22/10/18

O DESTINATÁRIO DO POETA

[foram estas as minhas palavras para os queridos leitores e leitoras presentes nesta assembleia no dia do lançamento de O Sereno Fluir das Coisas (poesia]


          Diz Mário de Carvalho, no seu livro "Quem disser o contrário é porque mente", que "são precisos dois para dançar o tango". Gentil Martins dizia há dias em entrevista à Rádio Renascença que o elemento mais importante da equipe cirúrgica é o anestesista.                

          Ora, aqui tenho duas figuras - o par do tango e o anestesista de que me vou servir como arquétipos para dizer que, mais importante que o escritor, no caso vertente o poeta, é o leitor. De que serve ao poeta escrever versos se não tiver o leitor? Mas, o bom leitor. Este é o destinatário do poeta - aquele que o poeta pretende sujeitar a si sem o  subjugar, sem que seja à medida do leitor impingindo-lhe o produto. 

copyright da imagem Jose Fernando Delgado Mendonça

          O leitor inteligente e criativo, o que não se quer ver diminuído enquanto bom leitor, de imediato rejeita esse poeta, esse escritor que o subjuga, que lhe impinge o produto, porque o bom leitor não se deseja ver desprestigiado enquanto tal. E há tantas maneiras de sujeição - usa-se muito por mensagens particulares no facebook, por exemplo, antes de submeter o poema à leitura pública.
          Esse leitor menos atento ou menos inteligente que não se quer dar ao trabalho de pensar para criticar, "embarca" nesses cantos de sereia, e aplaude porque o vizinho aplaudiu, e "gosta" sem saber se gosta do que lê, quando o lê, porque também "gosta" sem gostar do que lê, simplesmente porque "gosta" da cara daquele que lhe impinge o produto ou porque não quer desagradar, mesmo não gostando.
          O escritor quando escreve, o poeta que faz poesia, não é para si que escreve, que faz versos, mas para o leitor que o deve julgar sem sujeição. O bom leitor, - o bom par de dança que conduz harmoniosamente no tango; o bom e atento anestesista que garante a cirurgia com êxito. O bom leitor é o melhor crítico que o escritor tem. Também o leitor espera do escritor, do poeta, um espírito criativo que o leve a distanciar da falange vulgarizadora que, sem crivo, escreve banalidades do senso comum não confundir "senso comum" com "bom senso".
          Então, o leitor faz assim tanta falta ao poeta, se o acto de escrever é um labor solitário? Será que eu preciso mesmo do leitor (?) para escrever, enquanto me debato, sozinho, com a página em branco num sótão fechado a cheirar a mofo e a mijo de gato? Claro que isto é poético, porque o poeta de hoje já não precisa da solidão irrefragável para escrever. A solidão irrefragabilis de que os poetas necessitam para fazer versos, é falsa. Hoje há poetas que escrevem entre garrafas de cerveja vazias, escrevem entre os comentários que vão deixando, aqui e ali, aos amigos do facebook que vão lendo (e às vezes plagiando), escrevem no meio da refrega de qualquer evento a que assistem, muitas vezes apontando num caderninho restos de versos que apanham no ar para depois os enquadrarem - e mal enquadrados em poemas seus.
          Pois eu preciso, tanto do leitor que me lê e me critica com intenção séria, como do silêncio para escrever. Porque é no silêncio que eu medito enquanto crio, é a voz do silêncio que funciona no meu íntimo criador como motor imóvel, mas que (me) faz mover no tempo de criação. Em mim, o acto de escrever é um labor solitário que exige, enquanto escrevo, que esteja só, ausente do tumulto, do ruído, o estridente que me atropela as ideias por isso escrevo sempre entre as duas e as cinco da manhã. No silêncio me refugio para escrever, mas não vivo em solidão. Esse ruído estentóreo, que retumba e atordoa, nada tem a ver com o som o som é uma percepção sensorial musical que até o silêncio tem; a voz do silêncio tem frequências que se harmonizam e me transportam a estados de alma que me ajudam, enquanto poeta, neste acto de criatividade. Mas não chamo a isso "inspiração".

          Apenas um parentese para fazer notar que eu digo "criatividade" e não "inspiração" porque, não acredito em inspiração; para mim, a inspiração não existe, porque não há musas, nem deuses, nem tágides, nem qualquer outra divindade celestial oculta e estranha a mim, a soprar-me os versos ao ouvido, a ditar-me a força da palavra. Para o que escrevo sirvo-me daquilo que imagino, que idealizo e daquilo que os meus olhos e sentidos veem e sentem. A minha inspiração é a palavra, é o labor "transpirado" com que a ergo nesse silêncio em que medito... e, se há algo a que possa inadequadamente e injustamente chamar "inspiração", quando esse fervor de criar vem do "favor" de outrem, colhido de outrem, sem o plagiar, isso chama-se "influência" - e essa influência também me angustia enquanto aprendiz do Mestre; este, sim, é o criador genuíno que não sofre a angústia da influência de que fala Harold Bloom - mas, criadores genuínos, há poucos.

          Entro em pânico ao enfrentar a página em branco, se não encontro a palavra certa para iniciar a frase, para começar o verso que me servirá de arranque e impulsionará ao longo do papel. É nestas alturas do pânico da página em branco - em que a criatividade me falta, que eu receio defraudar o meu parceiro de escrita, o meu par para dançar o tango: você, caro leitor...

          ...aqui presente, a quem agradeço por ter vindo, por estar aqui, hoje, comigo e com os poemas deste "... Sereno Fluir das Coisas", que afinal, são seus. Obrigado.

Alvaro Giesta
10 de Outubro de 2018

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