É usual, no lançamento duma obra que acaba de
nascer, os leitores estarem na expectativa de ouvir falar do livro, para os
ajudarem na decisão da compra ou da compreensão da obra; é também essa a função
do prefácio, do antelóquio, do exórdio, dos prolegómenos, chame-se o que se
chamar àquele texto que precede a obra do autor no sentido de a apresentar ao
leitor; não de a fazer compreender, porque isso é tarefa do leitor, mas de
dizer ao leitor nas linhas do prefácio, do que fala o autor. Coisa que nem
sempre acontece: nem nos prefácios, menos ainda nas apresentações das obras em
lançamento.
Nos prefácios, há prefaciadores que escrevem
tudo à volta de si com o propósito vaidoso de se mostrarem, que até se esquecem
do objecto em mãos -
o livro sobre o qual nada dizem no prefácio. Em muitos lançamentos de obras, fala
o apresentador de si e nos dois últimos minutos apenas dá o abraço de parabéns
ao amigo autor. Da obra, nada disse. Como há outros lançamentos em que, apesar
da boa vontade do apresentador em falar da obra, já não vale a pena dela dizer
algo, porque tudo já foi dito pelos amigos do autor nas duas horas precedentes,
com leituras de trechos e de poemas e com uma multiplicidade de adjetivações
sobre as amizades com o autor. Não será o caso vertente.
Falemos da obra JUÍZOS NA NOITE de
António MR Martins, para que o leitor saiba que o livro que vai levar para casa
não é um "barrete" mas uma obra com verdadeiro valor literário.
Mas, antes, esclareço: a minha relação com o texto criativo de Martins é absolutamente
isenta de afectividade. E, embora o que escrevi em nada se pareça com um
trabalho crítico à obra, vou manter-me, como se o fosse, no plano restrito da
relação com o texto.
Duas consideraçoes impõem-se, contudo, para
justificar o conceito de coisa literária:
1. O que são obras literárias? São criações esteticamente construídas e com
utilização de diversos recursos estilísticos, que transmitem intenções
comunicativas do autor para com o leitor. Abro um parentese para dizer que não
é preciso ir-se à faculdade de letras para aprender sobre poesia; mesmo
nascendo-se sem o dom (contrariando o que muitos dizem que "não é poeta
quem quer, mas quem nasce poeta"), sublinho, mesmo nascendo-se sem o dom, pode
aprender-se sobre poesia... mas é preciso ler-se, ler-se muito - poesia, literatura e ensaios.
2. O que são tertúlias literárias? São
reuniões culturais com vista à discussão e troca de conhecimentos relativos à
literatura e obras literárias. Outro parentese - não são, apenas, a simples leitura de textos do
autor ou do amigo do autor.
Portanto, uma criação literária, seja
obra ou tertúlia, não é uma forma simples de contar um facto ou escrever um
poema num arrazoado de palavras inócuas, como não é a simples leitura de poemas
do poeta ou de amigos seus. É muito mais do que isso.
E antes de falarmos de JUÍZOS NA NOITE,
construído num tipo de verso a que os seus teorizadores no princípio do
modernismo chamaram de verso livre, assim
o considerando porque negava a rima, desprezava o pentâmetro jâmbico e cada
poeta, segundo esse conceito, deveria inventar a sua própria forma cada vez que
compunha o poema, deveria ser escrito em total liberdade desprezando a arte
demonstrando desprezo pelas anteriores formas poéticas, vamos falar um pouco
neste tipo de verso contemporâneo
para enquadrarmos o verso de Martins.
Em todas as épocas, em todas as culturas, poeta era
aquele que praticava a "arte" de submeter as palavras a uma série de convenções
que as transformava em poesia -
a rima, a métrica, a estrutura, o ritmo. Verso
livre era, então, segundo esses teorizadores, aquele que não obedecia a
este padrão métrico regular, seria então qualquer trecho de prosa dividido
arbitrariamente em linhas a imitar versos, seria todo aquele trecho construído
em total liberdade, sem arte, porque segundo o conceito dos teorizadores do verso livre, a arte era portadora de
cadeias que impediam a liberdade poética. Porém, isso não é assim, ainda que
muitos continuem a pensar que assim é. O verso
livre -
o verso contemporâneo -
tem que ter de comum aquilo que todas as formas poéticas têm: a utilização
consciente do ritmo e aqui ritmo entende-se como uma figura de periodicidade,
em analogia com a harmonia musical. Mas o ritmo da poesia não tem nada a ver
com a harmonia da música, nem sequer com a prosa, se bem que o ritmo não seja
exclusivo da poesia porque em toda a linguagem verbal há ritmo (eu, ao ler este
texto estou a imprimir ritmo à leitura). Estará, até, mais próxima da poesia a
linguagem verbal que a própria prosa. O ritmo da poesia é diferente e único, é
singular porque está articulado com o essencial do significado que a poesia
deve ter sempre: a imagem. Porque, como nos diz Paz em El Arco e la Lyra "ritmo
e imagem são inseparáveis" na construção do poema. Seja ele rimado ou
branco, seja ele metrificado ou (verso) livre. A linguagem verbal tem limites;
mas, quando damos à palavra o sentido que ela oculta, atribuímos-lhe o valor
poético que a palavra tem: a imagem é o essencial da sua significação; aliando-a ao ritmo, temos o poema que vai de
encontro à poesia. Se não houver ritmo não há poema - há prosa poética, diz Paz. E diz ainda, o ritmo,
aliado à imagem, é o pulsar do sangue que circula nas veias do poema. É
movimento; é emoção; é vida; é poesia. Tal como para o artista, das mais
variadas expressões de arte, o ritmo expressa movimento. Fernando Pessoa dizia
que "A poesia é a emoção expressa em ritmo através do pensamento, como a
música é essa mesma expressão, mas directa, sem o intermédio da ideia».
Recordo-vos que defendido por uns
- os revolucionadores da
poesia com o argumento da liberdade poética, mesmo sem arte - atacado por outros, os que dizem que o verso
livre não existe por falta de êxito e que só existe pela negativa, como defende
o poeta e crítico literário T.S. Elliot, há outros, como João Cabral Neto - e aqui vale a pena referir esta inconsistência do
crítico, pela mudança radical da ideia acerca do verso livre -
que antes o defendeu (em 1953) em entrevista concedida a Vinicius de Maraes com
estas palavras "(o verso livre) é fabuloso, e abrir mão da aquisição da
poesia moderna será banir a poesia do mundo moderno"; porém, 30 anos
depois (em 1988), depois de ver o mau uso do verso livre entre os poetas que apareciam como formigas, (como lêndeas, agora neste alfobre do facebook, digo eu), afirma em entrevista dada a Mário César Carvalho: "uma
das coisas fatais da poesia foi o verso
livre; antes, trabalhava-se o texto, agora desde o momento em que existe o verso livre todo o mundo acha que descrever
a sua dor de corno é poema". O que pretendia dizer o poeta? Coisa que é
válida ora e sempre -
que mesmo o verso livre tem que ser
trabalhado com arte retirando, dele, o inútil.
É aqui que Martins marca pontos em
relação a muito pretenso verso contemporâneo ou livre, chamemos-lhe por este nome, que por aí prolifera. Martins edificou JUÍZOS NA NOITE com uma
construção rítmica excelsa para que se afaste da prosa, quebrando o verso no
sítio certo da cesura, para que o hemistíquio seguinte dê a feição de um novo
verso, imprimindo-lhe, assim, o tal ritmo, que deve ser isto a essência do
chamado verso livre. E mais: aliou-o
à imagem, essa representação simbólica que dá a possibilidade de mentalmente
reconstruirmos a realidade, usando o símbolo, a sublimação mais elevada do
pensamento expresso em palavras. Então, olhando às características com que o
autor construiu, em verso livre esta obra, pergunto:
Há ou não há arte no verso livre? Se há arte, cai então por terra o argumento dos teorizadores que dizem que o verso livre feito com arte não é livre, porque a arte agrilhoa o pensamento. Nada mais falso e os teorizadores do verso livre estavam redondamente enganados - a "arte" não agrilhoa o pensamento, não inibe de pensar, a arte obriga a pensar; "a arte é um meio para a reflexão", "a arte ensina a pensar", "a arte substitui o pensamento na tarefa da interpretação do mundo". O que esses teorizadores do verso livre queriam, era anarquismo no verso. E o anarquismo busca sempre o fim de qualquer coisa. E quanto à rima e ao esquema que não tem, efectivamente, o verso livre, diz-nos Eliot: "o verso livre não se define pela ausência de rima ou ausência de esquema, pois há formas de verso sem rima (é o caso do verso branco) e sem esquema, nem se define pela ausência de metro, visto que até o pior verso pode ser escandido". Por isso, diz-nos ele "a divisão entre Verso Conservador e verso livre não existe, porque há apenas versos de boa qualidade, versos de má qualidade e o caos".
Há ou não há arte no verso livre? Se há arte, cai então por terra o argumento dos teorizadores que dizem que o verso livre feito com arte não é livre, porque a arte agrilhoa o pensamento. Nada mais falso e os teorizadores do verso livre estavam redondamente enganados - a "arte" não agrilhoa o pensamento, não inibe de pensar, a arte obriga a pensar; "a arte é um meio para a reflexão", "a arte ensina a pensar", "a arte substitui o pensamento na tarefa da interpretação do mundo". O que esses teorizadores do verso livre queriam, era anarquismo no verso. E o anarquismo busca sempre o fim de qualquer coisa. E quanto à rima e ao esquema que não tem, efectivamente, o verso livre, diz-nos Eliot: "o verso livre não se define pela ausência de rima ou ausência de esquema, pois há formas de verso sem rima (é o caso do verso branco) e sem esquema, nem se define pela ausência de metro, visto que até o pior verso pode ser escandido". Por isso, diz-nos ele "a divisão entre Verso Conservador e verso livre não existe, porque há apenas versos de boa qualidade, versos de má qualidade e o caos".
É esta a característica do poeta Martins
- fazer a coisa poética
com qualidade e arte e eu testemunho-o porque o conheci na execução do soneto,
a forma poética por excelência. Ele é como aquele fotógrafo profissional que,
ao fotografar a modelo retira tudo o que é acessório na fotografia: o banco, o
animal, o lixo, o penico com a planta a tentar embelezar a entrada da porta... assim
procede o autor na poesia deste livro. A temática desta obra não é una e vou
chamar-vos a atenção apenas para dois ou três tópicos, aqueles que me prenderam
mais a retina. Na obra há amor e onde há amor há sonho; há
tormentos, também, e desassossego e, se há isto, há na proposta do
autor o apelo ao sumo-Bem; há a preocupação do Ser pelo Outro,
mas também a preocupação desassossegada do Eu, na tentativa do encontro
consigo mesmo.
"Elícito ao teu olhar / (...) / me
reduzi à ínfima partícula do ser" (logo no 2.º poema) - Elícito: reparem nesta palavra
vernácula que significa "sentimento produzido pela alma, atraído por ela,
sedução benévola direccionada para a prática incondicional do Bem ® Tomás de Aquino dizia que "o apetite é elícito
quando tende para a apreensão do Bem". Mas há limites a condicionar a
produção do Bem, e o poeta alerta-nos disso: as mentiras acumuladas que medram
no "espaço terréu"; palavra
latina muito bem aproveitada pelo autor, terréu - o espaço terrestre, a terra com estas ervas
daninhas, a incompreensão da sociedade que vive arredia da palavra
"amor".
Aqui é que está o valor literário da coisa literária - pelo ritmo aliado à imagem, um e
outro ao encontro da poesia. Na obra, pela perícia no uso da palavra, aquilo a
que eu chamo "o profano ofício das palavras", brilha a descrição das
emoções pelo fogo que põe nas imagens, nos sentires, nos olhares das falas,
porque as falas também veem, e os sorrisos também têm sabores... Neste
conflito, nesta dualidade entre o sentimento da prática do Bem produzido pela
alma e a mancha da sociedade que produz as ervas daninhas, traça o autor uma esquadria poética (nome dado a um poema seu)
onde endireita e propõe o traço do caminho recto a seguir - é o sonho poético.
Na obra há a memória - a lembrança do tempo passado, a saudade e o ensejo
do tempo futuro. Sim, há saudade, também - o jogo da palavra vento que promete trazer ao poeta as vivências esquecidas, não
aquelas que se guardam na memória, porque essas são perenes e não esquecem
nunca, não morrem nunca, mas aquelas que, pensadas esquecidas, afinal estavam
apenas latentes na memória, ocultas por leve névoa. Há o passado mas,
também há a esperança radiosa de que o futuro será sempre "a surpresa de cada amanhecer",
diz-nos o poeta em Renascer na
simplicidade de viver.
Na obra há o
tempo -
o tempo é como um rio, lembra-nos Gustavo Ascher: "nunca podemos tocar na mesma água do rio duas vezes"; a
certeza de que, como dizia o filósofo Heráclito "a mesma água nunca passa duas vezes por baixo da mesma ponte".
Diz-nos Martins "não mais seremos
como fomos"; devemos aproveitar cada minuto da vida e, por isso,
procurar boas aparências e pessoas perfeitas é tempo perdido porque elas não
existem ®
o poeta diz-nos isso mesmo em Renascer
Impróprio -
que o sentir é fugaz, quando o olhar tem a idade da diferença e o sangue não
nasce com a pujança necessária, quiçá a pujança dos outros tempos. Em palavras
suas: "Por ora / tudo em ti /
reflecte estagnação / e o sangue / já não te nasce / com a pujança necessária."
Na obra, também há
o corpo -
o corpo aliado indubitavelmente ao amor e ao tempo: um corpo de raízes abre-se
como o grito na vastidão do tempo. Sob o cabelo feminino o arrepio e o ventre
ávido pulsam sob a pele, como a febre nos hospícios cresce no corpo à espera de
novos remédios por inventar. Assim rodopia no corpo a fome do prazer
reinventado; abre-se à vastidão dos dias devorados pelas garras ardentes do
prazer; mas... depois é a falência do corpo: (nas palavras do poeta) "A falência das forças / apodera-se do corpo e
o olhar mortiço / parece visionar // um horizonte de inexistências./ (...) // A
matéria torna-se pó / na cal do contínuo infortúnio."
Há, em JUÍZOS NA
NOITE, fortes juízos do Eu, sobre o Eu enquanto Ser, do Ser-Outro, do sempre
aliado tempo Passado-Presente-Futuro, nesta poesia reflexiva, às vezes até
metafísica, em que só o silêncio da noite ou o isolamento necessário dos ruídos
do mundo, faz medrar a produção de tais juízos poéticos. E, para terminar, há
outras meditações sobre a palavra - na certeza do Verbo, como o autor lhe chama: "O verbo, será sempre o verbo, / mas já não
tem a soberba determinação / de outrora."
Meditando sobre esta
certeza da incerteza do Verbo, para que nos chama a atenção o poeta: "O verbo, será sempre o verbo, / mas já não
tem a soberba determinação / de outrora" - vem-me à memória o que, não muito longe no tempo,
disse, com certo pessimismo, em entrevista
escrita no Jornal da Biblioteca Pública de Paraná e deixado exarado em
livro seu de ensaios, a mui reputada e renomada professora emérita da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Leyla
Perrone-Moisés, autora de livros de ensaio como Inútil Poesia e Altas
Literaturas, sobre a perda da relevância da literatura no meio cultural e
de como grandes autores do nosso tempo lutam contra esse cancro, que é o
cenário do fim da literatura. E, afirmou, à pergunta do entrevistador:
"A senhora escreve que não é possível estudar literatura sem passar pelos
textos clássicos.(...)"
Responde a Mestra:
"Para estudar literatura, é necessário partir dos clássicos. O mesmo
acontece no campo científico. Isaac Newton dizia: «Se vi mais longe foi por
estar sobre ombros de gigantes». Os professores de literatura podem e devem
propor textos contemporâneos em suas aulas, pois sua temática é mais próxima da
vivência dos alunos. Mas o bom professor, assim como o bom escritor contemporâneo,
tem de conhecer os 'gigantes' da história literária, porque estes não apenas
criaram as bases da literatura moderna e contemporânea, mas são sempre atuais
quanto às grandes questões humanas."
Permito-me finalizar
com a leitura do "Mais Belo Poema" desta obra:
"Quando
te li, / a primeira vez, / foi em verso.
// Percorri teu corpo / com o sentido olhar da palavra / e com ela
saboreei / os mais apaladados pretextos. // Carente do desejo de ler-te, / em
definitivo, / te vislumbrei, interiorizando-te, / da cabeça aos pés. //
Depois... / te beijei, / intensamente, / tocando quase todos os teus caminhos.
// Então, / te senti, / finalmente, / poema!...". E regresso, em ponto
final, àquilo que atrás enunciei sobre o ofício das palavras, com dois versos deixados
na minha futura obra GRAVITAÇÕES-O Profano Ofício das palavras, e aqui em homenagem a
Juízos na Noite: "que mistério este / o do nascimento da palavra!..."
29/Out/2019
Alvaro Giesta
Poeta e Coordenador Literário
Imagem da divulgação da obra:
In-Finita (Acessoria Literária)
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