22/10/18

O DESPERTAR DA PALAVRA POÉTICA?


                             As palavras podem formar uma escrita nativa
                                                           de corpos claros
                                                           ANTÓNIO RAMOS ROSA
                                                                                                         
                                                                       Desta vergonha de existir ouvindo,
                                                                       amordaçado, as vãs palavras belas,
                                                                       por repetidas quanto mais traindo
                                                                       tornadas vácuas da beleza delas;
                                                                       JORGE DE SENA

Copyright da imagem Jose Fernando Delgado Mendonça
No contexto e no desenvolvimento da modernidade e das correntes que lhe estão associadas, e muitas há, algumas até de sinal contrário, a palavra poética ganhou fôlego e autonomia e, ainda hoje, sendo outros os parâmetros e até as ideias expressas pela poesia, que se tem vindo a reconstituir como “um regresso ao sentido”, a palavra e a sua reconfiguração estética se é que não estão propriamente no centro de tão laboriosa construção psicológica, constituem a reserva de energia capaz de emocionar, de questionar, de abrir caminhos, capaz “da força do rasgar / do corpo rumo ao céu”, “corpo do poeta / que espera a voz inicial do tempo (…)” (in “O Sereno Fluir das Coisas” de Alvaro Giesta).
A linguagem ocupou um espaço mais amplo (“consomem o espaço”), sorveu a revolução tecnológica e influiu decisivamente no ritmo do despertar emocional, através do desencadeamento e do encadeamento de um número infinito de imagens e de novos símbolos, até aí improváveis ou proscritos, e que traduzem uma ruptura com processos anteriores e consigo mesma.
Mallarmé o poeta francês nascido em Paris em 1840, que alguns apelidaram de “mestre dos simbolistas”, valorizou o papel da linguagem na poesia, essa forma de expressão humana trazida ao seu ritmo essencial, ao misterioso significado da existência. (Abril de 1866).
Entre nós essa autonomia da linguagem foi valorizada por poetas e críticos literários de várias épocas. Nesse sentido, escreveria Casais Monteiro que a “libertação da palavra é o fenómeno mais marcante da evolução da poesia de há um século para cá”. Já Nuno Judice infere que a conquista da modernidade traz “essa autonomia da linguagem cujo mecanismo, uma vez posto em movimento, dispensa as contingências da comunicação para colocar ao nosso alcance a imagem de um possível diálogo com o absoluto”.
“No texto poético as palavras adquirem uma maior liberdade pela soma inesgotável de temas que (se) nos propõem à imaginação trabalhando a matéria desses temas com a arte poética que eles merecem. Daí que considere que não há morte em literatura.” (in posfácio “Retorno ao Princípio” de AG)
Porque no seu entendimento, é o nada e do nada que nasce a linguagem poética; é aí, no preciso lugar “onde a luz e a obscuridade coincidem e se transformam” que se dá o acto inaugural da palavra. (Idem)
Na linguagem poética a palavra não morre. A palavra, se morre, é para dar vida à palavra nova porque “a palavra é a vida dessa morte” como nos diz o filósofo Maurice Blanchot (…).” (Idem).
Esta é afinal a tal dialéctica vida-morte de que AG no “Retorno ao Princípio” em que o processo que leva à morte da palavra para dar a “palavra nova” significa transformação, resultado da ruptura entre as forças antecedentes e subsequentes e assim sucessivamente.
Para o autor de “Um arbusto no olhar” a linguagem de que se serve para elaborar a sua arte poética tem por missão “expressar sentimentos humanos e transmitir, de forma subjectiva, aspectos da nossa realidade – medos, angústias, anseios, desgraça, pobreza… tudo quanto seja marginal (…).
Em “Nota do Autor” do seu segundo livro de poesia “Meditações sobre a palavra”, um tributo ao poeta Ramos Rosa, afirma sem hesitação e fiel à sua devoção literária: “Há que reconhecer que se pode e deve dar novo uso à palavra poética. “a palavra nova agita um tempo novo/harmonizam-se os elementos” escreve . Um uso não-lírico, onde o “artefacto rigoroso da busca” e da construção e emprego da palavra no todo do edifício poético, dê verdadeiro sentido intelectual à obra construída”. Uso não-lírico, entendo eu, devido à quase inexistência da volúpia do corpo - o rosto, as mãos, o beijo, as linhas sinuosas que circundam o sexo -, a imagem perfeita de um destino apaixonado (“noutros tempos eu sabia escrever o amor”). É a palavra, no corpo do poema, raiz, sangue, nascente que encarna a relação afetiva e a exaltação da beleza e do enamoramento. (“ergue-se a palavra//(essa namorada extraviada do silêncio)”).
A palavra é a afirmação da subjectividade em estado de pureza máxima e é simultaneamente o Centro da criação, Terra, Água, Sol, Luz:

Na indefinição do tempo
o corpo todo corre em busca da palavra pura
perdida na imprecisão do gesto
(…)”
Mas o poeta é o artífice ágil que extrai a palavra do húmus da terra e que resgata a essência da escrita na alquimia dos símbolos, dispersos no espaço onde as trevas se fundem com claridade. O poeta caminha entre deuses, entre rios, entre gente cansada e queixosa, entre o sol e os ventos ferozes, como ele próprio nos diz, numa “busca sem princípio e sem fim/à procura do seu céu”. AG é o homem erguido do corpo do poema que:

Como o búzio espera o som
nas areias da praia esquecida
ou a terra espera o fruto para crescer
                        após arada           assim espero a palavra;
                       
depois
como o oleiro ao barro
modelo-a
como o escultor usa o cinzel,
limo-lhe as arestas

como o artesão na forja
uno-lhe os espaços vazios

esculpo-a
amo-a,
e construo dela o meu edifício todo

O universo da linguagem poética de AG baseia-se na função que à palavra cabe de preencher, ou dito de outro modo, de fecundar o vazio, o nada, a sombra, o silêncio, a solidão, o branco da página por escrever e de (re)nascer do abismo do tempo, lugar obliquo onde se esvaem as paixões e os homens enlouquecem despojados da própria alma.
AG é um herdeiro legítimo e ao mesmo tempo um continuador dessa herança da cultura literária ocidental de que temos vimos a falar, o seu labor poético, marcado da maior coerência intelectual, incessantemente criativo, organizador de imagens, recriação de um sonho por sonhar, humanamente intenso e directo, manifestando a crença na religiosidade da palavra, sem destino, interrogativo, (“nela se interrompe e se começa/nela se busca e se encontra,/ela se inventa num sempre novo navegar;”). Navegar é preciso, disse o grande poeta, viver também é preciso. Escreve-se no espaço em branco sem rosto para anunciar o caminho, encontrar o que possa existir do outro lado do corpo enclausurado; deus ignorado, vazio e exangue, longínquo, sentado nas pedras de fogo e sangue da cidade com casas onde falta o pão e debruçado sobre o tempo para assistir para além dos horizontes sagrados àquela que é toda a génese da poesia de AG: o acto inaugural da palavra! Palavra rigorosa, escultural, nua, violenta, alada que mergulha no magma do poema e solta o grito da verdade com a ascensão do sol ao Monte Parnaso.
Num pequeno livro de edição de autor, de Abril de 2016, “O Discurso dos pássaros”, dividido em duas partes, “voo sem asas” e “o poeta em frágeis aspirações”, persuadimo-nos de que o poeta inventa a luz, inventa os mitos, as metáforas de solidão e medo e ganha asas com o gesto da criação, acto de transfiguração do silêncio e do vazio. A sua voz nasce da imensidão do verso por entre as sombras de um tempo inócuo e remoto onde a palavra de deus se tornou inaudível mesmo quando o sonho se disseminou magicamente pela memória.
O poeta não teme arriscar a procura da palavra inicial, a palavra-embrião que encarna o sonho e a angústia, o fogo da inquietação e a liberdade, a indigência e o silêncio da morte. É o tempo do poeta! É o tempo de haver uma efabulação fecunda com palavras que valem mais que as profecias dos deuses ausentes, ou vazios, ou inventados sobre o mistério dos infinitos céus que escondem a vegetação de novos paraísos. Ao poeta só interessa o “ofício” de cavar o chão rochoso e agreste e sentir o sabor que nas mãos fica por dos dedos nascer a poesia. O que há de mais puro no coração ávido que anseia a água da vida e o ser, senão a poesia! O que há de mais humanamente verdadeiro e livre, senão a poesia!
Como escreveu Eduardo Lourenço “O acto que define o homem como criador é o acto poético, a poesia. O que os poetas fazem, fundamentalmente, são variações infinitas sobre esse objecto, o tempo, que é mais esfíngico que todas as esfinges, porque é ele que nos olha no fundo dos olhos sem dar resposta. A resposta somos nós que temos de dar com a nossa vida, com a nossa existência.”
O conjunto da obra poética de AG, com um total de 9 livros - trazidos a este encontro de um modo não sistematizado, a-cronológica, quase-estético e incompleto -, apresenta-se como um repertório de grande riqueza poética e humana, muito multifacetado tanto em relação às opções formais, como no que se refere aos alvos da sua reflexão filosófica, psicológica, social ou apenas no plano literário – sempre numa cadência viva, com pausas respiratórias que nos ajudam a entrar no jogo subtil da luta de contrários e na partitura poética, na qual o “poeta-artesão” inscreve, com incansável rigor, as imagens, as metáforas e a geografia onírica de uma peregrinação, transitando, por vezes, de poema para poema ou de livro para livro. AG conhece e manuseia com mestria as leis de desencadeamento da emocionalidade numa combinação balanceada com o acto racional.
Percorremos a extensa obra de AG que não obstante o conhecimento que da mesma já possuíamos, não deixou de nos impressionar intensamente, sendo surpreendidos a cada nova leitura pelo avistamento de outros horizontes, imprevistos até então, e, claro, pela descoberta do segredo do fogo do seu lirismo racional!
Aquele fraterno abraço, amigo Alvaro Giesta
                                                                                                                      José Baião Santos
Outubro – 2018

Sem comentários:

Enviar um comentário

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...