eu
sou a vida e a luz.
sou o redentor
que chegou p’ra salvar.
sou o
mundo; sou a estrela que alumia e que
guia; sou
a luz que afugenta a noite e arreda
os
medos do mar.
sou a
luz que aproxima e repele quem me escuta,
sou a
voz que sem medo não se cala e que acusa,
sou o
dedo que aponta e não quer recuar.
sou a
mão da justiça vingadora que julga
a
injustiça existente neste mundo de
ladrões.
- polícias,
juízes, ministros, patrões...
sou o
pássaro que grita e que voa e que foge
da
gaiola; sou a ave que finta o caçador
que o
chumba; sou a ave que se escapa a este
chumbo
e que volta e que fica para acusar.
sou o
mar e sou o vento; sou a tormenta
que
atordoa e rebenta no ar.
sou o
cais onde a gaivota não descansa,
sou a
gaivota à procura doutro cais onde possa
descansar;
sou o homem, o enganado,
sou o
louco que fizeram e que hoje vive
das
migalhas dos ricos que ajudei a enriquecer.
sou o
barco a naufragar…
sou o
livro que não abri, as páginas que não li
a
caneta que não usei e os números que não fiz.
sou a
prova disso tudo, duma conta sempre
certa,
que alguém me rasurou.
não
fui eu quem a escreveu!
sou o
alvo da (in)justiça que se fez
o
habitante da prisão
cujas
grades ninguém fechou.
sou o
anjo vingador e sou o verbo.
sou um
louco que não cala as injustiças.
sou o
louco a pedir céu.]
__________
Copyright, 2017-2018 © Alvaro Giesta
(para o programa de rádio "A Voz de Alenquer" - direitos exclusivos do autor)
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