02/04/17

OU PURAS ALUCINAÇÕES POÉTICAS

Uma obra não pode ser destituída de valor poético, se nela houver valor poético, ainda que pareça ser uma divagação; também uma obra poética que pareça não ter valor literário, não deixa de ser poética.
(...)
Na obra poética, a "descida aos infernos", metaforicamente, não é mais do que um processo de depuração do poeta para a "subida ao céu". Bergson falava em «estados de concentração superior» e, comparativamente, esta "descida" poética é um processo de conhecimento, de actividade constante do espírito do poeta no tal "processo de depuração". Enquanto descida, neste processo de purificação a que o poeta recorre neste «acto de solidariedade entre espírito e o seu objecto», é subida ao mesmo tempo enquanto passagem a um estádio de concentração superior. Será isto uma "pura fantasia" dos poetas ou corresponderá, efectivamente, ao mundo real do seu pensamento poético-filosófico? Hipótese naturalmente aceite pelos poetas que abraçam a poesia com e como um fim; hipótese olhada com desdém por aqueles que não vão além de fingidores. «Voar é uma dádiva do pensamento» mas, é também no pensamento que esse voo poético se manifesta e se forma e dá recado.
Talvez a "pura fantasia" poética se dissolva nos espíritos duvidosos, se pensarmos que o poeta enquanto «homem ainda vivo» por um acto livre da vontade escolhe aperfeiçoar-se, ou não, na aprendizagem do poema;  "desce aos infernos" - um estádio inferior do saber - para depois de regenerado - atingido que foi o conhecimento - subir ao estádio superior onde só os iluminados chegam. Estas «viagens ao invisível», próprias dos clássicos, não são mais do que a «descoberta do subconsciente» que, levadas para a fantasia dos poetas, se transformam na "descida aos infernos" - o seu método de conhecer para aperfeiçoar o conhecimento que, uma vez alcançado, os torna portadores do Belo. Ganha agora novo fôlego o universo imagético, e ergue-se a palavra poética, e «o verso voa» adquirindo lugar primacial na visibilidade da imagem conduzindo à plena consciência do gesto criativo.
A ilustrar este pensamento, este poema de minha autoria; ou, antes, foi com o poema que me nasceu o pensamento.

[quando o descer é subir]

a coisa escura, completamente
escura
ergue-se, sem desiquilibrio
em quase objecto:
- tal é o corpo
que já não é,

amálgama de ossos
sem significado.

a alma, ainda sem fé
na incomensurável dor de não ter
desceu da vertigem
à vertigem,

- do tempo ao verbo
nele se fará.

da superfície, a alma
inerme
desce
até ao limiar da sombra
onde penetra
em busca da libertação.

do negro absoluto
a que desceu
- como se fosse ao vazio -
para nele meditar
e se recompor para a luz,

converge ao centro, como se fosse
o conceptáculo:
- nele se concentra para
a libertação.


indemne
assim há de subir
até ao vértice,
o cimo erguido
invectivo
do uniforme abstracto e absoluto.

a alma
assim se vai
«da lei da morte libertando» (L.V.Camões)



© Alvaro Giesta

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