2.ª parte do conto in "entre nós, CUMPLICIDADADES", Calçada das Letras, 2015
autor: Alvaro Giesta
(Esta,
de quem se conta, era a guardiã daquela porta, onde diariamente pedia o pão
para mitigar a fome. Esta que
há muito estava enterrada no mais fundo das suas memórias, agora repentinamente
avivadas por um reflexo de instantânea luz.)
- Espera.
Levantou-se
de um salto do sofá que naquelas horas transviadas e de loucura servia de cama, também. Dirigiu-se à janela, subiu a persiana de guilhotina cerca de um palmo e
certificou-se que lá fora estava tudo bem com a filha de sete anos que brincava
com a amiga, da mesma idade, enteada da vizinha do andar de cima. Aquele corpo
nu, curvado na janela situada ao nível da rua possibilitando apenas vislumbrar
parte da cabeça se alguém do lado de fora se desse ao trabalho de espreitar,
despertou nele, ainda que rendido da anterior refrega, ânsias desmedidas. Por
instantes saiu da janela. De cócoras, agora, procurava nos múltiplos álbuns
musicais, de vinil, espalhados numa desordem total pelo chão da sala, um que
não tardou em encontrar.
- Achei… ¾ disse ela, esbaforida, naquela voz da gaiata alegre e
despreocupada que acaba por descobrir o brinquedo, que um dia teve valor, há
muito perdido no desarrumado daquelas mil coisas já sem interesse e deixadas
esquecidas no fundo mais recôndito do armário e da memória.
Pô-lo
a rodar no prato do gira-discos de alta-fidelidade, coisa boa e única que
conseguiu salvar dum casamento esfrangalhado e desfeito. Pink Floyd em
Signs of Life. Os
acordes nostálgicos das cordas à mistura com o marulhar das vagas batendo nos
costados duma embarcação, pareciam gotas de orvalho que se desprendiam do éter
e vinham mergulhar nas profundezas daquele abismo paradisíaco chamado monumento
de mulher, que punha o mais exigente mortal, mesmo que frio como o mais gelado
glaciar, com a cabeça atordoada.
- Vem… (e
fez-lhe sinal para que avançasse) Anda, vem… ¾ pedia ela enquanto massajava
numa carícia demorada e de veludo, que aturdia, o interior daquelas nádegas
firmes e perfeitamente modeladas, uniformemente bronzeadas no último verão na
Ericeira.
O
seu corpo debruçou-se, mais uma vez, para a janela que mantinha subida a
persiana no seu curto palmo de abertura. O suficiente para espreitar a filha
que continuava a brincar no passeio oposto, ou para ver as pernas dos passantes
apressados. Veio ele a saber, mais tarde, quando ela extravasava nas suas
confidências, que era hábito aquele desafio ao ex-marido e, também, a um amante
velho ¾ quase o triplo da sua idade ¾ que tivera no fulgor dos seus ávidos
vinte e seis anos.
- Vem... ¾ pediu ela novamente. Foi uma súplica, desta vez uma súplica
rouca mais parecendo o gemer ferido das cordas do violoncelo. Oferecia as
firmes, espetadas e morenas nádegas ao desejo. Entreabertas, as pernas,
deixavam à vista a vulva meticulosamente aparada.
- Vem…
oh, vem… ¾ gemia agora. Aquele vem era apenas um
sussurro.
E
olhava-o com olhar lânguido numa oferta de prazer incomensurável. Um leve toque
de cabeça (não o vulgar tique, mas aquele trejeito já gasto de tão estudado e
repetido) fez-lhe cair sobre o rosto a farta franja, em leque, de uma cabeleira
negra, exageradamente negra. Aquele olhar provocante, de mulher tropical, e de
características acentuadamente tropicais, desafiava-o para o inventar de uma
nova origem, qualquer outra maneira linda de fazer amor. Ele, estirado nu naquele sofá-cama, gozava em
silêncio aquele vulcão que brotava lavas incandescentes de desejos. Um vulcão prestes a explodir. Um vulcão em
erupção constante. Na semiobscuridade daquela sala, transformada em antro de
luxúria, quase depravação, flutuava no ar, misturado com as notas musicais de
Pink Floyd que continuava a rodar no prato do gira-discos, um agridoce odor a
suor e a esperma por lavar, que aquele corpo plúmbeo ainda exalava.
- Esta
música é capaz de me fazer cavalgar nua no dorso duro e sem sela dum cavalo
selvagem, pelas longínquas estepes africanas… noite e dia, sem parar. Não
sentes o mesmo?
Perguntava
ela, fazendo alusão à sua terra natal: Moçambique. E as suas mãos começavam
agora uma dança louca, que já lhe era conhecida de outras horas, percorrendo as
intimidades do seu corpo nu à mistura com suspiros de prazer, que não tardariam
(porque já lhe conhecia a intensidade) a
serem ouvidos do lado de fora da janela.
- Fecha
essa porra... ¾ ordenou-lhe ele, referindo-se à
janela.
- Não.
Quero que na rua, quem passa, oiça os meus gemidos enquanto tu aí os sentes. ¾ Retorquiu, enquanto se certificava, pelo palmo da persiana
aberta, se a filha se encontrava segura no exterior onde continuava a brincar.
Começou-o a incomodar aquela
atitude depravada que sempre tinha. Uma atitude que ela levaria até aos limites
da sua intenção. Extravasava, mesmo, esses limites. Sabia-o bem. Daquilo que
dela conheceu, nestes longos nove meses de relacionamento a que decidiu por
fim, jamais deixou de consumar um acto a que ela se propusesse. Começou a dar
voltas à cabeça imaginando como sair daquela situação. Sabia o quão iria ficar
embaraçado, porque daí a poucos minutos ela estaria a fazer solicitações entre
gemidos e gritos de luxúria que se ouviriam na rua. Até era capaz de abrir
ainda mais a persiana, pois, maníaca como era, gostava de ser observada
enquanto gozava com o seu corpo. «Se viesse ao menos alguém interromper a
sessão…» (pensou), «…tocar a campainha, por exemplo…» (quase o implorou, em
pensamento, à divina providência).