Mater Natura [i]
[Tendo por base a influência de Miguel Torga (no conto LADINO) - e eu digo “influência” (ou “ensinamento”,
tanto faz) e não “inspiração”, porque “tal coisa”, sejam “ajudas” de deuses ou
deusas, de ninfas ou Tágides, ou quaisquer outras divindades inventadas ou por
inventar, ou quaisquer outros “sopros” de vivos ou mortos ou de noites de
insónia, de luar ou sem lua, considero que não existe - talhei este MATER NATURA com um pardal 'irmão'
do de Torga, embora sendo este sem nome de baptismo. Também neste conto - tanto o pardalito como a mãe-pardal, tal
qual o “Bigodes”, gato astuto mas com coração - as características humanas necessárias, ou
talvez mais que as de certos humanos, no essencial da acção e da intenção
subjacente à personificação: a base do conto.]
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«Para ele o mundo era um quintal enorme dotado de
compartimentos
separados por água, e fenómenos como as chuvas, as
tempestades,
ou mesmo os ódios dos homens carregados em navios
enormes,
eram gotículas para qualquer sorriso desfazer.»
Ondjaki, “E se amanhã o medo”
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O
pardal, pequenino, cheio de medo à beira do ninho, no beiral daquele telhado, ensaiava
o seu primeiro voo. Espreitava… “ui mãe, tão alto, que medo!”.
E
aquela mãe teimosa saltitava de telha em telha – a telha vã daquele casebre
velho e já sem vida – espanejando as asas sob o calor forte do sol que se
começava a sentir. E depois para o ramo da laranjeira mais próxima que se
erguia no quintal. Todo o dia naquele fadário. “Anda filho, vem… não tenhas
medo. Vê… é fácil! Não custa nada!” – encorajava a mãe. E ensaiava mais um voo
animador. O centésimo, ou mais…
Mas
ele, o filhote e medricas pardal, a quem também o pardalão pai não conseguia
demover daquele medo incompreensível, recolhia ao aconchego do ninho e ali se
deixava ficar a dormitar no quente e fofo das macias penas que o atapetavam. Os
seus dois irmãos, esses, há muito haviam partido e se tinham feito à vida.
Arrojados e intrépidos! – “Saíram à mãe, que não ao pai, que nestas coisas de
coragem ela sempre fora mais ousada; mesmo quando se tratava de roubar algum
painço que a avó Ana Proença deixava a secar nas lajes de granito do balcão da
casa”. – Recordava ela.
Porém,
mais forte que o medo e na ânsia de partir também na conquista de novos mundos,
lá se abeirou, mais uma vez, da borda do ninho naquele dia primaveril já quase
no seu fim. O pardal ainda não sabia voar. Espreitou lá para baixo… abeirou-se
mais… mais um pouco e, por distracção, mais do que aventura, caiu desamparado
nas lajes daquele pátio onde o velho “bigodes” – gato pardo e manhoso – há
muito cansara o occipital de tanto olhar para cima enquanto, ávido, lambia os beiços
e cofiava os compridos e rebeldes bigodes. Veio aos trambolhões, desajeitado,
esquecendo-se de bracejar as asas para sustentar o frágil corpinho no ar.
A
mãe pardal, em gritos aflitivos, bem alto, advertia: “Abre os braços, filho…
bate as asas, bate…”. Mas lá acabou por se estatelar nas lajes cimentadas do
pátio, que os gritos da pobre mãe, desvalida, lhe não valeram de nada.
Apercebendo-se do perigo eminente que representava o velho gato que, pé ante pé
ia avançando para o coitado, ainda entontecido pelo tombo, encorajou a pequena
avezinha a fugir: “Anda, meu pequenino… vamos… voa, faz assim…”. E lá ensaiava
o pardalinho mais uma vez, e outra, e outra ainda, mil formas desajeitadas de
levantar voo. Mas nada! E o velho gato pardo parece que usou a cabeça – ou
talvez o coração, coisa que já é hoje difícil os humanos fazerem – e,
cabisbaixo, arredou pé dali quando já se adivinhava uma morte infausta e
inglória.
Veio
a noite e com ela o frio que já se torna difícil qualquer humano suportar
nestas terras transmontanas, quanto mais um pobre animalzinho meio guarnecido
de penas. O pardalinho, encolhido, ao pé de uma couve-galega que crescia
preguiçosa no quintal, para onde se arrastou com passitos tímidos, lá ia sendo
alimentado pela mãe pardal que se ausentava a espaços breves em busca de
gramíneas, enquanto o lusco-fusco da noite ainda alumiava o fim do dia. Fechou-se
a noite e ficou mais frio. “Mesmo na primavera, fora do ninho e do aconchego das
asas da mãe, gela-se!” – pensava preocupada a mãe. Ela, toda a noite voou numa
dobadoira incessante, em angústias e receios incontidos, em redor do pequenino
que esperou… esperou – e tão ingenuamente... – que lhe viesse a salvação.
Morreu
de madrugada, transido de frio, com a mãe a esvoaçar-lhe por cima. “Piu… piu…
piu… reage, meu filho, que o dia está a chegar!” – a mãe em queixumes
doloridos. “A Mãe-Natureza, pródiga, perfeita e sábia ainda sem soluções”.
Copyright
2006-2018 © Alvaro Giesta em “Conto por conto” (em compilação)
Fotografia
autorizada ao tempo da publicação na 'Artesanias Literárias': Ana Maria Russo
(http://www.1000imagens.com/autor.asp?idautor=936)
(http://www.1000imagens.com/autor.asp?idautor=936)
[i] conto publicado em
30/08/2006 em ARTESANIAS LITERARIAS (revista literaria del espacio planetario),
Argentina e, no mesmo ano em http://www.sergipe.com/balaiodenoticias/mater.htm.
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