Prefácio ao O Retorno ao Princípio
por Dr. José Baião dos Santos
RETORNO?
por Dr. José Baião dos Santos
RETORNO?
“Com a razão apareceu, necessariamente entre os homens,
a certeza assustadora da morte”
Arthur
Schopenhauer
"O que extingue a vida e os seus sinais, não é a
morte, mas
o esquecimento. A
diferença entre morte e vida é essa."
José Saramago
Chegamos ao dia da
reconciliação com os nossos enigmas, subimos a bordo e ocupamos o lugar que nos
foi destinado na barca de Caronte, para atravessar “o lago escuro da noite”, onde
“se ergue/a transparência da solidão” e se anuncia um novo dia que se separa do
corpo, sombra da alma – cinza envolta na luz -, “matéria extinta” que nos
redime da descrença e eterniza o silêncio da terra sem tempo, nem êxtase. Almas
que se erguem do silêncio do profano,
sedentas de glória, com a mesma compaixão com que admiramos o sacrifício
daquele que se deixou vilipendiar e
foi, por fim, vencido. Escreveu Franz Kafka que “No cais ninguém prestou atenção
aos recém-chegados (…) ”. Responde-nos Alvaro Giesta: “aqueles que nunca
beijaram” porque o mar emudeceu à sua volta. Também na vida nem sempre dão por
nós, pela nossa passagem de revoltado
animal, decididos a procurar na praia os vestígios de um olhar divino desaparecido
na concavidade azul das areias; olha-se vagamente a sombra do corpo na plenitude da luz que se liberta do
infinito e atravessa aquela nesga
apertada entre dois ponteiros do velho relógio – é a vida! - que assinala a
superfície do tempo estagnado para
evocar a perene ausência, depois de ascendermos até ao alto da colina e
testemunharmos o golpe letal da espada da justiça, despedaçando a nossa carne inocente,
enquanto alguém chora nos braços de uma cruz.
“é o retorno à vida” que
nos impele para fora da penumbra suspensa da árvore que “atravessa/o ciclo da
vida” quando se abre a porta que deixa entrar o vento das montanhas, “o sulco de luz” que arrasta os corpos
nus para um sono, agora sem retorno, devido ao cansaço e à dor, e nos faz
cativos “dos lábios da terra/da espuma branca sem mar/da sede, da fome, do frio”.
Os insensatos dias que sucedem ao despontar da lucidez trazem a descrença e os
caminhos parecem-nos inúteis. O “mundo tornou-se pobre e vazio” (Sigmund Freud). Vagueia-se na noite de amargas melodias para expulsar os pesadelos e recuperar o timbre dos sonhos
por sonhar que tanto pode ser a estrela
fugidia, ou o princípio infinito,
ou o tempo do ser, num mundo injusto,
inefável, agonizando à medida que se aprofunda o afastamento dos fulgores secretos que acendem os
símbolos elementares da vida.
Que sentido ontológico
tem, neste trilho poético, o ser que espreita o abismo dentro de si mesmo, não
por efeito da incandescência da alma ou de um acto repousado da
consciência? A resposta poderá estar na percepção daquele momento decorrido entre
a vigília e o sono, do absoluto vazio, espaço de refúgio “em que coincidem/a
sombra e a luz” e que nos informa que “(…)
o ser é vazio de toda a determinação que não seja a da identidade consigo
mesmo” (in “O Ser e o Nada” Jean Paul Sartre).
“naufraga-se num sono/eterno”
e o corpo “ascende ao princípio”,
escreve indelevelmente o poeta na sombra do abismo, porque a abolição de todas
as fronteiras ente a vida e a morte, porta
aberta ao retorno do ser, projecta o espaço livre que ganha maior nitidez através
do movimento, da incandescência, transmitidos pela alma ao corpo antes deste atingir
o seu estado de maturação. E assim aperfeiçoa o seu tempo do ser, conforme
vimos anteriormente!
Organicamente “o
Retorno ao Princípio”, revela-se ao leitor sob uma dupla face: MORTE e VIDA. Quer a Morte - invisível
lucidez que apaga alguns dos sinais
de uma travessia, repouso fatal, reacendimento das almas, “prenúncio de um novo
dia” -; quer a Vida - sonho por desvendar, beijo de fogo no silêncio, espuma branca, grito na escuridão, medo
da morte disfarçada, entrando em nós como um punhal -, concedem-nos um
sentimento de amor à palavra vertida no sangue que enfrenta mistérios e ritos, e
persistentemente renova o nosso destino, “caminho/à
beira-lágrima/onde um deus se perdeu”, chão pisado de memórias indesejadas.
Partilhamos vida e morte, num só movimento do tempo, vagueando como duas aves na
palma da mão dos infinitos céus, enquanto
a clarividência da palavra dos deuses não é senão uma metáfora sobre o império
da fé que por milénios nos tem servido de guia e nos tem dividido. O nosso
destino é o sol-infinito instalado no
espaço vazio e frio da morte, onde o ser “contradiz-se e faz-se/de novo abismo”.
O acto poético apresenta-se nestes versos de engenhoso compromisso de Alvaro Giesta,
como mediação de sentido do inatingível, voz silenciosa entre dois mundos opacos,
dois lugares tão próximos quão longínquos pontuados de muitas incandescências –
da alma, do sonho, e das ausências do corpo e da divindade!
Escreveu o Prof. Eduardo
Lourenço, no já distante ano de 2000 sobre como falar de poesia: “Vendo bem,
foi para dar voz a um excesso de sentido que a poesia nasceu: excesso de
entusiasmo para nos celebrar como deuses imaginários do nosso destino ou melancolia de não ser
esse mesmo deus que no fundo sabemos ser. É sempre a sós connosco que vivemos
estes abismos que nos medem.
Os deuses são a sombra deles. Mas não conheceríamos essa incandescência de nós mesmos sem os imaginarmos.”
Cada uma das partes, Morte e Vida, de que se compõe a
obra expande-se por “terreno alheio”,
como se de terreno próprio se tratasse. Nisto reside o processo da diálectica
Vida-Morte que cimenta a edificação lírica. Na realidade o que o poeta procura
em cada uma das partes, é a parte
correspondente à outra, enquanto resultado de uma certa complementaridade. Por
isso, Morte e Vida, nem sempre se apresentam como faces antagónicas do ser, a substância
perecível que incorpora o princípio e
precede a ausência do corpo.
“tu e eu somos duas partes
da mesma
parte
deste
ser”
(…)
Alvaro
Giesta
Fazendo, por vezes, uso
de algum mimetismo de valores simbólicos, comumente aceites pela metafísica e
no plano religioso, como se estivesse na iminência de se inclinar “sobre o fim/prestes a ser/princípio”, o
poeta perscruta as entranhas da morte, a matéria diáfana que emana “do âmago
do nada/existente/entre a penumbra e a luz”. Enquanto isto, algures, o
sémen da vida vai transformando o universo desconhecido e intemporal em verbo.
Terá dito, já lá vai
tempo, o escritor Lobo Antunes que ninguém sabe o que é a morte, mas que não
faz muita diferença porque também nunca sabemos o que é a vida.
Como última nota quero deixar-vos,
caros leitores, o meu agradecimento ao poeta Alvaro Giesta por me ter convidado
a integrar esta expedição “Vida-e-Morte”, o que me permitiu entrar na sua
órbita poética, na qualidade de atento satélite errante. Aquele abraço
fraterno!
José Baião Santos Abril 2014
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