A noite passada, para mim, não foi muito frutuosa; escasso
no que escrevi apesar de a ter passado quase em claro. Hoje, eis-me aqui
sentado, novamente, à espera da meia torrada de pão de cereais e da meia de
leite, nesta mesa atafulhada de chávenas de café vazias que a empregada ainda
não teve tempo de retirar. Exíguo é este espaço a que alguém concedeu o favor de
baptizar com o pomposo nome Estrela-do-Mar. Assim me disponho a rabiscar
qualquer coisa apenas para matar o tempo, enquanto a torrada vem e não vem.
Confesso que nem sei bem o quê, embora tal me não aflija - o fim é apenas fazer
passar mais depressa estes sessenta minutos que me separam das obrigações que
me comprometi desempenhar nestes dias pós-reforma, que parar é morrer.
Trago sempre um livro comigo: ontem, O Mendigo e
Outros Contos de Pessoa, a 1.ª edição de 2012 da Assírio & Alvim, com uma
nota introdutória e muito esclarecedora de Ana Maria Freitas; hoje, o que me
acompanha, é Photomaton & Vox, de Herberto Helder, a 5.ª edição de 2013, da mesma editora, revista e aumentada.
Sou leitor inveterado deste poeta, que admiro, sem saber muito bem porquê.
Talvez, porque não o entendo - sem medo de que me chamem ignorante, o digo. E confesso:
desde a primeira publicação dos dois volumes de Poesia Toda, até à Letra Aberta
(o último que adquiri em 2015, já ele não estava, em corpo, entre nós), perdi
apenas o Servidões, publicado em 2013 numa edição única; mal a editora o
anuncia (o anunciava, que as actuais edições não passam de repetições e perdi a
vontade de as adquirir, já estou (estava) a reservar a obra na
"minha" livraria habitual. É já a segunda leitura que faço ao Photomaton
& Vox e persisto em lê-lo como se fosse contemplação. A propósito, escreve
ele a páginas tantas «que a melhor maneira de contemplar a natureza é de cima
de uma bicicleta.» (Marilyn Monroe dixit); e acrescenta, de seguida em palavras
suas, que «talvez a forma eleitamente apocalíptica e luminosa de escutar a
poesia seja de helicóptero.» Doce ironia - penso eu. Não! Herberto Helder não
ironizava. Era sisudo, demais, para ironizar. Abria-me os olhos para a
interpretação da sua obscura poesia. Da sua e dos demais, embora nenhum dos poetas
obscuros, que nunca o pensaram seguir - por saberem da incapacidade de tal -, se lhe assemelhou na
sua forma de escrever poesia.
Nos versos do poema ocultava (oculta - que «O poeta
nunca morre embora seja agreste / A sua inspiração e tristes os seus versos» José Duro in FEL (poema DOENTE), àqueles que o leem (ou não leem, que são mais os que se pronunciam,
por uma questão de vaidade, de orgulho mal disfarçado, como lendo-o, sem o ler,
sem o conhecer, sem o saber) do que aqueles que, lendo-o, em boa verdade não o
conhecem, não o sabem, mesmo lendo-o, tal a dificuldade em o entender. A mim,
confesso-o, difícil me é entendê-lo tal a dificuldade da interpretação dos seus
versos: tão obscuros são, tão difíceis de entendimento, quanto de conhecimento
do poeta e do homem que durante a maior parte da sua vida viveu longe do mundo
e dos acontecimentos, quase como um asceta. Era um eremita solitário e oculto
no seu altar poético e contemplativo que, quando saía da sombra para a luz,
obscurecia, como se fosse divindade, todos os outros poetas. É quase certo que
muitos dos "admiradores" à sua passagem ao eterno nem sequer terão
lido, alguma vez, o poeta, porque a sua poesia obscura logo afastava os
aventureiros leitores ao alvorecer dos primeiros versos.
Eu aprendi a lê-lo mas nunca a compreendê-lo, por
falta de capacidade minha em conseguir entrar no emaranhado «amanhecer-anoitecer»
da sua escrita, profundamente estruturada à base de metáforas que, muito
provavelmente, nem ele as entenderia lidas para além do momento em que as
escreveu. Este mestre de si próprio, que nos deixou - faz dentro de dias (a 23
de Março) dois anos -, na incandescência do seu verso e na exaltação do seu
verbo, inventou-se a si próprio nas palavras abruptas com que erguia o verso
com que fabricava o poema, nas palavras abruptas que escrevia «por clarões
súbitos» (como alguém disse), em impulsos e por impulsos do tempo sem seguir
regras, muito menos o ensinamento de qualquer mestre que não teve.
Difícil se me torna falar deste mestre sem Mestre,
fiel à regra da obscuridade talvez para mitigar a sede da diferença, talvez
para se mitificar a si próprio no eu-poético, diferente de qualquer outro que
igual a si não houve nos séculos que o antecederam. Mestre de si próprio, pela
diferença do saber usar os signos literários como ninguém nesta sua maneira
obscura e difícil de se dar aos leitores e poetas do seu tempo, impediu, que o
transformassem no seu mito, desmoralizando-se aqueles que por aí vão fazendo tentativas de imitar o
Mestre, tentando usurpar-lhe a sua maneira de escrita. Inimitável será, sempre,
o Mestre do verso incandescente que vibra à sombra da obscuridade.
© Alvaro Giesta
(texto escrito a 20 de Março de 2017)
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