18/12/17

Prolegómenos à obra "Policromia para Cegos"

Corajoso é o título desta obra: "Policromia para Cegos" - esta arrojada palavra "cegos" que a muitos dos que veem incomoda, por razões de impacto social, e a substituem pelo termo "invisual", esquecendo-se que, no verdadeiro significado, o invisual é aquele que não é visto; por ironia do destino, não é menos verdade que muitos dos que veem põem em prática o significado etimológico da palavra "invisual" ao passarem pelo cego, como se ele fosse o ser invisível e desprezível, o pesado fardo para a sociedade. Esses, sim, são cegos sem nunca terem cegado!

[Borges (Jorge Luis), o autor de "Elogio da Sombra", escreveu sobre a cegueira que o acometeu na década de 1930: «Não permiti que a cegueira me derrotasse (...). A cegueira não foi para mim uma desgraça total (...). Ser cego tem as suas vantagens. Pessoalmente, devo certas dádivas à sombra. Se concordarmos que entre as benesses que nos são enviadas pelos céus está a escuridão, quem poderá viver melhor consigo próprio, quem será capaz de se conhecer melhor - como disse Sócrates - do que um cego?».
Insignes são os mestres - que embora idos para o eterno continuam vivos, pelas obras e, até, pela lenda, entre os mortais - a quem a cegueira em nada atormentou; antes, ela foi incentivo para tantos "Homeros", como o da antiga Grécia que, existindo ou sendo lenda, realça que a poesia é, antes de tudo, música e que a faculdade visual pode ou não estar presente num poeta. John Milton, na nobre arte de escrever, não se queixava de ser cego: "Paraíso Perdido", é o seu longo poema de hendecassílabos que guardava na memória ditando-os às pessoas que vinham visitá-lo para que, por ele, o escrevessem. James Joyce, cuja parte da obra que deixou foi escrita na escuridão, para quem a insigne língua inglesa não era suficiente e se embrenhou em estudos de norueguês, latim e muitos outros idiomas, mesmo um que para si inventou com a coragem dum cego que vê o mundo por dentro de si e de outro modo dos que usam a visão para ver, escreveu: «De todas as coisas que me aconteceram, a menos importante foi a cegueira.» E Castilho (António Feliciano de), o nosso poeta sem a faculdade de ver desde os seis anos de idade: o que o impediu de, não vendo, seguir estudos regulares na universidade, fazer traduções e leccionar? O que o impediu de lutar contra o aterrador analfabetismo que assolava o povo português? Nada, nem a cegueira!] 

Depois deste intróito, em poucas linhas sobre a obra me debruço:
Em finais de Março deste ano de 2017, o autor português Emanuel Lomelino que escreve a obra a quatro mãos com o autor galego Jesus Recio Blanco, endereçou-me o manuscrito de Policromia para Cegos para do mesmo tecer opinião, antes de o submeter à apreciação editorial. E escrevi, então, aos autores: «Obra (quase) prima. (O "quase" limitava-se a duas propostas de alterações: evitar discrepâncias na estrutura dos textos dos dois autores para uniformização da obra, como se de uma só obra se tratasse, embora escrita a quatro mãos.) E continuava: ambas as partes se completam, como se o autor fosse só um e em momentos diferentes (até aqui ainda eu não sabia que os autores eram dois).»
E agora o desafio lançado pelo autor Emanuel Lomelino para escrever o prefácio. Longe de mim o sonho de, cinco meses volvidos, me ser dada a honra, pelos autores, de prefaciar uma obra com direitos autorais atribuídos, pelos mesmos, à ACAPO - Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal.
Li-o, antes, com a devida atenção, e, agora, com redobrado interesse; à medida que ia avançando na leitura, mergulhava na leveza das águas dos poemas procurando o infinito onde os horizontes da luz e da falta dela, das cores e da fantasia, corriam a nudez do pensamento e não enxergavam mais do que a beleza de ver por dentro, por aqueles que não veem, aquilo que quem vê não consegue ver por fora - tal é a profundidade da obra que, apesar de pequena em tamanho vi grande na qualidade do poema e na sua "(in)directa" significação.
- Corrijo, se me é permitido, duas coisas: a referência que faço à "qualidade do poema" e à sua "(in)directa significação"; quanto à primeira referência, isto que acabo de ler não é o mero poema tão em voga, que por aí prolifera, sem conter o mínimo laivo de poesia - isto é verdadeira poesia. É poesia que vai para além das propriedades que a definem: ritmo, melodia, beleza, conhecimento da alma, operação de alma no verso capaz de «cambiar al mundo», como nos dizia Paz. A poesia desta obra é como que um exercício espiritual da palavra poética que se polariza, que se congrega no humano, porque vem do sentir do poeta ao encontro da alma do leitor - grande é o sentir, o sentimento dos poetas que a escreveram, maior é a recepção espiritual de quem a lê, não necessitando de ser crítico da matéria. A segunda referência que corrijo, é a "(in)directa significação" porque, apesar da forte presença das imagens literárias que enxameiam a obra com as quais o visível se torna invisível ao tornar o invisível visível, ao leitor cabe descodificá-las - apesar das muitas sinestesias a inebriar-nos os sentidos e até das tantas anáforas em cadeia textual produzindo um certo efeito de harmonia, característico das aliterações (dificilmente encontrados na obra estes últimos efeitos estilísticos), os versos que a compõem são como se fossem "(n)esse olhar de ânfora e infinito // (n)esse olhar de âmbar e nudez // (n)esse olhar amplexo e de ausência", espelhos a reflectir a luz que da sombra sai; tal como se a falta da "luz" no olhar e do "brilho" da cor que esse olhar, pela força do destino, não capta, estivesse, essa falta do ver, presente na sensatez dos "teus dedos", na prudência dos "teus dedos", no movimento do tempo dos "teus dedos" que sendo "clepsidras" também são "hidriões / sem urgência / mas previdentes"; apesar de todos os apesares das metáforas que embelezam o texto, que podia ser um só e longo poema, assim visto numa gradação crescente em ambas as partes da obra, nelas se lê a intensidade expressiva do objecto poético: "os meus sentidos / são cegos como os teus olhos" (in Sinestesia) e "esse olhar amplexo e de ausência / é desconforto nas minhas palavras / e vazio da minha ignorância" (in Serendipidade) - um livro que nos fala também do silêncio onde as horas se perdem na "espessura das sombras" e onde os corações que sentem e os olhares que veem, embora não vendo, "escondem estórias" a desvendar  pelos que sabem sentir, como quando "o coração bate / como um rio" e "a criança se abraça ao cego".
Como nos versos da obra "era desnecessário descrever a chuva / suspeitar da sua verticalidade / distinguir o eixo da sua extensão", a mostrar-nos a intemporalidade do poema, porque ele é apocalíptico, é eterno, (quase) como Deus é presente, passado e futuro,  (quase) desnecessário se torna descrever a obra "onde as palavras prolongam / o vazio da humanidade // e a noite é incorruptível na sua forma (...)". E (quase) desnecessário, porque este grito poético que "(...) começou por ser sombra e água" e "escuro", nos remete a "um hemisfério oculto / do outro lado das (...) pálpebras", fechadas ou, embora abertas, sem nada ver, onde existe uma outra dimensão - o invisível - onde é dado ao leitor imaginar uma outra luminosidade do sol - doutro sol diferente daquele que nos alumia - que, mesmo no verão, sendo "cinzento" e "invernoso", nos é dado permitir imaginar no cego a "translucidez" dos "espectros vermelhos" e a "cor de fogo" da sua imaginação. São estes céus incendiados de lucidez que aquele que vê, dificilmente consegue imaginar ver com a força da escuridão com que o cego vê.
Remetem-nos os autores para a multiplicidade das cores e suas variações do sonho do cego. E é muito claro no que se pode ler para além do que deixam expressos estes versos: "apenas o invisível / tem a cor que tu escolhes". Sabemos que, mesmo naquele que vê, como, durante o sono, o sonho é lúcido, repleto de cores, de sons e imagens, baseado nas suas percepções visíveis; e que, quando acordam, apenas estão presentes no fundo da alma as sensações - quase sempre tudo o mais se perdeu da lembrança desse sonho. O cego, na sua profunda escuridão, quer seja noite ou dia, sonha o sonho sem as cores das imagens visuais nunca vistas, pela impossibilidade de as ter percepcionado - pinta a palete das cores que no invisível ele tem com a felicidade do sonho de as poder escolher para si, como suas e só suas. E aquele que vê (o poeta) se conforma em não poder falar-lhe "de todas as cores e variações" porque desconhece se as "paletas (de ambos) são feitas das mesmas tonalidades". Um misto de esperança e desesperança, de ânimo e de desânimo, contudo de fé e de amor nas palavras dos autores desta obra dirigida ao cego: "prefiro a tua noite eterna / à solidão cega das lanternas".
Admirável esta obra: todos os poemas, com a complexidade subjectiva inerente a cada um e subjectivamente entendível por cada leitor que a lê, permitem ver luz onde há luminosidade sem sol e descortinar brancura mesmo no cinzento das sombras. Mesmo quando essa falta de luz, em nós, nos conduz à solidão - que, de comum com o silêncio e a escuridão, assusta e aturde mas nos espanta ao mesmo tempo, quando damos por nós a ver que o negrume descerra em brilhantismo. Se os sentidos se alimentam com o que lhes oferece a natureza, a falta do sentido da visão conduzindo o ser à solidão, obriga-o a meditar e a criar - descerra-se das trevas a luz e, os olhos, desofuscados desses luzeiros intensos que muitas vezes incomodam, porque enganadores, exercitam-se a olhar por dentro procurando em si, e nos outros, aquilo que não podem ver por fora. E o poeta lavra, assim, o seu poema abrindo o coração, não magoado, mas, acolhedor, àquele que vê por dentro porque a sorte o impediu de ver por fora: "Quem me dera saber braille / para escrever um poema / que tu lesses e interpretasses / sem ter de ouvir da minha boca. // Se eu soubesse braille / ler-me-ias, ponto a ponto, / com a ponta dos teus dedos / e saberias, sem que te dissesse, / quais as sombras que me inibem / e que medos me afligem. // Se eu soubesse braille / poderias conhecer o que escrevo / e fazer as tuas próprias leituras / dos versos que nascem / no aconchego das minhas noites, / tão diferentes das tuas. // Quem me dera saber braille / para que me visses / tal como vês o mundo." - E eu acrescento e reforço com o verso do poeta; "com a ponta dos teus dedos".

 O livro é uma horta semeada de puro grão na promessa do trigo que verdejará bebendo o licor da pura seiva. Estes poemas de Policromia para Cegos têm trabalho dentro, têm substracto e húmus porque dizem do(s) poeta(s) e do poema, dizem da vontade sábia de ver para além da sombra, dizem da sabedoria de mostrar ao mundo que a sombra também é luz quando na escuridão se faz dia.

O livro POLICROMIA PARA CEGOS abraça o tempo uno do poema, mesmo quando se abre em dois: SINESTESIA e SERENDIPIDADE. Cada um deles com vinte e cinco magistrais poemas. Pequenos, no número de versos, mas grandes, na arte poética. SINESTESIA, remete-nos para esse tipo de sensações originárias dos diferentes órgãos dos sentidos - nem de outro modo poderia ser, atendendo ao significado da palavra, conjugando-o até com o seu verdadeiro significado: fenómeno neurológico que produz duas sensações de natureza diferente por um único estímulo. Assim se cruzam sensações - como uma cor pode ter um sabor, um som pode ter uma forma. Como um olhar alberga todos os horizontes, sem os ver, um pensamento fantasia todas as possibilidades sem as enxergar. SERENDIPIDADE, termo este tão pouco usual no nosso dia a dia, vem dizer-nos, no seu significado, dessa faculdade de descobrir coisas agradáveis por acaso - remete-nos, assim, para o admirável daquilo que a obra Policromia para Cegos tem dentro: a possibilidade, dada ao cego que não vê mas, também, àquele que vendo anda cego, de ver luz para além das sombras. 

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Copyright © 2017, Alvaro Giesta  (todos os direitos reservados para o autor, com cedência, apenas, para o Prefácio da obra POLICROMIA PARA CEGOS, dos autores Jesús Recio Blanco e Emanuel Lomelino.)


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