[Para o
homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente «natural»: está sempre
carregada de um valor religioso. Isto compreende-se facilmente porque o Cosmos
é uma criação divina: saindo das mãos dos Deuses, o Mundo fica impregnado de
sacralidade. Não se trata somente de uma sacralidade comunicada pelos Deuses,
(...). Os Deuses fizeram mais: manifestaram as diferentes modalidades do sagrado
na própria estrutura do Mundo e dos fenómenos cósmicos.]
Mircea
Eliade in O Sagrado e o Profano (a
essência das religiões)
Já
não bastava a noite que era, por de mais, fria e gelada! Uma noite de breu.
O céu longínquo, habituado a vê-lo
sempre azul nas noites da sua aldeia, esquecida lá longe em terras do
Moxico, era agora mais negro do que nunca. Caienda, muito a nordeste de Luena,
a cidade de Luso no tempo colonial, há muito que ficara para lá da linha dos
seus horizontes mas nunca fora das suas recordações. O céu, neste mar distante,
era agora um negro de azeviche. Mais negro que o negro Matiê que, na calada da
misteriosa noite negra metia medo, quando atravessava o terreiro da sanzala
para se ir misturar com o quente da esteira da Benedita, com o luzir daqueles
dois olhos que apenas se lhe viam, como pontos luminosos, iguais aos da velha e
faminta onça que rondava o curral dos cabritos do tio Kandiri.
Apenas aqueles pontos luminosos, de
luz, naquela profundidade de fazer até Deus temer, quanto mais os homens,
indicavam ser ali o céu.
As
estrelas.
Habituado a ver o seu piscar
cintilante, custava-lhe a crer que aqueles pontos luminosos fossem estrelas!
Para ele tudo eram estrelas. Tivessem elas luz fixa ou cintilante. Todos os
astros que enfeitavam o céu, eram estrelas. Diferentes daquelas que cruzavam o
céu, de um lado a outro, por cima da sua aldeia coladinha a Caienda que fora
vila e agora tinha pouco mais que duas ou três casas em pé, que as demais foram
esburacadas e reduzidas a pó pelas morteiradas travadas entre as forças que
pretendiam fixar-se à força no poder com a ajuda dos cubanos, e as outras, as do
Galo Negro, que aos poucos se iam reduzindo a zero à medida que o apoio da África
do Sul lhes ia faltando.
No princípio a mãe fizera-lhe crer, na
sua ingenuidade infantil, que aqueles pontos luminosos que engravidavam o céu, em movimento, eram espíritos errantes à procura, nele, dum lugar para viverem. Depois
aprendeu que, afinal, aquelas luzes que se moviam cortando o espaço, de um lado
a outro, por cima da sua aldeia, eram aviões, lá longe, muito alto, a cruzar
destinos longínquos. Nunca chegou a saber que podiam ser outra coisa qualquer
colocada pelos homens no espaço, com vista à dilatação do seu conhecimento.
Mas, quanto às estrelas...
A mãe dissera-lhe, tantas vezes,
quando ainda não entendia o mundo, como agora, ou entendia apenas uma ínfima
parte dele na sua inocente ingenuidade, tal qual ainda hoje o entende, que
aquilo eram os olhos dos seus antepassados "vovô e vovó" a zelar por
ele, cá em baixo na Terra e a iluminar-lhe o caminho.
«Que são antepassados, mãe?»
E lá lhe explicava ela, como podia e
com a paciência que só uma mãe sabe ter, usando palavras que ele pudesse
entender, e jamais olvidar, o que eram os "seus antepassados".
«Mas vovô o vovó estão vivos, mãe.
Como podem ser eles no Céu a dar luz ao meu caminho, se estão na aldeia?!»
Que os antepassados, a que ela se
referia, eram os avós dos avós e muitos avós de muitas mais gerações antes
deles. Acomodava, assim, o espírito inquieto, por saber, daquele filho em
constante interrogação. E tantas coisas mais ela lhe ensinou! Das coisas boas
do Mundo, que o Mundo tem, e de algumas ruins da Vida, também. Mas não lhe
ensinara da guerra que destrói e mata. Da guerra que ele viu um dia nascer e
matar, e o fez fugir naquela aventura impensada por não querer ainda morrer e
juntar-se, antes daquele que ele julgava ser o seu tempo, ao tempo dos seus
antepassados. Da guerra que lhe levou o irmão mais velho e lhe levou, depois, a
mãe, também.
Tanta coisa mamãe lhe ensinou! E
milhentas outras coisas ficaram por ensinar. Os seus pensamentos, na
dificuldade desta fuga aventureira e temerária, iam para ela que tanta coisa
lhe ensinara. Ela era o Deus das suas preces e súplicas, nesta aventura onde pensava morrer a cada instante, mas
onde não queria por enquanto morrer.
Agora as vagas iradas, naquele
fustigar implacável e constante nos costados da traineira, faziam os mais novos
gritar. E era uma trabalheira fazê-los calar... com que esforço se conseguiam
mantê-los colados no fundo da embarcação. As ondas, iradas, pareciam querer
parti-la, pelo meio, engoli-la para as profundezas daquele mar infernal e sem
fundo que, apesar de tudo, era dele que esperava a salvação. Todos esperavam o
mesmo!
Eram dezasseis. Um grupo formado,
quase por acaso, que ao longo da fuga a partir de Cazombo
e em direcção a sodoeste, com destino a Namibe, o Moçâmedes do tempo colonial,
onde se sentiam mais protegidos pela presença constante das forças do sudoeste
africano que entretanto faziam profundas incursões no sul de Angola, foi
cimentando amizades com a convicção de que, de Namibe, partiriam rumo a
qualquer sítio mais seguro, ainda que dele não fosse prioritário saber o nome
nem tão pouco adivinhar o destino que lhes estava reservado. Importava, sim,
saber dele a segurança e a liberdade.
(...)
____________
Alvaro Giesta ©
para (Contos do Infinito e os Demónios da Tia Matilde) obra a publicar
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Máscara Tschokwé (Lunda, Leste de Angola) |
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