(...)
Recordava-se...
A tarde ia alta. Aproximava-se do
seu fim. Num pôr-do-sol, estranho, sanguinolento, o astro arredava-se para o
outro lado do mundo, rasando, na distante savana, as copas das bissapas que se
erguiam do solo a partir de disformes e esqueléticos troncos; de ora em vez o
sol espreitava, teimoso, por entre nuvens carregadas que o vento teimava em
fracturar, e emprestava-lhe a cor sépia que deixava fugir de si. Era um pôr-do-sol
diferente... mau presságio se adivinhava. Afogou-se, o sol, num céu assustador,
para as bandas mais longínquas da savana. Pressentia mau agoiro naquele adeus
dum sol agónico, num céu de medo e morte. Misturavam-se-lhe, na mente,
interrogações incontornáveis naquilo que lhe parecia a premunição dum desastre
conjugado com a embriaguez do êxtase.
Um Chingange rompeu, de repente, da
mata que orlava as libatas e as unia num todo em redor da velha capela
protestante erguida a adobe no centro da aldeia, em saltos grotescos mais
parecendo um demónio, metendo medo aos mais novos por ali próximos. Depois
outro, grotescamente disforme, igualmente com aquela máscara de feições
macabras a cobrir-lhe invisível rosto, e outro, ainda... eram três zarapelhos
em pessoas.
Correu, assustado, a esconder-se
debaixo do pano pintado que envolvia o corpo da mãe, que depressa ela apertou,
ainda mais, ao corpo com um nó, não fosse ele desprender-se e deixar-lhe à
vista as sagradas íntimas partes de si, enquanto num ritmo cadenciado de pés e
mãos ela acompanhava as outras anciãs da aldeia para contentar os Chingange nas
suas danças macabras. Aqueles corpos desengonçados, cobertos de lianas e
zarapilheira, enfeitados com saias de sisal seco e esfarpado, faziam piruetas
demoníacas no ar e rebolavam, no pó do terreiro, como animais que querem
desfazer-se dos parasitas que, como lapas, se lhes colam ao corpo e os
incomodam causando-lhe fatal coceira. Presas ao corpo, os Chingange usavam mil
fatias de sisal seco e, nas pernas, uma teia de pele com guizos que soltavam
sons frenéticos e estridentes produzindo a própria música que dançavam. A
espaços incertos erguiam-se, de entre a multidão que arredava assustada, outros
homens-gnu de tamanhos disformes e homens-gunga a que se juntavam
mulheres-gazela fazendo vibrar as tuelelas amarradas ao tornozelos.
Depois daquela dança macabra de
cerca de duas horas, todos se dissolveram, numa travessia secreta existente ao
fundo do terreiro, para qualquer lado sem nexo entre o visível e o invisível.
Como tinham aparecido, de repente, vindos não se sabia de que insondável e
silencioso recanto da mata, assim, num ápice, os Chingange se sumiram no capim
alto para lá dos limites da sanzala. Era a cumplicidade dos deuses a
aterrorizar as pessoas humildes, para que a sua obediência e subjugação ao
desconhecido fosse total, cega e absoluta. Assim convinha à união dos poderosos
esta subjugação e subserviência dos humildes. E
a submissão continuava, por horas sem fim, naquele monocórdico tantã acompanhado
pelo bater surdo de dezenas de pés descalços no chão barrento do terreiro.
De ora em vez uma voz de tenor
erguia-se, como se em rebeldia, e deixava escapar prolongado esgar de dor, que
não se entendia bem, a que logo respondiam vozes arrastadas de lamento ao som
das palmas compassadas a que se juntava o ébrio bambolear de corpos suados em
simulacros de dança. Era neste fluir descendente de sangue, da cabeça aos pés,
que os corpos bamboleantes se desarticulavam em arremedos de danças demoníacas,
pela ausência de controlo cerebral devido à insuficiência da oxigenação do
cérebro.
De um sítio oculto pela sombra, já
livre do medo e liberto da protecção do pano pintado que envolvia o corpo da
mãe, ele, que nunca desfitara os Chingange nem os seus adjuntos e malabaristas
homens-gnu e homens-gunga, captava já os sinais do magma misterioso da vida. E
era tão jovem ainda!...
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©
Alvaro Giesta (para) "Contos do Infinito e os Demónios da Tia
Matilde" (a publicar)
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