Corajoso é
o título desta obra: "Policromia para Cegos" - esta arrojada palavra
"cegos" que a muitos dos que veem incomoda, por razões de impacto
social, e a substituem pelo termo "invisual", esquecendo-se que, no
verdadeiro significado, o invisual é aquele que não é visto; por ironia do destino,
não é menos verdade que muitos dos que veem põem em prática o significado
etimológico da palavra "invisual" ao passarem pelo cego, como se ele
fosse o ser invisível e desprezível, o pesado fardo para a sociedade. Esses,
sim, são cegos sem nunca terem cegado!
[Borges (Jorge
Luis), o autor de "Elogio da Sombra", escreveu sobre a cegueira que o
acometeu na década de 1930: «Não permiti que a cegueira me derrotasse (...). A
cegueira não foi para mim uma desgraça total (...). Ser cego tem as suas
vantagens. Pessoalmente, devo certas dádivas à sombra. Se concordarmos que
entre as benesses que nos são enviadas pelos céus está a escuridão, quem poderá
viver melhor consigo próprio, quem será capaz de se conhecer melhor - como disse Sócrates - do que um cego?».
Insignes
são os mestres - que embora
idos para o eterno continuam vivos, pelas obras e, até, pela lenda, entre os
mortais - a quem a
cegueira em nada atormentou; antes, ela foi incentivo para tantos
"Homeros", como o da antiga Grécia que, existindo ou sendo lenda,
realça que a poesia é, antes de tudo, música e que a faculdade visual pode ou
não estar presente num poeta. John Milton, na nobre arte de escrever, não se
queixava de ser cego: "Paraíso Perdido", é o seu longo poema de
hendecassílabos que guardava na memória ditando-os às pessoas que vinham
visitá-lo para que, por ele, o escrevessem. James Joyce, cuja parte da obra que
deixou foi escrita na escuridão, para quem a insigne língua inglesa não era
suficiente e se embrenhou em estudos de norueguês, latim e muitos outros idiomas,
mesmo um que para si inventou com a coragem dum cego que vê o mundo por dentro
de si e de outro modo dos que usam a visão para ver, escreveu: «De todas as
coisas que me aconteceram, a menos importante foi a cegueira.» E Castilho
(António Feliciano de), o nosso poeta sem a faculdade de ver desde os seis anos
de idade: o que o impediu de, não vendo, seguir estudos regulares na
universidade, fazer traduções e leccionar? O que o impediu de lutar contra o
aterrador analfabetismo que assolava o povo português? Nada, nem a
cegueira!]
Depois
deste intróito, em poucas linhas sobre a obra me debruço:
Em finais
de Março deste ano de 2017, o autor português Emanuel Lomelino que escreve a
obra a quatro mãos com o autor galego Jesús Recio Blanco, endereçou-me o manuscrito
de Policromia para Cegos para do mesmo tecer opinião, antes de o submeter à
apreciação editorial. E escrevi, então, aos autores: «Obra (quase) prima. (O
"quase" limitava-se a duas propostas de alterações: evitar
discrepâncias na estrutura dos textos dos dois autores para uniformização da
obra, como se de uma só obra se tratasse, embora escrita a quatro mãos.) E
continuava: ambas as partes se completam, como se o autor fosse só um e em
momentos diferentes (até aqui ainda eu não sabia que os autores eram dois).»
E agora o
desafio lançado pelo autor Emanuel Lomelino para escrever o prefácio. Longe de
mim o sonho de, cinco meses volvidos, me ser dada a honra, pelos autores, de
prefaciar uma obra com direitos autorais atribuídos, pelos mesmos, à ACAPO - Associação dos Cegos e
Amblíopes de Portugal.
Li-o,
antes, com a devida atenção, e, agora, com redobrado interesse; à medida que ia
avançando na leitura, mergulhava na leveza das águas dos poemas procurando o
infinito onde os horizontes da luz e da falta dela, das cores e da fantasia,
corriam a nudez do pensamento e não enxergavam mais do que a beleza de ver por
dentro, por aqueles que não veem, aquilo que quem vê não consegue ver por fora - tal é a profundidade da
obra que, apesar de pequena em tamanho vi grande na qualidade do poema e na sua
"(in)directa" significação.
- Corrijo, se me é permitido,
duas coisas: a referência que faço à "qualidade do poema" e à sua
"(in)directa significação"; quanto à primeira referência, isto que
acabo de ler não é o mero poema tão em voga, que por aí prolifera, sem conter o
mínimo laivo de poesia - isto é
verdadeira poesia. É poesia que vai para além das propriedades que a definem:
ritmo, melodia, beleza, conhecimento da alma, operação de alma no verso capaz
de «cambiar al mundo», como nos dizia Paz. A poesia desta obra é como que um
exercício espiritual da palavra poética que se polariza, que se congrega no
humano, porque vem do sentir do poeta ao encontro da alma do leitor - grande é o sentir, o
sentimento dos poetas que a escreveram, maior é a recepção espiritual de quem a
lê, não necessitando de ser crítico da matéria. A segunda referência que
corrijo, é a "(in)directa significação" porque, apesar da forte
presença das imagens literárias que enxameiam a obra com as quais o visível se
torna invisível ao tornar o invisível visível, ao leitor cabe descodificá-las - apesar das muitas
sinestesias a inebriar-nos os sentidos e até das tantas anáforas em cadeia
textual produzindo um certo efeito de harmonia, característico das aliterações
(dificilmente encontrados na obra estes últimos efeitos estilísticos), os
versos que a compõem são como se fossem "(n)esse olhar de ânfora e
infinito // (n)esse olhar de âmbar e nudez // (n)esse olhar amplexo e de ausência",
espelhos a reflectir a luz que da sombra sai; tal como se a falta da
"luz" no olhar e do "brilho" da cor que esse olhar, pela
força do destino, não capta, estivesse, essa falta do ver, presente na sensatez
dos "teus dedos", na prudência dos "teus dedos", no
movimento do tempo dos "teus dedos" que sendo "clepsidras"
também são "hidriões / sem urgência / mas previdentes"; apesar de
todos os apesares das metáforas que embelezam o texto, que podia ser um só e
longo poema, assim visto numa gradação crescente em ambas as partes da obra,
nelas se lê a intensidade expressiva do objecto poético: "os meus sentidos
/ são cegos como os teus olhos" (in Sinestesia) e "esse olhar amplexo
e de ausência / é desconforto nas minhas palavras / e vazio da minha
ignorância" (in Serendipidade) - um livro que nos fala também do silêncio onde as horas se
perdem na "espessura das sombras" e onde os corações que sentem e os
olhares que veem, embora não vendo, "escondem estórias" a
desvendar pelos que sabem sentir, como
quando "o coração bate / como um rio" e "a criança se abraça ao
cego".
Como nos
versos da obra "era desnecessário descrever a chuva / suspeitar da sua
verticalidade / distinguir o eixo da sua extensão", a mostrar-nos a
intemporalidade do poema, porque ele é apocalíptico, é eterno, (quase) como
Deus é presente, passado e futuro,
(quase) desnecessário se torna descrever a obra "onde as palavras
prolongam / o vazio da humanidade // e a noite é incorruptível na sua forma
(...)". E (quase) desnecessário, porque este grito poético que "(...)
começou por ser sombra e água" e "escuro", nos remete a "um
hemisfério oculto / do outro lado das (...) pálpebras", fechadas ou,
embora abertas, sem nada ver, onde existe uma outra dimensão - o invisível - onde é dado ao leitor
imaginar uma outra luminosidade do sol - doutro sol diferente daquele que nos alumia - que, mesmo no verão, sendo
"cinzento" e "invernoso", nos é dado permitir imaginar no
cego a "translucidez" dos "espectros vermelhos" e a
"cor de fogo" da sua imaginação. São estes céus incendiados de lucidez
que aquele que vê, dificilmente consegue imaginar ver com a força da escuridão
com que o cego vê.
Remetem-nos
os autores para a multiplicidade das cores e suas variações do sonho do cego. E
é muito claro no que se pode ler para além do que deixam expressos estes
versos: "apenas o invisível / tem a cor que tu escolhes". Sabemos
que, mesmo naquele que vê, como, durante o sono, o sonho é lúcido, repleto de
cores, de sons e imagens, baseado nas suas percepções visíveis; e que, quando
acordam, apenas estão presentes no fundo da alma as sensações - quase sempre tudo o mais se
perdeu da lembrança desse sonho. O cego, na sua profunda escuridão, quer seja
noite ou dia, sonha o sonho sem as cores das imagens visuais nunca vistas, pela
impossibilidade de as ter percepcionado - pinta a palete das cores que no invisível ele tem com a
felicidade do sonho de as poder escolher para si, como suas e só suas. E aquele
que vê (o poeta) se conforma em não poder falar-lhe "de todas as cores e
variações" porque desconhece se as "paletas (de ambos) são feitas das
mesmas tonalidades". Um misto de esperança e desesperança, de ânimo e de
desânimo, contudo de fé e de amor nas palavras dos autores desta obra dirigida
ao cego: "prefiro a tua noite eterna / à solidão cega das lanternas".
Admirável
esta obra: todos os poemas, com a complexidade subjectiva inerente a cada um e
subjectivamente entendível por cada leitor que a lê, permitem ver luz onde há luminosidade
sem sol e descortinar brancura mesmo no cinzento das sombras. Mesmo quando essa
falta de luz, em nós, nos conduz à solidão - que, de comum com o silêncio e a escuridão, assusta e aturde
mas nos espanta ao mesmo tempo, quando damos por nós a ver que o negrume
descerra em brilhantismo. Se os sentidos se alimentam com o que lhes oferece a
natureza, a falta do sentido da visão conduzindo o ser à solidão, obriga-o a
meditar e a criar -
descerra-se das trevas a luz e, os olhos, desofuscados desses luzeiros intensos
que muitas vezes incomodam, porque enganadores, exercitam-se a olhar por dentro
procurando em si, e nos outros, aquilo que não podem ver por fora. E o poeta
lavra, assim, o seu poema abrindo o coração, não magoado, mas, acolhedor,
àquele que vê por dentro porque a sorte o impediu de ver por fora: "Quem
me dera saber braille / para escrever um poema / que tu lesses e interpretasses
/ sem ter de ouvir da minha boca. // Se eu soubesse braille / ler-me-ias, ponto
a ponto, / com a ponta dos teus dedos / e saberias, sem que te dissesse, /
quais as sombras que me inibem / e que medos me afligem. // Se eu soubesse
braille / poderias conhecer o que escrevo / e fazer as tuas próprias leituras /
dos versos que nascem / no aconchego das minhas noites, / tão diferentes das
tuas. // Quem me dera saber braille / para que me visses / tal como vês o
mundo." - E eu
acrescento e reforço com o verso do poeta; "com a ponta dos teus
dedos".
O livro é uma horta semeada de puro grão na
promessa do trigo que verdejará bebendo o licor da pura seiva. Estes poemas de
Policromia para Cegos têm trabalho dentro, têm substracto e húmus porque dizem
do(s) poeta(s) e do poema, dizem da vontade sábia de ver para além da sombra,
dizem da sabedoria de mostrar ao mundo que a sombra também é luz quando na
escuridão se faz dia.
O livro POLICROMIA
PARA CEGOS abraça o tempo uno do poema, mesmo quando se abre em dois:
SINESTESIA e SERENDIPIDADE. Cada um deles com vinte e cinco magistrais poemas. Pequenos,
no número de versos, mas grandes, na arte poética. SINESTESIA, remete-nos para
esse tipo de sensações originárias dos diferentes órgãos dos sentidos - nem de outro modo poderia
ser, atendendo ao significado da palavra, conjugando-o até com o seu verdadeiro
significado: fenómeno neurológico que produz duas sensações de natureza
diferente por um único estímulo. Assim se cruzam sensações - como uma cor pode ter um
sabor, um som pode ter uma forma. Como um olhar alberga todos os horizontes,
sem os ver, um pensamento fantasia todas as possibilidades sem as enxergar.
SERENDIPIDADE, termo este tão pouco usual no nosso dia a dia, vem dizer-nos, no
seu significado, dessa faculdade de descobrir coisas agradáveis por acaso - remete-nos, assim, para o
admirável daquilo que a obra Policromia para Cegos tem dentro: a possibilidade,
dada ao cego que não vê mas, também, àquele que vendo anda cego, de ver luz
para além das sombras.
Copyright © 2017, Alvaro Giesta, (todos os direitos reservados para o autor, com
cedência, apenas, para o Prefácio da obra POLICROMIA PARA CEGOS, dos autores
Jesús Recio Blanco e Emanuel Lomelino.)
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