As
palavras podem formar uma escrita nativa
de corpos
claros
ANTÓNIO
RAMOS ROSA
Desta
vergonha de existir ouvindo,
amordaçado,
as vãs palavras belas,
por
repetidas quanto mais traindo
tornadas
vácuas da beleza delas;
JORGE
DE SENA
Copyright da imagem Jose Fernando Delgado Mendonça
No
contexto e no desenvolvimento da modernidade e das correntes que lhe estão
associadas, e muitas há, algumas até de sinal contrário, a palavra poética
ganhou fôlego e autonomia e, ainda hoje, sendo outros os parâmetros e até as
ideias expressas pela poesia, que se tem vindo a reconstituir como “um regresso ao sentido”, a palavra e a
sua reconfiguração estética se é que não estão propriamente no centro de tão
laboriosa construção psicológica, constituem a reserva de energia capaz de
emocionar, de questionar, de abrir caminhos, capaz “da força do rasgar / do corpo rumo ao céu”, “corpo do poeta / que espera a voz inicial do tempo (…)” (in “O
Sereno Fluir das Coisas” de Alvaro Giesta).
A
linguagem ocupou um espaço mais amplo (“consomem
o espaço”), sorveu a revolução tecnológica e influiu decisivamente no ritmo
do despertar emocional, através do desencadeamento e do encadeamento de um
número infinito de imagens e de novos símbolos, até aí improváveis ou
proscritos, e que traduzem uma ruptura com processos anteriores e consigo
mesma.
Mallarmé
o poeta francês nascido em Paris em 1840, que alguns apelidaram de “mestre dos
simbolistas”, valorizou o papel da linguagem na poesia, essa forma de expressão
humana trazida ao seu ritmo essencial, ao misterioso significado da existência.
(Abril de 1866).
Entre
nós essa autonomia da linguagem foi valorizada por poetas e críticos literários
de várias épocas. Nesse sentido, escreveria Casais Monteiro que a “libertação
da palavra é o fenómeno mais marcante da evolução da poesia de há um século
para cá”. Já Nuno Judice infere que a conquista da modernidade traz “essa
autonomia da linguagem cujo mecanismo, uma vez posto em movimento, dispensa as
contingências da comunicação para colocar ao nosso alcance a imagem de um
possível diálogo com o absoluto”.
“No
texto poético as palavras adquirem uma maior liberdade pela soma inesgotável de
temas que (se) nos propõem à imaginação trabalhando a matéria desses temas com
a arte poética que eles merecem. Daí que considere que não há morte em
literatura.” (in posfácio “Retorno ao Princípio” de AG)
Porque
no seu entendimento, é o nada e do nada que nasce a linguagem poética; é aí, no
preciso lugar “onde a luz e a obscuridade coincidem e se transformam” que se dá
o acto inaugural da palavra. (Idem)
Na
linguagem poética a palavra não morre. A palavra, se morre, é para dar vida à
palavra nova porque “a palavra é a vida dessa morte” como nos diz o filósofo
Maurice Blanchot (…).” (Idem).
Esta
é afinal a tal dialéctica vida-morte de que AG no “Retorno ao Princípio” em que
o processo que leva à morte da palavra para dar a “palavra nova” significa
transformação, resultado da ruptura entre as forças antecedentes e subsequentes
e assim sucessivamente.
Para
o autor de “Um arbusto no olhar” a linguagem de que se serve para elaborar a
sua arte poética tem por missão “expressar
sentimentos humanos e transmitir, de forma subjectiva, aspectos da nossa
realidade – medos, angústias, anseios, desgraça, pobreza… tudo quanto seja
marginal (…).”
Em
“Nota do Autor” do seu segundo livro de poesia “Meditações sobre a palavra”, um tributo ao poeta Ramos Rosa, afirma
sem hesitação e fiel à sua devoção literária: “Há que reconhecer que se pode e deve dar novo uso à palavra poética. “a
palavra nova agita um tempo novo/harmonizam-se os elementos” escreve . Um uso
não-lírico, onde o “artefacto rigoroso da busca” e da construção e emprego da
palavra no todo do edifício poético, dê verdadeiro sentido intelectual à obra
construída”. Uso não-lírico,
entendo eu, devido à quase inexistência da volúpia do corpo - o rosto, as mãos,
o beijo, as linhas sinuosas que circundam o sexo -, a imagem perfeita de um
destino apaixonado (“noutros tempos eu
sabia escrever o amor”). É a palavra, no
corpo do poema, raiz, sangue, nascente que encarna a relação afetiva e a
exaltação da beleza e do enamoramento. (“ergue-se
a palavra//(essa namorada extraviada do silêncio)”).
A palavra é a
afirmação da subjectividade em estado de pureza máxima e é simultaneamente o Centro da criação, Terra, Água, Sol,
Luz:
“Na indefinição do tempo
o corpo todo
corre em busca da palavra pura
perdida na
imprecisão do gesto
(…)”
Mas
o poeta é o artífice ágil que extrai a palavra do húmus da terra e que resgata
a essência da escrita na alquimia dos símbolos, dispersos no espaço onde as
trevas se fundem com claridade. O poeta caminha entre deuses, entre rios, entre
gente cansada e queixosa, entre o sol e os ventos ferozes, como ele próprio nos
diz, numa “busca sem princípio e sem fim/à procura do seu céu”. AG é o homem erguido
do corpo do poema que:
Como o búzio
espera o som
nas areias da
praia esquecida
ou a terra
espera o fruto para crescer
após
arada assim espero a palavra;
depois
como o oleiro ao
barro
modelo-a
como o escultor
usa o cinzel,
limo-lhe as
arestas
como o artesão
na forja
uno-lhe os
espaços vazios
esculpo-a
amo-a,
e construo dela
o meu edifício todo
O
universo da linguagem poética de AG baseia-se na função que à palavra cabe de
preencher, ou dito de outro modo, de fecundar o vazio, o nada, a sombra, o
silêncio, a solidão, o branco da página
por escrever e de (re)nascer do abismo do tempo, lugar obliquo onde se
esvaem as paixões e os homens enlouquecem despojados da própria alma.
AG
é um herdeiro legítimo e ao mesmo tempo um continuador dessa herança da cultura
literária ocidental de que temos vimos a falar, o seu labor poético, marcado da
maior coerência intelectual, incessantemente criativo, organizador de imagens,
recriação de um sonho por sonhar, humanamente intenso e directo, manifestando a
crença na religiosidade da palavra, sem destino, interrogativo, (“nela se interrompe e se começa/nela se
busca e se encontra,/ela se inventa num sempre novo navegar;”). Navegar é
preciso, disse o grande poeta, viver também é preciso. Escreve-se no espaço em
branco sem rosto para anunciar o caminho,
encontrar o que possa existir do outro lado do corpo enclausurado; deus
ignorado, vazio e exangue, longínquo,
sentado nas pedras de fogo e sangue da cidade com casas onde falta o pão e debruçado sobre o tempo
para assistir para além dos horizontes sagrados àquela que é toda a génese da
poesia de AG: o acto inaugural da palavra! Palavra rigorosa, escultural, nua,
violenta, alada que mergulha no magma do poema e solta o grito da verdade com a ascensão do sol ao Monte Parnaso.
Num
pequeno livro de edição de autor, de Abril de 2016, “O Discurso dos pássaros”, dividido
em duas partes, “voo sem asas” e “o poeta em frágeis aspirações”,
persuadimo-nos de que o poeta inventa a luz, inventa os mitos, as metáforas de
solidão e medo e ganha asas com o gesto da criação, acto de transfiguração do
silêncio e do vazio. A sua voz nasce da
imensidão do verso por entre as sombras de um tempo inócuo e remoto onde a
palavra de deus se tornou inaudível mesmo quando o sonho se disseminou magicamente pela memória.
O
poeta não teme arriscar a procura da palavra inicial, a palavra-embrião que
encarna o sonho e a angústia, o fogo da inquietação e a liberdade, a indigência
e o silêncio da morte. É o tempo do poeta! É o tempo de haver uma efabulação
fecunda com palavras que valem mais que as profecias dos deuses ausentes, ou
vazios, ou inventados sobre o mistério dos infinitos
céus que escondem a vegetação de novos paraísos. Ao poeta só interessa o
“ofício” de cavar o chão rochoso e agreste e sentir o sabor que nas mãos fica por dos dedos nascer a poesia. O
que há de mais puro no coração ávido que anseia a água da vida e o ser, senão a
poesia! O que há de mais humanamente verdadeiro e livre, senão a poesia!
Como
escreveu Eduardo Lourenço “O acto que
define o homem como criador é o acto poético, a poesia. O que os poetas fazem, fundamentalmente, são
variações infinitas sobre esse objecto, o tempo, que é mais esfíngico que todas
as esfinges, porque é ele que nos olha no fundo dos olhos sem dar resposta. A
resposta somos nós que temos de dar com a nossa vida, com a nossa existência.”
O
conjunto da obra poética de AG, com um total de 9 livros - trazidos a este
encontro de um modo não sistematizado, a-cronológica, quase-estético e
incompleto -, apresenta-se como um repertório de grande riqueza poética e
humana, muito multifacetado tanto em relação às opções formais, como no que se
refere aos alvos da sua reflexão filosófica, psicológica, social ou apenas no
plano literário – sempre numa cadência viva, com pausas respiratórias que nos
ajudam a entrar no jogo subtil da luta de contrários e na partitura poética, na
qual o “poeta-artesão” inscreve, com
incansável rigor, as imagens, as metáforas e a geografia onírica de uma
peregrinação, transitando, por vezes, de poema para poema
ou de livro para livro. AG conhece e manuseia com mestria as leis de
desencadeamento da emocionalidade numa combinação balanceada com o acto
racional.
Percorremos
a extensa obra de AG que não obstante o conhecimento que da mesma já
possuíamos, não deixou de nos impressionar intensamente, sendo surpreendidos a
cada nova leitura pelo avistamento de outros horizontes, imprevistos até então,
e, claro, pela descoberta do segredo do
fogo do seu lirismo racional!
Aquele
fraterno abraço, amigo Alvaro Giesta
José
Baião Santos
Outubro – 2018
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