Introdução:
Sei
que há por aí poetas que não gostam que se fale e que se diga poesia e sobre
poesia de poetas outros, ainda vivos entre nós ou já passados ao eterno, e
preferem que seja a sua poesia a dominar o panorama poético presente e futuro.
Puro egoísmo ou absoluta ignorância?
O que leva a interrogar (-me): como é que eu
posso saber, como é que eu posso demonstrar saber, se nunca li nada -
ou muito pouco - para além de
mim, para além daquilo que eu próprio escrevo? Como é que eu posso dizer que o
que escrevo é bom, isto é, tem valor -
para além do restrito valor que os amigos atribuem às minhas obras, que muitas
vezes nem leem e apenas conhecem pela rama nesse alfobre de poetas facebokeanos
que me classificam apenas com curtos adjectivos de cortesia -
como é que eu me posso afirmar literariamente apenas com base nos elogios do
momento, como é que eu me posso avaliar pelo que sou ou deixo de ser, se eu não
tenho, como suporte, em termos comparativos, o conhecimento da escrita dos meus
pares? Isto para não falar na crítica literária... assunto melindroso pela
falta de honestidade e objectividade dos críticos actuais que funcionam em compadrio
com editoras, com certos autores e com certas campanhas de atribuição de
prémios literários. Puro mercantilismo. "Salvo raras e honrosas excepções, não
se faz crítica, aquela que disseca, analisa, pormenoriza, caracteriza, entende,
estabelece paradigmas e destila ensinamentos".
Quanto
à poética em questão - aquela aqui em análise -,
atrevo-me a perguntar(-me) a mim mesmo: Como poderia eu falar do Poeta José
Baião Santos se não me tivesse interessado por ler de si -
ainda que muito pouco -, para dele
dizer com a propriedade que me confere o meu ponto de vista?!
Sobre o poeta:
Eis
a razão da pequena nota de abertura àquilo que vou dizer da poesia do poeta em
apreço. Falemos agora de poesia, no geral (apenas um ou dois minutos) para
depois enquadrarmos este autor. Nos estudos essenciais para a Poesia e Poema
dizia-nos Octávio Paz (e lá voltamos nós aos poetas que já passaram ao eterno
para indisposição daqueles que só conhecem, e nalguns casos mal, poetas vivos, mas que, no dizer do Poeta José Duro -
outro que há muito nos deixou - nos dois
últimos versos do seu último poema inserto no livro FEL «o poeta nunca morre
embora seja agreste / a sua inspiração e tristes os seus versos», sublinho,
dizia-nos o poeta chileno Paz, no seu longo ensaio que lhe valeu o Nobel da
Literatura em 1990 «A poesia é conhecimento, é um exercício espiritual, é um
método de libertação interior; a poesia revela este mundo; cria outro. A poesia
é pão dos eleitos; é inspiração e transpiração. É súplica ao vazio, é diálogo
com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e desespero. É oração, é
epifania, é sublimação... é arte de falar.» E eu acrescento: "é arte de
escrever em forma superior." Muitas outras qualificações poderiam aqui ser
referidas, repetindo Paz ou outros poetas a quem a fama aureolou com palma
sobre a cabeça, para definir a indefinível forma superior da escrita -
a poesia.
Com
muita dificuldade, não de entendimento dos poemas lidos do poeta José Baião em
"Poema Sobrevivente", "As casas", "A Linha de
Fronteira", "Dança Ritual" e muitos outros das pesquisas feitas -
que, diga-se em abono da verdade, não são poemas simples de entender, pela
exuberância do verso e do verbo no uso que faz de sábias palavras -
mas dificuldade, sim, da escolha, deixo aqui pequenos excertos em obediência ao
tempo que me é dado para a prelação.
O
"Poema Sobrevivente", como diz o autor «sobressai nos antípodas da
retórica corrente o mito da liberdade». Eu digo mais: neste fenómeno da escrita
de José Baião Santos, onde provavelmente o poeta nunca quis mais do que fazer
acontecer a palavra poética, sem resistência e sob a forma do texto
arbitrariamente designado por "Verso Livre", facilmente se depreende -
sem a necessidade de ser grande especialista na matéria - de que este projecto (aliás, toda a
poesia do poeta que me foi dado conhecer) tem absoluto substracto literário,
ainda que o poeta, pela sua humildade e simples modéstia, sem vaidade, nos
possa dizer que está longe de si essa intenção. Deliciemo-nos com este poema em
que o fenómeno poético, criado pela organização de imagens em associações
criativas, dão o essencial significado àquilo que a poesia precisa para tal ser:
ritmo e imagem -
inseparáveis no articulado dos poemas de José Baião.
«Tu és a água
Eu sou o ventre das algas
Enquanto estivermos a sorrir a máquina eólica
vai pulverizando o linho fiado
nas espadas de
ébano
Os líquenes e a dor
Beijam a terra com subterrâneos de
casas e pele envelhecida pelo fogo
Os insectos sobrevoam navios
Dizias-me tu, ontem
Que a guerra só destrói os crânios das
árvores,
Deixando intactos os diospiros da morte
Enforcados nos ramos do vento
Esplêndida ideia para os homens:
- Um dilúvio, em vez da deflagração de um
violino num casulo de comédia
(...)
O peso e o lume das palavras
Repartem entre si
O espaço sideral Sulcado de moinhos de chuva
Que se eleva acima
Do ódio e da verdade
Aquele corpo ali
Que foge entre as ameias do mar
Esconde no sexo
Anos de morte e solidão
As aves que voam na sua direcção
São os anjos do pudor
Capazes de ferir um coração sentado nas
pétalas do deserto
Pedem-me que me cale
Que ignore a fúria da lealdade
(...)
Querem-me inerte, anémona em vez de
livro
Para que se oiça o véu da cobardia
A crisálida azul onde guardavas as joias
e os troféus
(...)
O que vocês ambicionam
- confessem lá, ó gigantes do nada!
É a perpétua rendição dos desejos
Onde eu me refazia das anestesias da
solidão há muitos milhões de anos
Deitado a olhar os segredos
Da neblina»
Parece
um poema imprevisto, não é?! Pois a poesia de José Baião não deriva, nem do
assunto tratado, nem da forma adoptada - aliás, ele é
mestre do verso longo e do extenso poema do verso livre a lembrar Walt Whitman,
que o introduziu, e continuado por Pessoa e outros que só interessaria aqui
referir com mais profundidade se isto fosse ensaio ou aula de literatura para
que não estou habilitado. Mas não é: é apenas uma breve homenagem ao poeta José
Baião Santos e, por isso, dele falo.
O
poema atrás referido é um pequeno extracto do longo "Poema
Sobrevivente" escrito por fragmentos -
vinte e um longos fragmentos -
de
longos versos. Parece ser coisa simples de fazer: escrever um poema que muitas
vezes forma uma só obra, por fragmentos e sem sujeição às cadeias da pontuação,
especialmente ao ponto final, mas não é. É coisa bastante difícil de fazer pela
complexidade e encadeamento da ideia poética que se pretende transmitir a quem
lê - é como se cada fragmento do poema
fosse, por si só, um órgão: coração, rim, pulmão, membros a dar consistência e
força ao poema, a formar o corpo.
O
seu poema -
e aqui "poema" cabe àquilo que conheço da sua poesia -
é a projecção de uma ideia através da emoção. Ele serve-se da emoção -
aquilo que faz o encanto na leitura dos seus poemas -
não como base da sua poesia mas como ideia para dar às suas palavras a forma de
poesia como se fosse epifania (sem conotação religiosa, claro). São encontros
casuais de palavras que ele extirpa do sentido comum, são palavras em fricção,
em choque entre vocábulos que dão à sua poesia um "jorro enorme de faúlhas
sábias".
«Cada
palavra
Lançada
aos esporos do silêncio
abre-se como um fruto
(...)
A luz das palavras
Devolve
a magia dos dedos
Até
se refazer da coragem
Dispersa
com pedaços de um vento frio
Como
toda a agonia da tarde»
A
poesia de José Baião vem de longe - vem do âmago,
do interior, do fundo da alma, mas toda ela de cariz estético: é nisto que
reside a arte da poesia. De verso longo, não hesita em entranhar-se nos
sentidos florestais do poeta - como se numa passagem de "poesia
impura" a "poesia pura" (não aquela que não procura senão a
harmonia, o ritmo, a melodia - que não seria mais do que música -
mas aquela que se considera ser no poeta Baião, poesia intelectual, embora
nunca se expurgando dos vestígios de vida; se assim fosse "expurgada de
vida" estaríamos perante uma poesia fria, calculista, uma poesia traçada a
compasso e a esquadro como no tempo dos concretistas. Esta, do José Baião, é
poesia com a alma do poeta dentro e a existência do real por companhia. Como o
poeta diz: «Demos as mãos / eu e a evidência // Acredite-se ou não / recebi
como recompensa das mãos da bondade / o veneno do sal». E ainda, dele «(...)
pergunto ao camponês que dorme nas esteiras de colmo qual o melhor caminho para
alcançar a água dos deuses (mas) nunca ninguém ouviu falar de um tal caminho
(...)».
Mesmo
quando em "Linha de Fronteira" - um longo poema -
ele nos oferece a poesia sob uma crosta áspera, austera, com reservas de
eloquente "não-dito", repare-se que a roupagem
poética é simples, mas interessa desnudar o corpo, descobri-lo, porque lá
dentro há um tesouro escondido como se fosse a cavidade oca de uma rocha com o
interior revestido de cristais.
«De
um lado estamos nós, feridos no caule
Do
outro lado a plenitude das aves que sobrevoam os corpos de linho
Transpomos
os continentes, com uma única excepção - O
CONTINENTE DISPERSO
Vejo os dias empurrar os navios
Para a linha de fronteira, de lá para
cá, com os seus ventres
De sargaço rastejante
Até que o sol denuncie a presença de uma
melodia contaminada pelo óxido
Das estradas
Viajo entre dois mundos sem sentir
(...)
A fronteira que divide a paisagem do
ódio em dois astros
Reparte as angústias
Acende velas de inconciliável egoísmo
(...)»
É
como diz Fernando Lobo em "Elogio Breve" dedicado a José Baião, poeta
convidado da Revista Literária A Chama, de que fui fundador e editor, na sua
edição n.º 8 do 2.º trimestre de 2014 - os versos do
poeta e amigo Baião são (e cito) «enlaces de metáforas que o afasta,
categoricamente, da falácia doutros poetas para nos projectar no universo
ideativo da fala, de modo a descobrirmos uma reentrância no espaço poético e
ideológico da palavra.» E eu acrescento: nesta conjugação de palavras poéticas,
na ideia de interacção entre elas, o poeta José Baião -
que tão arredio anda de edições de novas obras que tardam em chegar -
transfere para o poema o mundo sob a forma de eco, e não do eco do mundo. Ele
não altera o mundo com as suas palavras porque permite ao outro -
a quem o lê e interpreta - a perceção do mundo. Do seu poético e ideal
mundo.
Estas
«águas fecundas», que alastram «ao ritmo da dissolução da memória», servem para resgatar a palavra ao nível da
interpretação poética e do conhecimento. Assim, diremos como Gil Jouanard que
«a poesia, vem sempre de mais longe do que aonde as palavras são capazes de nos
conduzir». E como o poeta chileno Paz - lá voltamos nós
ao grande mestre, eixo e ponto de referência: «A poesia polariza-se, congrega-se
e isola-se num ponto humano: quadro, canção, tragédia -
o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se
revela plenamente».
Vejam,
a terminar em Baião, no "Silêncio da Dor" em EGODISTONIA esta tríade atrás
referida -
poesia que se ergue e forma o corpo:
«(...)
o corpo esconde-se na palavra
para
poder sofrer
sem
que ninguém o ouça
Tudo
lhe fere as veias - os ossos
o sémen -
penetrando a raiz do medo
Sem dúvida inventaste o grito da terra
para nos aproximar do passado
esse lugar onde desvendamos a fórmula
do silêncio incolor
como o beijo dos felinos»
Plagiando
de algum modo palavras do poeta simbolista Gomes Leal, vejo em José Baião um
trabalho laborioso da ideia, um lapidar da palavra poética com os versos
encatenados entre si formando um rosário luminoso conduzindo-nos sem
dificuldade ao objectivo final do poema - parece-me um «laboratório
intelectual num processo semelhante ao da natureza transformando da lagarta a
borboleta, do carvão o diamante, e da ostra doente a pérola».
Autor do texto: Alvaro Giesta
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