Duas opiniões sobre a
obra "O Retorno ao Princípio" de Alvaro Giesta
Colecção
Naïf
-Editora Calçada das
Letras, 2014
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(...) O Retorno ao Princípio, “é o
retorno à vida” que nos impele para fora da penumbra suspensa da árvore que
“atravessa/o ciclo da vida” quando se abre a porta que deixa entrar o vento das
montanhas, “o sulco de luz” que
arrasta os corpos nus para um sono, agora sem retorno, devido ao cansaço e à
dor, e nos faz cativos “dos lábios da terra/da espuma branca sem mar/da sede,
da fome, do frio”. Os insensatos dias que sucedem ao despontar da lucidez
trazem a descrença e os caminhos parecem-nos inúteis.
Que
sentido ontológico tem, neste trilho poético, o ser que espreita o abismo
dentro de si mesmo, não por efeito da incandescência
da alma ou de um acto repousado da
consciência? A resposta poderá estar na percepção daquele momento decorrido
entre a vigília e o sono, do absoluto vazio, espaço de
refúgio “em que coincidem/a sombra e a luz” e que nos informa que “(…) o ser é vazio de toda a
determinação que não seja a da identidade consigo mesmo” (in “O Ser e o Nada” Jean Paul Sartre).
“naufraga-se
num sono/eterno” e o corpo “ascende ao princípio”, escreve indelevelmente o poeta na sombra do abismo, porque a
abolição de todas as fronteiras ente a vida e a morte, porta aberta ao retorno do ser, projecta o espaço livre que ganha
maior nitidez através do movimento, da incandescência, transmitidos pela alma
ao corpo antes deste atingir o seu estado de maturação. E assim aperfeiçoa o
seu tempo do ser... (...)
Organicamente
O Retorno ao Princípio, revela-se ao
leitor sob uma dupla face: MORTE e VIDA. Quer a Morte - invisível lucidez que apaga alguns dos sinais de uma travessia, repouso
fatal, reacendimento das almas, “prenúncio de um novo dia” -; quer a Vida -
sonho por desvendar, beijo de fogo no silêncio, espuma branca, grito na escuridão, medo da morte disfarçada, entrando
em nós como um punhal -, concedem-nos um sentimento de amor à palavra vertida
no sangue que enfrenta mistérios e ritos, e persistentemente renova o nosso
destino, “caminho/à
beira-lágrima/onde um deus se perdeu”, chão pisado de memórias indesejadas.
Partilhamos vida e morte, num só movimento do tempo, vagueando como duas aves
na palma da mão dos infinitos céus,
enquanto a clarividência da palavra dos deuses não é senão uma metáfora sobre o
império da fé que por milénios nos tem servido de guia e nos tem dividido. O
nosso destino é o sol-infinito
instalado no espaço vazio e frio da morte, onde o ser “contradiz-se e faz-se/de
novo abismo”. O acto poético apresenta-se nestes versos de engenhoso
compromisso de Alvaro Giesta, como mediação de sentido do inatingível, voz
silenciosa entre dois mundos opacos, dois lugares tão próximos quão longínquos
pontuados de muitas incandescências – da alma, do sonho, e das ausências do
corpo e da divindade!
Cada
uma das partes, Morte e Vida, de que
se compõe a obra expande-se por “terreno
alheio”, como se de terreno próprio se tratasse. Nisto reside o processo da
diálectica Vida-Morte que cimenta a edificação lírica. Na realidade o que o
poeta procura em cada uma das partes,
é a parte correspondente à outra, enquanto resultado de uma certa
complementaridade. Por isso, Morte e Vida, nem sempre se apresentam como
faces antagónicas do ser, a substância perecível que incorpora o princípio e precede a ausência do corpo. “tu e eu somos duas partes / da mesma parte / deste ser”.
Fazendo,
por vezes, uso de algum mimetismo de valores simbólicos, comumente aceites pela
metafísica e no plano religioso, como se estivesse na iminência de se inclinar
“sobre o fim/prestes a ser/princípio”,
o poeta perscruta as entranhas da morte, a matéria diáfana que emana “do âmago
do nada/existente/entre a penumbra e a luz”. Enquanto isto, algures, o
sémen da vida vai transformando o universo desconhecido e intemporal em verbo. (...)>>
do prefácio à obra por Dr. José Baião Santos
"
(...) Um dos "papéis" da arte poética é expressar sentimentos humanos
e transmitir, de forma subjectiva, aspectos da nossa realidade – medos,
angústias, anseios, desgraça, pobreza... tudo quanto seja marginal e que, a
maioria dos nossos poetas de hoje fogem a retratar.
O
novo, o desconhecido, é algo que nos assusta enquanto seres humanos em quem o
receio está presente, em quem a expectativa é uma constante aliada ao medo da
dor e da dor na morte que ela nos possa causar. E como vamos nós pensar nesse
desconhecido que começa onde a vida acaba e a morte começa?
No
fazer poético de alguns poetas, a Morte não é o fim de um ciclo. Ela é
transmutação. É apenas o trânsito, a passagem breve para outra vida, passagem
ainda que fatal, pela fatalidade que o fenómeno Morte encerra, um ponto de
passagem, obrigatório para todos os seres vivos. É apenas a passagem para outra
vida, com princípio no próprio fim. Ela é, não deixando apenas de ser o fim,
também o princípio que começa onde esse fim termina.
Enquanto
poeta Alvaro Giesta, a liberdade da palavra, no uso poético que lhe é dada,
permite-lhe, em O Retorno ao Princípio,
filosofar acerca da morte. A morte, que é a garantia da ordem no mundo dos
homens, que é o que concede o diálogo, pois, no mundo humano adquire-se a vida
através da morte. Só, assim, a vida tem sentido.
O
filósofo Maurice Blanchot dizia que "a morte é a base de todo o alicerce
humano diferentemente do que ocorre no mundo literário". No texto poético
as palavras adquirem uma maior liberdade pela soma inesgotável de temas que se
nos propõem à imaginação trabalhando a matéria desses temas com a arte poética
que eles merecem. Daí que, considere, que não há morte em literatura. A
impossibilidade da morte diz respeito ao não-fim. Ou seja, a finalidade da morte
que nos surge diariamente na linguagem normal das evidências, não existe na
linguagem poética. Mesmo quando poetas como Fernando Echevarría nos dizem que a
morte é o fim e que, para além da morte nada mais há senão o fim; o nada; o
vácuo.
Mas
é exactamente esse fim poético que vai dar origem a novos olhares na poética de
Alvaro Giesta, no tema Vida-Morte, à tal "espuma" de Echevarría que lhe foi princípio. Porque, no seu
entendimento, é no nada e do nada que nasce a linguagem poética; é aí, no
preciso lugar "onde a luz e a obscuridade coincidem e se
transformam", que se dá o acto inaugural da palavra. À semelhança, e
contrariando Echevarría que na sua linguagem mais filosófica que meta-poética
diz que para além da morte nada mais há senão o nada, a morte, em Giesta, é o
retorno ao princípio a partir do nada onde se dá o acto inaugural da vida.
A
linguagem poética, neste caso na enfatização da morte pela palavra, não procura
uma finalidade, uma explicação, não procura atingir algo, atingir um fim -
isto, é para as religiões e seitas. Na linguagem poética a palavra não morre. A
palavra, se morre, é para dar vida à palavra nova porque "a palavra é a vida dessa morte",
como nos diz o filósofo Maurice Blanchot e o poeta Alvaro Giesta, num dos
poemas iniciais de O Retorno ao Princípio.
(...)"
do
posfácio à obra por Fernando A.
AlmeidaReis, ortónimo
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