[foram estas as minhas palavras para os queridos leitores e leitoras presentes nesta assembleia no dia do lançamento de O Sereno Fluir das Coisas (poesia]
Diz Mário de Carvalho, no seu livro
"Quem disser o contrário é porque mente", que "são precisos dois
para dançar o tango". Gentil Martins dizia há dias em entrevista à Rádio
Renascença que o elemento mais importante da equipe cirúrgica é o anestesista.
Ora, aqui tenho duas figuras - o par do tango e o
anestesista - de que me
vou servir como arquétipos para dizer que, mais importante que o escritor, no
caso vertente o poeta, é o leitor. De que serve ao poeta escrever versos se não
tiver o leitor? Mas, o bom leitor. Este é o destinatário do poeta - aquele que o poeta pretende
sujeitar a si sem o subjugar, sem que seja à medida do leitor impingindo-lhe o
produto.
copyright da imagem Jose Fernando Delgado Mendonça
O leitor inteligente e criativo, o que
não se quer ver diminuído enquanto bom leitor, de imediato rejeita esse poeta,
esse escritor que o subjuga, que lhe impinge o produto, porque o bom leitor não
se deseja ver desprestigiado enquanto tal. E há tantas maneiras de sujeição - usa-se muito por mensagens
particulares no facebook, por exemplo, antes de submeter o poema à leitura
pública.
Esse leitor menos atento ou menos
inteligente que não se quer dar ao trabalho de pensar para criticar,
"embarca" nesses cantos de sereia, e aplaude porque o vizinho
aplaudiu, e "gosta" sem saber se gosta do que lê, quando o lê, porque
também "gosta" sem gostar do que lê, simplesmente porque
"gosta" da cara daquele que lhe impinge o produto ou porque não quer
desagradar, mesmo não gostando.
O escritor quando escreve, o poeta que
faz poesia, não é para si que escreve, que faz versos, mas para o leitor que o
deve julgar sem sujeição. O bom leitor, - o bom par de dança que conduz harmoniosamente no tango; o
bom e atento anestesista que garante a cirurgia com êxito. O bom leitor é o
melhor crítico que o escritor tem. Também o leitor espera do escritor, do
poeta, um espírito criativo que o leve a distanciar da falange vulgarizadora
que, sem crivo, escreve banalidades do senso comum - não confundir "senso
comum" com "bom senso".
Então, o leitor faz assim tanta falta
ao poeta, se o acto de escrever é um labor solitário? Será que eu preciso mesmo
do leitor (?) para escrever, enquanto me debato, sozinho, com a página em
branco num sótão fechado a cheirar a mofo e a mijo de gato? - Claro que isto é poético,
porque o poeta de hoje já não precisa da solidão irrefragável para escrever. A
solidão irrefragabilis de que os
poetas necessitam para fazer versos, é falsa. Hoje há poetas que escrevem entre
garrafas de cerveja vazias, escrevem entre os comentários que vão deixando,
aqui e ali, aos amigos do facebook que vão lendo (e às vezes plagiando),
escrevem no meio da refrega de qualquer evento a que assistem, muitas vezes
apontando num caderninho restos de versos que apanham no ar para depois os
enquadrarem - e mal
enquadrados - em poemas seus.
Pois eu preciso, tanto do leitor que
me lê e me critica com intenção séria, como do silêncio para escrever. Porque é
no silêncio que eu medito enquanto crio, é a voz do silêncio que funciona no
meu íntimo criador como motor imóvel, mas que (me) faz mover no tempo de
criação. Em mim, o acto de escrever é um labor solitário que exige, enquanto
escrevo, que esteja só, ausente do tumulto, do ruído, o estridente que me
atropela as ideias - por isso
escrevo sempre entre as duas e as cinco da manhã. No silêncio me refugio para
escrever, mas não vivo em solidão. Esse ruído estentóreo, que retumba e
atordoa, nada tem a ver com o som - o som é uma percepção sensorial musical que até o silêncio
tem; a voz do silêncio tem frequências que se harmonizam e me transportam a
estados de alma que me ajudam, enquanto poeta, neste acto de criatividade. Mas
não chamo a isso "inspiração".
Apenas um parentese para fazer notar
que eu digo "criatividade" e não "inspiração" - porque, não acredito em
inspiração; para mim, a inspiração não existe, porque não há musas, nem deuses,
nem tágides, nem qualquer outra divindade celestial oculta e estranha a mim, a
soprar-me os versos ao ouvido, a ditar-me a força da palavra. Para o que
escrevo sirvo-me daquilo que imagino, que idealizo e daquilo que os meus olhos
e sentidos veem e sentem. A minha inspiração é a palavra, é o labor
"transpirado" com que a ergo nesse silêncio em que medito... e, se há
algo a que possa inadequadamente e injustamente chamar "inspiração", quando
esse fervor de criar vem do "favor" de outrem, colhido de outrem, sem
o plagiar, isso chama-se "influência" - e essa influência também me
angustia enquanto aprendiz do Mestre; este, sim, é o criador genuíno que não
sofre a angústia da influência de que fala Harold Bloom - mas, criadores genuínos, há
poucos.
Entro em pânico ao enfrentar a página
em branco, se não encontro a palavra certa para iniciar a frase, para começar o
verso que me servirá de arranque e impulsionará ao longo do papel. É nestas
alturas - do pânico
da página em branco - em que a
criatividade me falta, que eu receio defraudar o meu parceiro de escrita, o meu
par para dançar o tango: você, caro leitor...
...aqui presente, a quem agradeço por
ter vindo, por estar aqui, hoje, comigo e com os poemas deste "... Sereno
Fluir das Coisas", que afinal, são seus. Obrigado.
Alvaro
Giesta
10 de
Outubro de 2018
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