22/08/15

Prefácio ao O Retorno ao Princípio
por Dr. José Baião dos Santos

RETORNO?
                                                                                                                       
“Com a razão apareceu, necessariamente entre os homens,
a certeza assustadora da morte”
Arthur Schopenhauer

"O que extingue a vida e os seus sinais, não é a morte,  mas
 o esquecimento. A diferença entre morte e vida é essa."
José Saramago
         
Chegamos ao dia da reconciliação com os nossos enigmas, subimos a bordo e ocupamos o lugar que nos foi destinado na barca de Caronte, para atravessar “o lago escuro da noite”, onde “se ergue/a transparência da solidão” e se anuncia um novo dia que se separa do corpo, sombra da alma – cinza envolta na luz -, “matéria extinta” que nos redime da descrença e eterniza o silêncio da terra sem tempo, nem êxtase. Almas que se erguem do silêncio do profano, sedentas de glória, com a mesma compaixão com que admiramos o sacrifício daquele que se deixou vilipendiar e foi, por fim, vencido. Escreveu Franz Kafka que “No cais ninguém prestou atenção aos recém-chegados (…) ”. Responde-nos Alvaro Giesta: “aqueles que nunca beijaram” porque o mar emudeceu à sua volta. Também na vida nem sempre dão por nós, pela nossa passagem de revoltado animal, decididos a procurar na praia os vestígios de um olhar divino desaparecido na concavidade azul das areias; olha-se vagamente a sombra do corpo na plenitude da luz que se liberta do infinito e atravessa aquela nesga apertada entre dois ponteiros do velho relógio – é a vida! - que assinala a superfície do tempo estagnado para evocar a perene ausência, depois de ascendermos até ao alto da colina e testemunharmos o golpe letal da espada da justiça, despedaçando a nossa carne inocente, enquanto alguém chora nos braços de uma cruz.
“é o retorno à vida” que nos impele para fora da penumbra suspensa da árvore que “atravessa/o ciclo da vida” quando se abre a porta que deixa entrar o vento das montanhas, “o sulco de luz” que arrasta os corpos nus para um sono, agora sem retorno, devido ao cansaço e à dor, e nos faz cativos “dos lábios da terra/da espuma branca sem mar/da sede, da fome, do frio”. Os insensatos dias que sucedem ao despontar da lucidez trazem a descrença e os caminhos parecem-nos inúteis. O “mundo tornou-se pobre e vazio” (Sigmund Freud). Vagueia-se na noite de amargas melodias para expulsar os pesadelos e recuperar o timbre dos sonhos por sonhar que tanto pode ser a estrela fugidia, ou o princípio infinito, ou o tempo do ser, num mundo injusto, inefável, agonizando à medida que se aprofunda o afastamento dos fulgores secretos que acendem os símbolos elementares da vida.     
Que sentido ontológico tem, neste trilho poético, o ser que espreita o abismo dentro de si mesmo, não por efeito da incandescência da alma ou de um acto repousado da consciência? A resposta poderá estar na percepção daquele momento decorrido entre a vigília e o sono, do absoluto vazio, espaço de refúgio “em que coincidem/a sombra e a luz” e que nos informa que “(…) o ser é vazio de toda a determinação que não seja a da identidade consigo mesmo” (in “O Ser e o Nada” Jean Paul Sartre).
“naufraga-se num sono/eterno” e o corpo “ascende ao princípio, escreve indelevelmente o poeta na sombra do abismo, porque a abolição de todas as fronteiras ente a vida e a morte, porta aberta ao retorno do ser, projecta o espaço livre que ganha maior nitidez através do movimento, da incandescência, transmitidos pela alma ao corpo antes deste atingir o seu estado de maturação. E assim aperfeiçoa o seu tempo do ser, conforme vimos anteriormente!
Organicamente “o Retorno ao Princípio”, revela-se ao leitor sob uma dupla face: MORTE e VIDA. Quer a Morte - invisível lucidez que apaga alguns dos sinais de uma travessia, repouso fatal, reacendimento das almas, “prenúncio de um novo dia” -; quer a Vida - sonho por desvendar, beijo de fogo no silêncio, espuma branca, grito na escuridão, medo da morte disfarçada, entrando em nós como um punhal -, concedem-nos um sentimento de amor à palavra vertida no sangue que enfrenta mistérios e ritos, e persistentemente renova o nosso destino, “caminho/à beira-lágrima/onde um deus se perdeu”, chão pisado de memórias indesejadas. Partilhamos vida e morte, num só movimento do tempo, vagueando como duas aves na palma da mão dos infinitos céus, enquanto a clarividência da palavra dos deuses não é senão uma metáfora sobre o império da fé que por milénios nos tem servido de guia e nos tem dividido. O nosso destino é o sol-infinito instalado no espaço vazio e frio da morte, onde o ser “contradiz-se e faz-se/de novo abismo”. O acto poético apresenta-se nestes versos de engenhoso compromisso de Alvaro Giesta, como mediação de sentido do inatingível, voz silenciosa entre dois mundos opacos, dois lugares tão próximos quão longínquos pontuados de muitas incandescências – da alma, do sonho, e das ausências do corpo e da divindade!
Escreveu o Prof. Eduardo Lourenço, no já distante ano de 2000 sobre como falar de poesia: “Vendo bem, foi para dar voz a um excesso de sentido que a poesia nasceu: excesso de entusiasmo para nos celebrar como deuses imaginários do nosso destino ou melancolia de não ser esse mesmo deus que no fundo sabemos ser. É sempre a sós connosco que vivemos estes abismos que nos medem. Os deuses são a sombra deles. Mas não conheceríamos essa incandescência de nós mesmos sem os imaginarmos.”
Cada uma das partes, Morte e Vida, de que se compõe a obra expande-se por “terreno alheio”, como se de terreno próprio se tratasse. Nisto reside o processo da diálectica Vida-Morte que cimenta a edificação lírica. Na realidade o que o poeta procura em cada uma das partes, é a parte correspondente à outra, enquanto resultado de uma certa complementaridade. Por isso, Morte e Vida, nem sempre se apresentam como faces antagónicas do ser, a substância perecível que incorpora o princípio e precede a ausência do corpo.
tu e eu somos duas partes
da mesma parte
deste ser”
(…)
Alvaro Giesta
Fazendo, por vezes, uso de algum mimetismo de valores simbólicos, comumente aceites pela metafísica e no plano religioso, como se estivesse na iminência de se inclinar “sobre o fim/prestes a ser/princípio”, o poeta perscruta as entranhas da morte, a matéria diáfana que emana “do âmago do nada/existente/entre a penumbra e a luz”. Enquanto isto, algures, o sémen da vida vai transformando o universo desconhecido e intemporal em verbo.     
Terá dito, já lá vai tempo, o escritor Lobo Antunes que ninguém sabe o que é a morte, mas que não faz muita diferença porque também nunca sabemos o que é a vida.
Como última nota quero deixar-vos, caros leitores, o meu agradecimento ao poeta Alvaro Giesta por me ter convidado a integrar esta expedição “Vida-e-Morte”, o que me permitiu entrar na sua órbita poética, na qualidade de atento satélite errante. Aquele abraço fraterno!

                                                           José Baião Santos Abril 2014

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