Tremeu.
Também sentia medo. Mais do escuro do que daquele mar encrespado. Sempre teve
medo do escuro. Sempre teve medo do medo que nascia do escuro.
Costumava dizer-lhe, a mãe, que a
noite escura tinha Kazumbir. Que o Kazumbir andava, na noite sem dono, como
alma penada, à procura das crianças da aldeia com que alimentava a sua sede de sangue
e feitiço. Principalmente daquelas que se afastavam do terreiro da sanzala,
para lá da orla com a mata. Por isso, à noite, ficava de cócoras junto da
fogueira acesa na palhota, enquanto rabiscava na cinza, com qualquer graveto,
figuras sem rosto. Eram as figuras das crianças que o Kazumbir roubava para
alimentar a sede do mal. E pensava no Kazumbir...
«Mamãe, como é a cara do Kazumbir?»
«Não tem cara - dizia-lhe a mãe - são como os Chingange sem cara.»
Ele desconhecia como era Kazumbir mas,
sabia que Chingange, essa figura mística de interesse e respeito que aparecia
nos rituais africanos, tinha rosto, apesar de aparecer sempre com a cara tapada
com uma máscara pesada feita de madeira.
Pensava sempre que cada máscara tinha
um duplo efeito: um pela face externa, outro pela face interna. Como se por uma
se visse nessa figura mística um deus e, pela outra, se olhasse para o homem
que se transmuta e fazia crer, a si próprio, que era um deus na transfiguração
do eu. Ele sabia que, por detrás daqueles buracos fundos e negros, se moviam os
olhos de um homem. Um homem agora sem rosto... debaixo daquela máscara, havia
uma outra máscara, ou talvez muitas máscaras num rosto sem rosto. A máscara
externa, feia e fria, ainda que de pau preto fosse esculpida e o seu escultor
lhe pudesse ter dado dóceis feições. Mas não, deu-lhe as feições mais horrendas
que é possível dar a uma máscara sem rosto. A máscara era de feições disformes
talvez para indicar, a quem a olhava, a medo, que o coração do seu utente
também era sanguinário e assim o obrigava a deitar os olhos ao chão. Apenas uma
boca arreganhada de lábios feios e grossos e no lugar dos olhos dois buracos
profundos. Tão negros como o negro da noite em que Kazumbir se acoitava, de que
Kazumbir se alimentava, tão fundos como o abismo do mar que prometia ser a sua
última morada.
«Quem vir a cara de Kazumbir, morrerá - continuava a dizer-lhe a mãe - ou acontece-lhe um mal ruim, daqueles de fazer a
pessoa, que o apanha, ficar deitado, doente o resto dos dias, na esteira
estendida no chão duro da escura cubata onde só os mais-velhos e sábios da
aldeia podem entrar para se certificarem que o mal que Kazumbir espalhara ainda
não tinha levado o doente para junto dos antepassados.»
Por isso, Kazumbir não tinha cara; não,
como Chingange que andava sempre de cara tapada mas, existia sem cara - dizia-lhe a mãe. Ninguém sabia, porque nunca alguém
vira Kazumbir... Kazumbir era o presságio da morte; nunca ninguém na aldeia o
tinha visto mesmo sabendo-se da sua existência. Em Chingange, no lugar dos
olhos e da boca, apenas aqueles três buracos negros e sombrios que nem a luz do
dia ousava espreitar para o seu interior, com medo de aí se perder. E corpo de
Chingange era disforme. Lembrava-se bem disso. Muitas vezes o tinha visto
dançar, naqueles saltos grotescos no largo descampado ao fundo da sanzala.
Sítio que ninguém ousava atravessar, nem mesmo fora do tempo das batucadas
sagradas... era terreno exclusivo de Chingange. Terreno sagrado. Ali, onde a
velha mulemba guarda ninhos e segredos que incendeiam quem deles ousar saber
mais que os Sekúlos sábios da aldeia, se festejavam as festas do alambamento
até ao sol posto, ou se recordavam, noite dentro e manhã fora, aqueles que dos
seus se partiram para o reino longínquo dos antepassados.
Recordava-se...
A tarde ia alta. Aproximava-se do seu
fim. Num pôr-do-sol, estranho, sanguinolento, o astro arredava-se para o outro
lado do mundo, rasando, na distante savana, as copas das bissapas que se
erguiam do solo a partir de disformes e esqueléticos troncos; de ora em vez o
sol espreitava, teimoso, por entre nuvens carregadas que o vento teimava em
fracturar, e emprestava-lhe a cor sépia que deixava fugir de si. Era um
pôr-do-sol diferente... mau presságio se adivinhava. Afogou-se, o sol, num céu
assustador, para as bandas mais longínquas da savana.
Pressentia
mau agoiro naquele adeus dum sol agónico, num céu de medo e morte.
Misturavam-se-lhe, na mente, interrogações incontornáveis naquilo que lhe
parecia a premunição dum desastre conjugado com a embriaguez do êxtase.
Um Chingange rompeu, de repente, da
mata que orlava as libatas e as unia num todo em redor da velha capela
protestante erguida a adobe no centro da aldeia, em saltos grotescos mais
parecendo um demónio, metendo medo aos mais novos por ali próximos. Depois
outro, grotescamente disforme, igualmente com aquela máscara de feições macabras
a cobrir-lhe invisível rosto, e outro, ainda... eram três zarapelhos em
pessoas.
Ele correu, assustado, a esconder-se
debaixo do pano pintado que envolvia o corpo da mãe, que depressa ela apertou,
ainda mais, ao corpo com um nó, não fosse ele desprender-se e deixar-lhe à
vista as sagradas íntimas partes de si, enquanto num ritmo cadenciado de pés e
mãos ela acompanhava as outras anciãs da aldeia para contentar os Chinganges
nas suas danças macabras. Aqueles corpos desengonçados, cobertos de lianas e
zarapilheira, enfeitados com saias de sisal seco e esfarpado, faziam piruetas
demoníacas no ar e rebolavam, no pó do terreiro, como animais que querem
desfazer-se dos parasitas que, como lapas, se lhes colam ao corpo e os
incomodam causando-lhe fatal coceira. Presas ao corpo, os Chinganges usavam mil
fatias de sisal seco e, nas pernas, uma teia de pele com guizos que soltavam
sons frenéticos e estridentes produzindo a própria música que dançavam. A
espaços incertos erguiam-se, de entre a multidão que arredava assustada, outros
homens-gnu de tamanhos disformes e homens-gunga a que se juntavam
mulheres-gazela fazendo vibrar as tuelelas amarradas ao tornozelos.
Depois daquela dança macabra de cerca
de duas horas, todos se dissolveram, numa travessia secreta existente ao fundo
do terreiro, para qualquer lado sem nexo entre o visível e o invisível. Como
tinham aparecido, de repente, vindos não se sabia de que insondável e
silencioso recanto da mata, assim, num ápice, os Chinganges se sumiram no capim
alto para lá dos limites da sanzala. Era a cumplicidade dos deuses a
aterrorizar as pessoas humildes, para que a sua obediência e subjugação ao
desconhecido fosse total, cega e absoluta. Assim convinha à união dos poderosos
esta subjugação e subserviência dos humildes.
E a submissão continuava, por horas
sem fim, naquele monocórdico tantã acompanhado pelo bater surdo de dezenas de
pés descalços no chão barrento do terreiro. De ora em vez uma voz de tenor
erguia-se, como se em rebeldia, e deixava escapar prolongado esgar de dor, que
não se entendia bem, a que logo respondiam vozes arrastadas de lamento ao som
das palmas compassadas a que se juntava o ébrio bambolear de corpos suados em
simulacros de dança. Era neste fluir descendente de sangue, da cabeça aos pés,
que os corpos bamboleantes se desarticulavam em arremedos de danças demoníacas,
pela ausência de controlo cerebral devido à insuficiência da oxigenação do
cérebro.
De um sítio oculto pela sombra, já livre do medo e liberto da prorecção do pano pintado que envolvia o corpo da mãe, ele, que nunca desfitara os Chinganges nem os seus adjuntos e malabaristas homens-gnu e homens-gunga, captava já os sinais do magma misterioso da vida.
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Alvaro Giesta © para "Contos do Infinito
e os Demónios da Tia Matilde"
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