22/08/15
Prefácio ao Um Arbusto no Olhar
por Fernando António Almeida Reis, ortónimo
por Fernando António Almeida Reis, ortónimo
Prefácio
«(...)
Não posso adiar este abraço
que
é uma arma de dois gumes
amor
e ódio (..)»
O Poeta na Rua © António Ramos Rosa
Tardou
este livro em ser publicado. Com base na sua proposta final, que é o que define
o valor literário da obra, a acontecer na data própria, deveria ter sido logo
após a publicação do «Meditações sobre a palavra», porque o completa e
complementa, sem outros que foram editados, entretanto, pelo meio. Mas, por
vezes o criador tem necessidade de alargar o leque de opções, correndo o risco
da criação, ao olhar de outrem, de uma obra dispersa e desconexa. Contudo,
ainda que difícil seja a defesa da obra, porque dispersa, nela se pode
«recolher a semente para uma futura colheita, não perdendo dessa forma o seu
objectivo primordial: criar para além do limite de cada instante.» (Xavier Zarco, in Breves reflexões
filosóficas sobre o conhecer, em poesia - publicado em "A Chama, folhas
poéticas, n.º 9, 3.º trimestre 2014)
Na sequência daquilo que Alvaro Giesta deixou
expresso em nota de autor no seu livro Meditações
sobre a palavra, editado em 2011 pela Editora Temas Originais, e ao talhar
agora o Um Arbusto no Olhar que seguiu de perto, na sua primeira parte,
o desenho traçado para o primeiro, a completar o que se terá proposto escrever
sobre o ofício do poeta no manuseio da palavra e com o qual pretenderá encerrar
o motivo deste ciclo, dado que todas as suas obras poéticas se vêm desenhando
com submissão, cada uma delas, a um mote próprio e específico, quererá reiterar
aos leitores que tem procurado sempre o seu desempenho com base na busca da
maior perfeição.
Se,
no «Meditações sobre a palavra»,
«as
palavras nascem / de dentro para fora (...) / (dum) / ventre virgem que se abre
ao meio / (e) / recolhe o sémen / que se vai tornar vida»,
em
«Um Arbusto no Olhar», desse mesmo
«ventre
prenhe / da terra / (onde) / canta a árvore
e
o azul / em demanda de novo sol»,
se
pode concluir que:
«o
ofício do poeta / é mergulhar as mãos no fogo /
no
espaço / branco por escrever / é descobrir o vazio / que espera a voz / e o
grito / da palavra»,
é
saber ver que:
«da
hercúlea sombra / que se abre ao meio / regurgita a luz»,
é
descobrir que o fenómeno do acto inaugural da palavra se dá no lugar exacto,
onde a luz e a obscuridade coincidem e se transformam.
O
ofício do poeta é encher o nada, o vazio existente no sítio exacto onde
coincidem a luz e sombra, do ardor rubro da palavra, mesmo que este verde
nascimento seja um acto tardio na vida do poeta ou no tempo da criação.
É
«descobrir o segredo do fogo / e da água / onde a palavra se faz carne / nesta
difícil visão alquímica dos contrários».
Se
no «Meditações sobre a palavra», ela,
a palavra exacta, porque pura alfa e ómega
(princípio e fim), é a semente que «caminhava na sombra das paredes / que se erguem
envoltas / num mar duro de pedra / e cal» onde apenas «uma nesga de luz (sai) das
trevas / por curto instante /(...)» em demanda de uma possível aproximação ao
real e às coisas do mundo,
em
«Um Arbusto no Olhar», a palavra deixa de ser semente oculta sob a dura terra
antes de nela ter entrado o sémen-água, para se tornar na raiz que firma e no
caule que sustenta e ergue os ramos, para se dar a conhecer, para se abrir na
inquietude da página, vislumbrando-se entre as suas ramificações, o olhar sequioso
por dizer, por fazer a denúncia, a busca, por sondar e descobrir o insondável
mistério universal da palavra.
Com
a mesma arte com que foi desenhado o «Meditações sobre a palavra», assim foi
talhado o «Um Arbusto no Olhar». Sem inspiração, porque ela não existe (!) em
Alvaro Giesta, mas fazendo uso do mesmo rigor construtivo no trabalho da
palavra que sai da sombra, como o arquitecto ao desenho do edifício,
modelando-a como o oleiro ao barro, esculpindo-a e burilando-a como o artífice
à pedra, dissecando-a, levando-a ao osso, como o médico legista ao corpo para
saber da causa do fim.
O
poeta se afirma, mais uma vez, no rigoroso sentido de busca, de construção e
emprego da palavra no todo do edifício poético em que se deve empenhar para,
nesse labor, dar um verdadeiro sentido literário à obra construída.
Alvaro Giesta, no rigor do uso da palavra ao
serviço da linguagem poética, norteou o labor de «Um Arbusto no Olhar» , em
duas partes, correspondendo a cada uma trinta poemas:
- na Parte I, o eu-poético ausenta-se do poema
para que este seja ele próprio, para que se efectue a junção entre
subjectividade e objecto, para que a palavra-sujeito-poético
case com o espaço sem a intervenção do eu-poético no mundo do poema;
- na Parte II, o eu-poético integra-se na
palavra, vive a palavra, vai de encontro às sensações o que lhe permite
vislumbrar novos horizontes, com um olhar sequioso por descobrir o longe, para
lá das ramificações do arbusto que se levanta ao olhar do sol.
Fernando A. Almeida
Reis, ortónimo
Barreiro, Setembro de
2014
Alguns poemas de O Retorno ao Princípio
eis
o invisível monumento
da
lucidez:
onde
a luz acabou
reacendeu-se
a
vida;
o
timbre afina-se
no
abrir duma janela
que
antes de estar aberta
se
abriu.
erguem-se
do silêncio
as
almas
em
centrífuga abstracção.
onde
o
vento
exunda
a escuridão das águas
e
cresce
a
exumação das coisas inúteis,
há
a
elevação das almas
ao
infinito-além.
*
nesta
persistência
sombria
do
afastamento;
na
lúcida passagem
das
pulsações,
a
morte
tal
perfume de estrela
ausente
visita
o nascimento.
eu,
noutra parte
fecho
as pálpebras na misteriosa
bruma,
tu
noutro
céu levante
crias
de novo
a
partir da espuma.
*
naufraga-se
num sono
eterno.
onde
se ergue
a
transparência da solidão
do
espaço,
arde,
na
fulgidez celeste,
longínqua
chama
a
despedir-se
da
alma desavinda.
inaudível
é a força
e
estrépita!
emerge
depois,
a alma
para
fúlgida esfera.
*
desprende-se
para
destino enigmático,
do
âmago do corpo
extenuado,
a
alma sedenta de glória
noutro
céu.
a
barcaça da morte
atravessa
o
lago escuro da noite
onde
tudo acaba
e
tudo começa.
exaurido
todo
o tempo anterior,
refulge
prenúncio
de novo dia.
*
a
substância
em
maturação inclina-se
no
seu propenso vagar
para
a glória da morte,
e
dela
em
glória renasce
em
novo dia.
do
seu fim
acontece
todo o princípio.
deslumbra-se,
do
corpo que se desintegra
agora,
a
alma
que
se difunde no abstracto
devir.
*
eis
a transparência
da
morte,
na
partida e obstáculo
para
novo espaço:
aqui
se funde
e
se transforma
em
movimento.
que
seja coincidente
o
silêncio
e
a falta dele
e
que ao cair se levante
e
caminhe,
mesmo
que aí termine
o
seu andar.
onde
tudo termina
se
ascenda ao princípio.
Prefácio ao O Retorno ao Princípio
por Dr. José Baião dos Santos
RETORNO?
por Dr. José Baião dos Santos
RETORNO?
“Com a razão apareceu, necessariamente entre os homens,
a certeza assustadora da morte”
Arthur
Schopenhauer
"O que extingue a vida e os seus sinais, não é a
morte, mas
o esquecimento. A
diferença entre morte e vida é essa."
José Saramago
Chegamos ao dia da
reconciliação com os nossos enigmas, subimos a bordo e ocupamos o lugar que nos
foi destinado na barca de Caronte, para atravessar “o lago escuro da noite”, onde
“se ergue/a transparência da solidão” e se anuncia um novo dia que se separa do
corpo, sombra da alma – cinza envolta na luz -, “matéria extinta” que nos
redime da descrença e eterniza o silêncio da terra sem tempo, nem êxtase. Almas
que se erguem do silêncio do profano,
sedentas de glória, com a mesma compaixão com que admiramos o sacrifício
daquele que se deixou vilipendiar e
foi, por fim, vencido. Escreveu Franz Kafka que “No cais ninguém prestou atenção
aos recém-chegados (…) ”. Responde-nos Alvaro Giesta: “aqueles que nunca
beijaram” porque o mar emudeceu à sua volta. Também na vida nem sempre dão por
nós, pela nossa passagem de revoltado
animal, decididos a procurar na praia os vestígios de um olhar divino desaparecido
na concavidade azul das areias; olha-se vagamente a sombra do corpo na plenitude da luz que se liberta do
infinito e atravessa aquela nesga
apertada entre dois ponteiros do velho relógio – é a vida! - que assinala a
superfície do tempo estagnado para
evocar a perene ausência, depois de ascendermos até ao alto da colina e
testemunharmos o golpe letal da espada da justiça, despedaçando a nossa carne inocente,
enquanto alguém chora nos braços de uma cruz.
“é o retorno à vida” que
nos impele para fora da penumbra suspensa da árvore que “atravessa/o ciclo da
vida” quando se abre a porta que deixa entrar o vento das montanhas, “o sulco de luz” que arrasta os corpos
nus para um sono, agora sem retorno, devido ao cansaço e à dor, e nos faz
cativos “dos lábios da terra/da espuma branca sem mar/da sede, da fome, do frio”.
Os insensatos dias que sucedem ao despontar da lucidez trazem a descrença e os
caminhos parecem-nos inúteis. O “mundo tornou-se pobre e vazio” (Sigmund Freud). Vagueia-se na noite de amargas melodias para expulsar os pesadelos e recuperar o timbre dos sonhos
por sonhar que tanto pode ser a estrela
fugidia, ou o princípio infinito,
ou o tempo do ser, num mundo injusto,
inefável, agonizando à medida que se aprofunda o afastamento dos fulgores secretos que acendem os
símbolos elementares da vida.
Que sentido ontológico
tem, neste trilho poético, o ser que espreita o abismo dentro de si mesmo, não
por efeito da incandescência da alma ou de um acto repousado da
consciência? A resposta poderá estar na percepção daquele momento decorrido entre
a vigília e o sono, do absoluto vazio, espaço de refúgio “em que coincidem/a
sombra e a luz” e que nos informa que “(…)
o ser é vazio de toda a determinação que não seja a da identidade consigo
mesmo” (in “O Ser e o Nada” Jean Paul Sartre).
“naufraga-se num sono/eterno”
e o corpo “ascende ao princípio”,
escreve indelevelmente o poeta na sombra do abismo, porque a abolição de todas
as fronteiras ente a vida e a morte, porta
aberta ao retorno do ser, projecta o espaço livre que ganha maior nitidez através
do movimento, da incandescência, transmitidos pela alma ao corpo antes deste atingir
o seu estado de maturação. E assim aperfeiçoa o seu tempo do ser, conforme
vimos anteriormente!
Organicamente “o
Retorno ao Princípio”, revela-se ao leitor sob uma dupla face: MORTE e VIDA. Quer a Morte - invisível
lucidez que apaga alguns dos sinais
de uma travessia, repouso fatal, reacendimento das almas, “prenúncio de um novo
dia” -; quer a Vida - sonho por desvendar, beijo de fogo no silêncio, espuma branca, grito na escuridão, medo
da morte disfarçada, entrando em nós como um punhal -, concedem-nos um
sentimento de amor à palavra vertida no sangue que enfrenta mistérios e ritos, e
persistentemente renova o nosso destino, “caminho/à
beira-lágrima/onde um deus se perdeu”, chão pisado de memórias indesejadas.
Partilhamos vida e morte, num só movimento do tempo, vagueando como duas aves na
palma da mão dos infinitos céus, enquanto
a clarividência da palavra dos deuses não é senão uma metáfora sobre o império
da fé que por milénios nos tem servido de guia e nos tem dividido. O nosso
destino é o sol-infinito instalado no
espaço vazio e frio da morte, onde o ser “contradiz-se e faz-se/de novo abismo”.
O acto poético apresenta-se nestes versos de engenhoso compromisso de Alvaro Giesta,
como mediação de sentido do inatingível, voz silenciosa entre dois mundos opacos,
dois lugares tão próximos quão longínquos pontuados de muitas incandescências –
da alma, do sonho, e das ausências do corpo e da divindade!
Escreveu o Prof. Eduardo
Lourenço, no já distante ano de 2000 sobre como falar de poesia: “Vendo bem,
foi para dar voz a um excesso de sentido que a poesia nasceu: excesso de
entusiasmo para nos celebrar como deuses imaginários do nosso destino ou melancolia de não ser
esse mesmo deus que no fundo sabemos ser. É sempre a sós connosco que vivemos
estes abismos que nos medem.
Os deuses são a sombra deles. Mas não conheceríamos essa incandescência de nós mesmos sem os imaginarmos.”
Cada uma das partes, Morte e Vida, de que se compõe a
obra expande-se por “terreno alheio”,
como se de terreno próprio se tratasse. Nisto reside o processo da diálectica
Vida-Morte que cimenta a edificação lírica. Na realidade o que o poeta procura
em cada uma das partes, é a parte
correspondente à outra, enquanto resultado de uma certa complementaridade. Por
isso, Morte e Vida, nem sempre se apresentam como faces antagónicas do ser, a substância
perecível que incorpora o princípio e
precede a ausência do corpo.
“tu e eu somos duas partes
da mesma
parte
deste
ser”
(…)
Alvaro
Giesta
Fazendo, por vezes, uso
de algum mimetismo de valores simbólicos, comumente aceites pela metafísica e
no plano religioso, como se estivesse na iminência de se inclinar “sobre o fim/prestes a ser/princípio”, o
poeta perscruta as entranhas da morte, a matéria diáfana que emana “do âmago
do nada/existente/entre a penumbra e a luz”. Enquanto isto, algures, o
sémen da vida vai transformando o universo desconhecido e intemporal em verbo.
Terá dito, já lá vai
tempo, o escritor Lobo Antunes que ninguém sabe o que é a morte, mas que não
faz muita diferença porque também nunca sabemos o que é a vida.
Como última nota quero deixar-vos,
caros leitores, o meu agradecimento ao poeta Alvaro Giesta por me ter convidado
a integrar esta expedição “Vida-e-Morte”, o que me permitiu entrar na sua
órbita poética, na qualidade de atento satélite errante. Aquele abraço
fraterno!
José Baião Santos Abril 2014
Posfácio ao O Retorno ao Princípio
por Fernando António Almeida Reis (ortónimo)
por Fernando António Almeida Reis (ortónimo)
Nota
introdutória
Na qualidade do meu verdadeiro nome, Fernando
A. Almeida Reis e na sequência das tertúlias poéticas levadas a cabo pelo Clube
de Poetas KAFÉ-KAFKA/BVQ, a cujo núcleo pertenço, produzi o ensaio subordinado
ao mote "Dialéctica Vida-Morte" (aqui reproduzido apenas na parte a
que diz respeito a Alvaro Giesta meu pseudónimo literário e autor deste volume),
tendo por base os poetas Antero de Quental (sec. XIX), Manoel de Barros, Hilda
Hilst, Fernando Echavarría e o já citado Alvaro Giesta, todos do sec. XX,
levando em linha de conta que os mesmos se debruçaram, na sua poética, sobre
esta inquietante problemática.
Pela motivação que o mote tertuliano
produziu, em mim, como poeta Alvaro Giesta, levou-me a escrever o "O Retorno ao Princípio" (numa
dialéctica Vida-Morte), que ora dou por reproduzido, não sem antes deixar aqui
e em nota de fim do livro, aquilo que ao último poeta em estudo diz respeito,
tema tratado tão audaciosamente e com estupefação recebido pelos assistentes ao
evento.
Corpo do ensaio
Um dos “papéis” da arte
poética é expressar sentimentos humanos e transmitir, de forma subjectiva,
aspectos da nossa realidade – medos, angústias, anseios, desgraça, pobreza... tudo quanto seja marginal e que, a maioria dos
nossos poetas de hoje fogem a retratar.
O novo, o desconhecido, é algo
que nos assusta enquanto seres humanos em quem o receio está presente, em quem
a expectativa é uma constante aliada ao medo da dor e da dor na morte que ela
nos possa causar. E como vamos nós pensar nesse desconhecido que começa onde a
vida acaba e a morte começa?
No fazer poético de alguns
poetas, a Morte não é o fim de um ciclo. Ela é transmutação. É apenas o
trânsito, a passagem breve para outra vida, passagem ainda que fatal, pela
fatalidade que o fenómeno Morte encerra, um ponto de passagem, obrigatório para
todos os seres vivos. É apenas a passagem para outra vida, com princípio no
próprio fim. Ela é, não deixando apenas de ser o fim, também o princípio que
começa onde esse fim termina.
Aqui falo do pensar e fazer
poético de Alvaro Giesta, meu pseudónimo literário, que não tendo rigorosamente
nada a ver, nem eu, na qualidade de escritor, nem o meu pseudónimo na qualidade
daquilo que ele é - o poeta-, com o pensamento de certas religiões, a que sou
literalmente avesso. Enquanto poeta Alvaro Giesta, a liberdade da palavra, no
uso poético que lhe dou, permite-me, aqui, filosofar um pouco acerca da morte.
A morte, que é a garantia da ordem no mundo dos homens, que é o que concede o
diálogo, pois, no mundo humano adquire-se a vida através da morte. Só, assim, a
vida tem sentido.
O filósofo Maurice Blanchot
dizia que "a morte é a base de todo o alicerce humano diferentemente do
que ocorre no mundo literário". No texto poético as palavras adquirem uma
maior liberdade pela soma inesgotável de temas que se nos propõem à imaginação
trabalhando a matéria desses temas com a arte poética que eles merecem. Daí
que, considere, que não há morte em literatura. A impossibilidade da morte diz
respeito ao não-fim. Ou seja, a finalidade da morte que nos surge diariamente
na linguagem normal das evidências, não existe na linguagem poética. Mesmo
quando poetas como Fernando Echevarría nos dizem que a morte é o fim e que,
para além da morte nada mais há senão o fim; o nada; o vácuo.
Mas é exactamente esse fim
poético que vai dar origem a novos olhares na poética de Alvaro Giesta, no tema
Vida-Morte, à tal "espuma"
de Echevarría que lhe foi princípio. Porque, no seu entendimento, é no nada e
do nada que nasce a linguagem poética; é aí, no preciso lugar "onde a luz
e a obscuridade coincidem e se transformam", que se dá o acto inaugural da
palavra. À semelhança, e contrariando Echevarría que na sua linguagem mais filosófica
que meta-poética diz que para além da morte nada mais há senão o nada, a morte,
em Giesta, é o retorno ao princípio a partir do nada onde se dá o acto
inaugural da vida.
A linguagem poética, neste
caso na enfatização da morte pela palavra, não procura uma finalidade, uma
explicação, não procura atingir algo, atingir um fim - isto, é para as
religiões e seitas. Na linguagem poética a palavra não morre. A palavra, se
morre, é para dar vida à palavra nova porque "a palavra é a vida dessa morte", como nos diz o filósofo
Maurice Blanchot e o poeta Alvaro Giesta, num dos poemas iniciais de "o
Retorno ao Princípio".
" eis / o
invisível monumento / da lucidez: // onde a luz acabou / reacendeu-se / a vida;
// o timbre / afina-se / ao abrir duma
janela / que antes de estar / aberta / se abriu // erguem-se do silêncio / as
almas / em centrífuga abstracção... // onde / o vento / exunda a escuridão das
águas / e cresce / a exumação das coisas inúteis, / há / a elevação das almas/ ao
infinito-além "
Como se vê neste poema, há no
autor Alvaro Giesta, como dialéctica existencial, um horizonte de expectativas
enquanto epifania possível de um tempo novo. Não tendo nada a ver com qualquer
tipo de credo religioso, é apenas a sua expressão mais alta no fazer poético em
que se debruça Alvaro Giesta neste tema Vida-Morte que lhe inspirou o livro
poético, ora em apreço e chamado O
Retorno ao Princípio.
Aliás, esta experiência neste
autor é como que uma vontade subjectiva de atenuar o sofrimento comum a todos
os mortais, principalmente aos camponeses enterrados por uma vida nas serranias
do nordeste transmontano, que lhe é a sua origem, para quem a morte é dor no
luto com que vestem a alma e o corpo, muitas vezes para o resto da vida, mas
também, esperança de que para lá do fim comece um novo princípio mais
radioso.
É como que uma praxis criadora
inspirada na fé de todos os domingos nas capelas das aldeias onde enchem os
bolsos aos padres com promessas que lhes vendem na expectativa de um mundo
melhor e mais justo e um lugar cativo no céu, enquanto rasgam os joelhos em penitência no culto aos
seus mortos que, por detrás da mesma capela muitas vezes repousam.
A felicidade, na descrição da
morte para o poeta Alvaro Giesta (felicidade nos moldes em que ele a descreve),
quando "em erráticos poemas"
poetisa o momento em que seu pai descansa no esquife, ainda que sendo ela, fim,
este fim não deve ser equiparado ao términus, no sentir e no querer poético do
poeta, enquanto Nada e Morte mas, sim, enquanto “fim no começo”. Ela, a morte, para o
poeta, é o princípio, é a busca do Além, é o retorno ao princípio. E ela será
felicidade, ligada à esperança no pressentimento do Bem-Supremo.
A morte é o tal "monumento invisível" onde a luz se
reacende, é o tal "abrir de uma janela
/ que antes de estar / aberta / se abriu " e donde "se erguem /as almas" e "se elevam
/ ao infinito-além".
É a tal praxis criadora
inspirada na fé num deus que, embora podendo não ser o seu (e seguramente o não
é), é o daqueles desvalidos que n’Ele acreditam; aqueles, que o poeta canta;
aqueles sobre quem ele se debruça; aqueles por quem ele, poeta, se outra. É a
imaginação do poeta na busca incansável do inalcançável, na busca de vencer o
fracasso, de vencer a morte. Quantas vezes o poeta até faz lindos poemas sobre
a feia morte… prefaciando o poeta, "o poeta é um fingidor".
" desprende-se
/ para destino enigmático, / do âmago do corpo / extenuado, / a alma sedenta de
glória / noutra esfera. // a barcaça da morte / atravessa /o lago escuro da
noite, / onde tudo acaba / e começa / novo dia, // a substância, / em maturação
inclina-se / no seu propenso vagar
para a glória da
morte, // e dela / em glória renasce / em novo dia, / sendo que do seu fim / acontece
todo o princípio. // deslumbra-se, / do corpo que se desintegra, / agora / a
alma / que se difunde no abstracto / devir."
Vida e Morte são
interdependentes. Existem simultaneamente. Uma não existe sem a outra. Ou
melhor, existencialmente, Vida e Morte fundem-se uma na outra. A morte ronda
continuamente a vida, é um facto contínuo na própria vida, pois “morremos ao nascer; o fim já existe desde o
começo”. Já Sócrates, condenado pela cicuta à morte, quando a sua mulher
correu aflita para a prisão gritando-lhe; “Sócrates,
os juízes condenaram-te à morte!” ele, o filósofo, calmamente respondeu: “Eles também já estão condenados”.
Filosofando, preparou-se para a morte. Porque, como dizia Santo Agostinho, “é somente em face da morte que nasce a
individualidade do homem”. Afinal, Freud tinha razão quando dizia que “a morte é o final necessário e inevitável da
vida”. Vida que, se a quiser suportar, me tenho que preparar para a morte.
Desde o instante em que
nascemos, começamos a morrer; cada dia vivo é um dia a menos nas nossas vidas,
na nossa existência. É a nossa condição existencial. Porém, sendo a morte um
dos fenómenos inevitáveis, o poeta não deve deixar de reflectir na sua finitude
como ser humano. Mais uma vez o entendimento do poeta Alvaro Giesta que tem da
morte a ideia como causa necessária da vida:
"morte / doce
irmã do sono / descanso fatal da dura vida… / liberta-se o espírito / com o som
e a cor da morte. // desperto da ilusão–ideia / neste puro entender / o enigma
da morte não–fantasma… / olha-se pela ideia / de que a morte é libertação."
A morte, em poesia, é um dos
temas actuais muito pouco tratados mas que nos devia merecer pesquisa e
preocupação. Principalmente porque, se ela nos amedronta, também é ela, porque
existe, que nos dá a única e definitiva certeza da vida. E, se para uns é
esperança de um novo princípio, mais radioso, ainda, para outros poetas, como
Fernando Echevarría, ela também é certeza do desgaste que a idade não perdoa.
(...)
Quando me decidi a escrever sobre o tema, pensei que isto até seria uma
brincadeira séria. Mas, ao mesmo tempo, até me assustei ainda que eu goste de
esgrimir com a morte. Já a senti, por vezes, sob dois aspectos: quando em
guerra, assustadora; quando em situações de doença de difícil entendimento
clínico ou noutras situações de desespero e desilusão, convidativa. Apelativa,
até! Também tive ocasiões em que vi a vida morrer-me nos braços, ensanguentada,
horripilante e aí senti a morte repulsiva e indesejável. Misteriosa, quando não
se sabe porquê! Porque é que ela nos bate à porta, logo a nós e nessas
ocasiões.
Foram estes diversos factores que me fizeram autopsiá-la quanto à
poesia. E procurei poetas que lidassem com a morte com o mesmo à vontade com
que, de permeio, lidam com o amor – o elo aglutinador que estabelece pontos de
confluência nesta dialéctica dizível VIDA – MORTE.
A morte, para os crentes num
mundo melhor, é sempre “passagem para uma
vida definitiva” – assim a decifrou S. Paulo; já Eurípedes, o trágico poeta
grego, reflectia que “morrer deve ser
como não haver nascido / e a morte talvez seja melhor até que a vida / de dor e
mágoas, (…)”; ao contrário, Fernando Pessoa considerou-a um “enigma”.
Seja como for, a realidade é
que a morte é um facto – é o cessar completo e definitivo de vida de um ser
vivo – que muitas vezes se deseja sem medo, bem diferente desse que se sente
quando o morto-vivo permanece ligado à vida através daquelas máquinas
complicadas e tubos a emoldurar a cama em que se deita, sem saber que ali está
naquele estado vegetativo.
Em Alvaro Giesta é algo
desafiador interrogar a morte, desafiar a morte, desafiar esse limite do homem
sobre o controlo da natureza… talvez esse sentimento de inconformidade tenha a
ver, não com o medo da morte propriamente dita, mas com o medo do sofrimento
físico e emocional decorrente dela; medo da dor, da incapacidade física, da
incompreensão dos outros homens válidos, da falta de liberdade de poder ser,
por si só, medo da solidão.
(...) na penúltima peça sobre
o autor Alvaro Giesta no enigma Vida-Morte, vê-se a sua coragem ao enfrentar o fim no seu
“Testamento à Morte”, que aqui, pela sua extensão, não se dá por reproduzido.
Nele, patente, o desabafo–desespero final
do poeta diante da irreversibilidade no curso das coisas que nos atingem em
níveis muito profundos e diferentes; a descrença no divino e a vontade de não
sofrer quando a doença incurável é a marca irremediável neste percurso da
finitude humana.
Não é o negar da morte neste seu poema omitido, neste momento de cultura
contemporânea; é, outrossim, ousar falar dela com coragem, imaginá-la,
compreendê-la e aceitá-la. Mas também é um não-crer que a morte unifica e
reforça os laços de amizade. Ideias da morte e dos seus rituais como aspecto da
sociedade que podem unir pessoas ou separar grupos, não está na perspectiva
poética de Alvaro Giesta. Mas também não é vontade do poeta que enfatize a
morte com sentimentos de dor, que muitas vezes é uma dor fingida, nem com
rituais de exploração do corpo, em fim de vida, que perspectivem uma busca do
conhecimento que passa pela sensação da impotência científica.
(...)
Fernando A. Almeida Reis, ortónimo
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