Posfácio ao O Retorno ao Princípio
por Fernando António Almeida Reis (ortónimo)
por Fernando António Almeida Reis (ortónimo)
Nota
introdutória
Na qualidade do meu verdadeiro nome, Fernando
A. Almeida Reis e na sequência das tertúlias poéticas levadas a cabo pelo Clube
de Poetas KAFÉ-KAFKA/BVQ, a cujo núcleo pertenço, produzi o ensaio subordinado
ao mote "Dialéctica Vida-Morte" (aqui reproduzido apenas na parte a
que diz respeito a Alvaro Giesta meu pseudónimo literário e autor deste volume),
tendo por base os poetas Antero de Quental (sec. XIX), Manoel de Barros, Hilda
Hilst, Fernando Echavarría e o já citado Alvaro Giesta, todos do sec. XX,
levando em linha de conta que os mesmos se debruçaram, na sua poética, sobre
esta inquietante problemática.
Pela motivação que o mote tertuliano
produziu, em mim, como poeta Alvaro Giesta, levou-me a escrever o "O Retorno ao Princípio" (numa
dialéctica Vida-Morte), que ora dou por reproduzido, não sem antes deixar aqui
e em nota de fim do livro, aquilo que ao último poeta em estudo diz respeito,
tema tratado tão audaciosamente e com estupefação recebido pelos assistentes ao
evento.
Corpo do ensaio
Um dos “papéis” da arte
poética é expressar sentimentos humanos e transmitir, de forma subjectiva,
aspectos da nossa realidade – medos, angústias, anseios, desgraça, pobreza... tudo quanto seja marginal e que, a maioria dos
nossos poetas de hoje fogem a retratar.
O novo, o desconhecido, é algo
que nos assusta enquanto seres humanos em quem o receio está presente, em quem
a expectativa é uma constante aliada ao medo da dor e da dor na morte que ela
nos possa causar. E como vamos nós pensar nesse desconhecido que começa onde a
vida acaba e a morte começa?
No fazer poético de alguns
poetas, a Morte não é o fim de um ciclo. Ela é transmutação. É apenas o
trânsito, a passagem breve para outra vida, passagem ainda que fatal, pela
fatalidade que o fenómeno Morte encerra, um ponto de passagem, obrigatório para
todos os seres vivos. É apenas a passagem para outra vida, com princípio no
próprio fim. Ela é, não deixando apenas de ser o fim, também o princípio que
começa onde esse fim termina.
Aqui falo do pensar e fazer
poético de Alvaro Giesta, meu pseudónimo literário, que não tendo rigorosamente
nada a ver, nem eu, na qualidade de escritor, nem o meu pseudónimo na qualidade
daquilo que ele é - o poeta-, com o pensamento de certas religiões, a que sou
literalmente avesso. Enquanto poeta Alvaro Giesta, a liberdade da palavra, no
uso poético que lhe dou, permite-me, aqui, filosofar um pouco acerca da morte.
A morte, que é a garantia da ordem no mundo dos homens, que é o que concede o
diálogo, pois, no mundo humano adquire-se a vida através da morte. Só, assim, a
vida tem sentido.
O filósofo Maurice Blanchot
dizia que "a morte é a base de todo o alicerce humano diferentemente do
que ocorre no mundo literário". No texto poético as palavras adquirem uma
maior liberdade pela soma inesgotável de temas que se nos propõem à imaginação
trabalhando a matéria desses temas com a arte poética que eles merecem. Daí
que, considere, que não há morte em literatura. A impossibilidade da morte diz
respeito ao não-fim. Ou seja, a finalidade da morte que nos surge diariamente
na linguagem normal das evidências, não existe na linguagem poética. Mesmo
quando poetas como Fernando Echevarría nos dizem que a morte é o fim e que,
para além da morte nada mais há senão o fim; o nada; o vácuo.
Mas é exactamente esse fim
poético que vai dar origem a novos olhares na poética de Alvaro Giesta, no tema
Vida-Morte, à tal "espuma"
de Echevarría que lhe foi princípio. Porque, no seu entendimento, é no nada e
do nada que nasce a linguagem poética; é aí, no preciso lugar "onde a luz
e a obscuridade coincidem e se transformam", que se dá o acto inaugural da
palavra. À semelhança, e contrariando Echevarría que na sua linguagem mais filosófica
que meta-poética diz que para além da morte nada mais há senão o nada, a morte,
em Giesta, é o retorno ao princípio a partir do nada onde se dá o acto
inaugural da vida.
A linguagem poética, neste
caso na enfatização da morte pela palavra, não procura uma finalidade, uma
explicação, não procura atingir algo, atingir um fim - isto, é para as
religiões e seitas. Na linguagem poética a palavra não morre. A palavra, se
morre, é para dar vida à palavra nova porque "a palavra é a vida dessa morte", como nos diz o filósofo
Maurice Blanchot e o poeta Alvaro Giesta, num dos poemas iniciais de "o
Retorno ao Princípio".
" eis / o
invisível monumento / da lucidez: // onde a luz acabou / reacendeu-se / a vida;
// o timbre / afina-se / ao abrir duma
janela / que antes de estar / aberta / se abriu // erguem-se do silêncio / as
almas / em centrífuga abstracção... // onde / o vento / exunda a escuridão das
águas / e cresce / a exumação das coisas inúteis, / há / a elevação das almas/ ao
infinito-além "
Como se vê neste poema, há no
autor Alvaro Giesta, como dialéctica existencial, um horizonte de expectativas
enquanto epifania possível de um tempo novo. Não tendo nada a ver com qualquer
tipo de credo religioso, é apenas a sua expressão mais alta no fazer poético em
que se debruça Alvaro Giesta neste tema Vida-Morte que lhe inspirou o livro
poético, ora em apreço e chamado O
Retorno ao Princípio.
Aliás, esta experiência neste
autor é como que uma vontade subjectiva de atenuar o sofrimento comum a todos
os mortais, principalmente aos camponeses enterrados por uma vida nas serranias
do nordeste transmontano, que lhe é a sua origem, para quem a morte é dor no
luto com que vestem a alma e o corpo, muitas vezes para o resto da vida, mas
também, esperança de que para lá do fim comece um novo princípio mais
radioso.
É como que uma praxis criadora
inspirada na fé de todos os domingos nas capelas das aldeias onde enchem os
bolsos aos padres com promessas que lhes vendem na expectativa de um mundo
melhor e mais justo e um lugar cativo no céu, enquanto rasgam os joelhos em penitência no culto aos
seus mortos que, por detrás da mesma capela muitas vezes repousam.
A felicidade, na descrição da
morte para o poeta Alvaro Giesta (felicidade nos moldes em que ele a descreve),
quando "em erráticos poemas"
poetisa o momento em que seu pai descansa no esquife, ainda que sendo ela, fim,
este fim não deve ser equiparado ao términus, no sentir e no querer poético do
poeta, enquanto Nada e Morte mas, sim, enquanto “fim no começo”. Ela, a morte, para o
poeta, é o princípio, é a busca do Além, é o retorno ao princípio. E ela será
felicidade, ligada à esperança no pressentimento do Bem-Supremo.
A morte é o tal "monumento invisível" onde a luz se
reacende, é o tal "abrir de uma janela
/ que antes de estar / aberta / se abriu " e donde "se erguem /as almas" e "se elevam
/ ao infinito-além".
É a tal praxis criadora
inspirada na fé num deus que, embora podendo não ser o seu (e seguramente o não
é), é o daqueles desvalidos que n’Ele acreditam; aqueles, que o poeta canta;
aqueles sobre quem ele se debruça; aqueles por quem ele, poeta, se outra. É a
imaginação do poeta na busca incansável do inalcançável, na busca de vencer o
fracasso, de vencer a morte. Quantas vezes o poeta até faz lindos poemas sobre
a feia morte… prefaciando o poeta, "o poeta é um fingidor".
" desprende-se
/ para destino enigmático, / do âmago do corpo / extenuado, / a alma sedenta de
glória / noutra esfera. // a barcaça da morte / atravessa /o lago escuro da
noite, / onde tudo acaba / e começa / novo dia, // a substância, / em maturação
inclina-se / no seu propenso vagar
para a glória da
morte, // e dela / em glória renasce / em novo dia, / sendo que do seu fim / acontece
todo o princípio. // deslumbra-se, / do corpo que se desintegra, / agora / a
alma / que se difunde no abstracto / devir."
Vida e Morte são
interdependentes. Existem simultaneamente. Uma não existe sem a outra. Ou
melhor, existencialmente, Vida e Morte fundem-se uma na outra. A morte ronda
continuamente a vida, é um facto contínuo na própria vida, pois “morremos ao nascer; o fim já existe desde o
começo”. Já Sócrates, condenado pela cicuta à morte, quando a sua mulher
correu aflita para a prisão gritando-lhe; “Sócrates,
os juízes condenaram-te à morte!” ele, o filósofo, calmamente respondeu: “Eles também já estão condenados”.
Filosofando, preparou-se para a morte. Porque, como dizia Santo Agostinho, “é somente em face da morte que nasce a
individualidade do homem”. Afinal, Freud tinha razão quando dizia que “a morte é o final necessário e inevitável da
vida”. Vida que, se a quiser suportar, me tenho que preparar para a morte.
Desde o instante em que
nascemos, começamos a morrer; cada dia vivo é um dia a menos nas nossas vidas,
na nossa existência. É a nossa condição existencial. Porém, sendo a morte um
dos fenómenos inevitáveis, o poeta não deve deixar de reflectir na sua finitude
como ser humano. Mais uma vez o entendimento do poeta Alvaro Giesta que tem da
morte a ideia como causa necessária da vida:
"morte / doce
irmã do sono / descanso fatal da dura vida… / liberta-se o espírito / com o som
e a cor da morte. // desperto da ilusão–ideia / neste puro entender / o enigma
da morte não–fantasma… / olha-se pela ideia / de que a morte é libertação."
A morte, em poesia, é um dos
temas actuais muito pouco tratados mas que nos devia merecer pesquisa e
preocupação. Principalmente porque, se ela nos amedronta, também é ela, porque
existe, que nos dá a única e definitiva certeza da vida. E, se para uns é
esperança de um novo princípio, mais radioso, ainda, para outros poetas, como
Fernando Echevarría, ela também é certeza do desgaste que a idade não perdoa.
(...)
Quando me decidi a escrever sobre o tema, pensei que isto até seria uma
brincadeira séria. Mas, ao mesmo tempo, até me assustei ainda que eu goste de
esgrimir com a morte. Já a senti, por vezes, sob dois aspectos: quando em
guerra, assustadora; quando em situações de doença de difícil entendimento
clínico ou noutras situações de desespero e desilusão, convidativa. Apelativa,
até! Também tive ocasiões em que vi a vida morrer-me nos braços, ensanguentada,
horripilante e aí senti a morte repulsiva e indesejável. Misteriosa, quando não
se sabe porquê! Porque é que ela nos bate à porta, logo a nós e nessas
ocasiões.
Foram estes diversos factores que me fizeram autopsiá-la quanto à
poesia. E procurei poetas que lidassem com a morte com o mesmo à vontade com
que, de permeio, lidam com o amor – o elo aglutinador que estabelece pontos de
confluência nesta dialéctica dizível VIDA – MORTE.
A morte, para os crentes num
mundo melhor, é sempre “passagem para uma
vida definitiva” – assim a decifrou S. Paulo; já Eurípedes, o trágico poeta
grego, reflectia que “morrer deve ser
como não haver nascido / e a morte talvez seja melhor até que a vida / de dor e
mágoas, (…)”; ao contrário, Fernando Pessoa considerou-a um “enigma”.
Seja como for, a realidade é
que a morte é um facto – é o cessar completo e definitivo de vida de um ser
vivo – que muitas vezes se deseja sem medo, bem diferente desse que se sente
quando o morto-vivo permanece ligado à vida através daquelas máquinas
complicadas e tubos a emoldurar a cama em que se deita, sem saber que ali está
naquele estado vegetativo.
Em Alvaro Giesta é algo
desafiador interrogar a morte, desafiar a morte, desafiar esse limite do homem
sobre o controlo da natureza… talvez esse sentimento de inconformidade tenha a
ver, não com o medo da morte propriamente dita, mas com o medo do sofrimento
físico e emocional decorrente dela; medo da dor, da incapacidade física, da
incompreensão dos outros homens válidos, da falta de liberdade de poder ser,
por si só, medo da solidão.
(...) na penúltima peça sobre
o autor Alvaro Giesta no enigma Vida-Morte, vê-se a sua coragem ao enfrentar o fim no seu
“Testamento à Morte”, que aqui, pela sua extensão, não se dá por reproduzido.
Nele, patente, o desabafo–desespero final
do poeta diante da irreversibilidade no curso das coisas que nos atingem em
níveis muito profundos e diferentes; a descrença no divino e a vontade de não
sofrer quando a doença incurável é a marca irremediável neste percurso da
finitude humana.
Não é o negar da morte neste seu poema omitido, neste momento de cultura
contemporânea; é, outrossim, ousar falar dela com coragem, imaginá-la,
compreendê-la e aceitá-la. Mas também é um não-crer que a morte unifica e
reforça os laços de amizade. Ideias da morte e dos seus rituais como aspecto da
sociedade que podem unir pessoas ou separar grupos, não está na perspectiva
poética de Alvaro Giesta. Mas também não é vontade do poeta que enfatize a
morte com sentimentos de dor, que muitas vezes é uma dor fingida, nem com
rituais de exploração do corpo, em fim de vida, que perspectivem uma busca do
conhecimento que passa pela sensação da impotência científica.
(...)
Fernando A. Almeida Reis, ortónimo
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