Uma obra não pode ser
destituída de valor poético, se nela houver valor poético, ainda que pareça ser
uma divagação; também uma obra poética que pareça não ter valor literário, não
deixa de ser poética.
(...)
Na obra poética, a
"descida aos infernos", metaforicamente, não é mais do que um
processo de depuração do poeta para a "subida ao céu". Bergson falava
em «estados de concentração superior» e, comparativamente, esta
"descida" poética é um processo de conhecimento, de actividade constante
do espírito do poeta no tal "processo de depuração". Enquanto
descida, neste processo de purificação a que o poeta recorre neste «acto de
solidariedade entre espírito e o seu objecto», é subida ao mesmo tempo enquanto
passagem a um estádio de concentração superior. Será isto uma "pura
fantasia" dos poetas ou corresponderá, efectivamente, ao mundo real do seu
pensamento poético-filosófico? Hipótese naturalmente aceite pelos poetas que
abraçam a poesia com e como um fim; hipótese olhada com desdém por aqueles que
não vão além de fingidores. «Voar é uma dádiva do pensamento» mas, é também no
pensamento que esse voo poético se manifesta e se forma e dá recado.
Talvez a "pura
fantasia" poética se dissolva nos espíritos duvidosos, se pensarmos que o
poeta enquanto «homem ainda vivo» por um acto livre da vontade escolhe
aperfeiçoar-se, ou não, na aprendizagem do poema; "desce aos infernos" - um estádio
inferior do saber - para depois de regenerado - atingido que foi o conhecimento
- subir ao estádio superior onde só os iluminados chegam. Estas «viagens ao
invisível», próprias dos clássicos, não são mais do que a «descoberta do
subconsciente» que, levadas para a fantasia dos poetas, se transformam na
"descida aos infernos" - o seu método de conhecer para aperfeiçoar o
conhecimento que, uma vez alcançado, os torna portadores do Belo. Ganha agora
novo fôlego o universo imagético, e ergue-se a palavra poética, e «o verso voa»
adquirindo lugar primacial na visibilidade da imagem conduzindo à plena
consciência do gesto criativo.
A ilustrar este pensamento,
este poema de minha autoria; ou, antes, foi com o poema que me nasceu o
pensamento.
[quando o descer é subir]
a
coisa escura, completamente
escura
ergue-se,
sem desiquilibrio
em
quase objecto:
-
tal é o corpo
que
já não é,
amálgama
de ossos
sem
significado.
a
alma, ainda sem fé
na
incomensurável dor de não ter
desceu
da vertigem
à
vertigem,
-
do tempo ao verbo
nele
se fará.
da
superfície, a alma
inerme
desce
até
ao limiar da sombra
onde
penetra
em
busca da libertação.
do
negro absoluto
a
que desceu
-
como se fosse ao vazio -
para
nele meditar
e
se recompor para a luz,
converge
ao centro, como se fosse
o
conceptáculo:
-
nele se concentra para
a
libertação.
indemne
assim
há de subir
até
ao vértice,
o
cimo erguido
invectivo
do
uniforme abstracto e absoluto.
a
alma
assim
se vai
«da
lei da morte libertando» (L.V.Camões)
©
Alvaro Giesta
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