(texto lido no dia do lançamento da obra, em Alcantarilha, Algarve)
Autor: Alvaro Giesta
1. Como nasce a
obra:
Dizia Einstein «Penso noventa e nove
vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio - e eis que a verdade se me revela».
Parece surreal esta introdução de um
poeta para começar um texto de apresentação de um livro de poesia, mostrando a
necessidade do silêncio que o pai da teoria da relatividade tinha para chegar à
verdade que justificava as suas descobertas físicas. Pois... é que esta
quietude interior e exterior, este desligarmo-nos de tudo o que nos rouba à
quietude interna e externa, é condição sine
qua non a quem se entrega à função de descobrir — e, quem escreve poesia, quem quer «penetrar
surdamente no meio das palavras» (como já dizia Drummond) para descobrir o
Belo, tem que ter a brancura do silêncio em si e entre si para fazer do poema a
oração necessária. Também comigo,
enquanto poeta, quando me encontro perante o pânico da página em branco
tentando encontrar a palavra para erguer o poema, esse pânico consome-me e
duplica-se se todos os ruídos do mundo me atormentam e me perturbam. Penso e
não encontro o verbo desejado...
...este
pânico assalta-me, aflige-me o pensar e oiço a minha própria voz a dizer-me que
não sou capaz de escrever o poema desejado. E não consigo criar nesse ruído de
vozes interiores que me assaltam a alma por dentro. Deixo de pensar, mergulho
nesse profundo silêncio tão acolhedor e logo a palavra se me revela nesta
"missão" quase messiânica de escrever o poema. E foi assim ao longo
de dezasseis noites, mergulhando nessa profundidade silenciosa da noite, que eu
escrevi esta obra — inicialmente
muito longa, de poemas densos que depois transformei, que depois compus com
aquilo a que eu chamo o trabalho do oleiro; levando-os quase ao osso, com o
labor necessário a moldar a obra em obediência àquele desafio que a perfeição
exige..
Nasceu
esta obra num dia negro —
o dia em que minha mulher baixou, intempestivamente, ao Hospital Nossa Senhora
do Rosário, do Barreiro, com aquilo que parecia ser uma doença rara e
desconhecida no sangue. Assim, no dia 2 de Novembro do ano de 2017, o poema
ganhou forma, cresceu e se formou ao longo de 16 noites em que ela foi sujeita
a uma multiplicidade dificilmente quantificável de exames hematológicos — que os dias eram passados, quase na
íntegra, à cabeceira da doente, dando-se por concluído no dia 17 de Novembro,
do mesmo ano, com o poema "soltar-se-á o grito de sob a terra dura / no
eco da ressurreição". E, com este poema, esta certeza nas palavras dum
grande escritor que também ele escreveu uma obra em prosa chamada HÚMUS — Raúl Brandão: «a grande verdade e o
destino final de cada um de nós, humanos sujeitos à finitude e em nós latente,
tem uma certeza, desde o Silêncio à Solidão —
a Morte, que a cada dia teima em nos bater à porta.»
2. A estrutura da obra:
Húmus
é um termo que remonta ao tempo dos antigos
romanos, quando era usado para designar o solo como um todo. Apesar do húmus
ser estável, ele não é estático, é dinâmico, uma vez que é formado
constantemente a partir de resíduos vegetais e animais que são continuamente
decompostos por micro-organismos. A importância do húmus
para o solo é múltipla. Ele fornece nutrientes para as plantas, regula as
populações de micro-organismos e torna os solos férteis. Consequentemente, o Húmus fornece vida. Metaforicamente, é
o sítio fértil onde a palavra dormita ainda enterrada em sonhos; a palavra vai
criando raízes nesse seio da terra quente e húmida onde se alimenta até nascer
para a vida — vida que não é mais que um simulacro, pois caminha para esse
lugar outro, concreto mas indefinido: a morte.
Este
título, embora pareça ser composto de vários poemas é, na realidade, um único
poema, formado por seis dezenas de fragmentos, «trabalhando cada componente do
poema da obra em prol da própria obra. Como se tratando-se de uma arquitectura
em que cada um dos poemas enformadores do livro deixe de o ser e se torne, mais
do que fragmento, um órgão: coração, pulmão, rim, fígado, etc. para que o corpo
todo adquira vida». (Xavier Zarco, in
prefácio à obra A Palavra (des)Velada de AG). Poderá dar a ideia ao leitor que
esta forma produzida da escrita poética, seja para facilitar a escrita ao
poeta. Mas não, digo-o enquanto autor. Esta forma do poema, assim organizada
por fragmentos que se encadeiam uns nos outros parecendo exigir a leitura
sequencial para se entender o poema no seu todo, permite, também, que a leitura
de cada fragmento possa ser entendida, por si só, como se poema fosse
independente dos demais. «A produção da obra, assim pensada e executada, é o
resultado de um labor levado à mais extrema das possibilidades do poeta e autor
da obra». (Ibidem)
3. A razão desta
trilogia com o subtítulo: o Silêncio, a Solidão, a Morte.
Dizia
Mário Quintana «Os poetas não são azuis nem
nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de
levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio — um silêncio que
subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível
silêncio em que escrevo e em que tu me lês.» Foi esse encontro com o silêncio,
o da noite na solidão do meu quarto vazio, o primeiro leit motiv que me impulsionou a escrever esta obra — no silêncio me
imaginei um ser-futuro-próximo a conviver com a solidão, aquela para a qual nos
projecta o silêncio da noite, do dia, do todo tempo futuro.
Imaginei-me a viver um silêncio de bronze próximo do
mármore que faz ricas esculturas mas também fúnebres tumbas. Imaginei-me, numa
interminável noite negra, o tal ser-futuro-próximo a um passo tão curto da
solidão. Assaltava-me aquele sibilino som que vinha do vazio inalcansável e
desconhecido e começava a dar forma a um estado de alma impérvio e nublado tão
próximo da solidão. Esse nó inexplicável na garganta que tolhe a voz, esse nó que
aperta o peito e estrangula, já não é o silêncio necessário às palavras
musicadas, mas o terrível silêncio a mostrar-nos campos de verdades que até aí
fingíamos olvidar. E
a solidão? Esse terrível medo de estar
sozinho está intimamente ligado à nossa percepção de quem somos. Quando
sentimos que não somos capazes de cuidar de nós mesmos, experienciamos angústia
ao refletir sobre a solidão.
Continua-se
a estar só com a noite / e o silêncio / — este silêncio que desliza / no seu inesgotável
serpentear réptil / avivando memórias / más memórias / do tempo ingloriosamente
perdido.
Aliado
ao silêncio, àquele silêncio de estarmos sozinhos e percepcionarmos, enfim,
quem somos e o que fomos, lavra sempre a solidão e,
fio
a fio / curva-se a vida à morte / como a luz / à sombra.
A
solidão é a condição inevitável do homem —
Pessoa dizia «Quando estou só reconheço que existo entre outros que são como eu sós».
E quantas vezes o homem se sente só, mesmo estando no meio da multidão (já
Álvaro de Campos o sentia)!... É nesta profundidade
enigmática da sombra que este chão escorregadio nos foge como o mar sem pé, que
balouçamos no íngreme abismo entre o céu e o indefinido e ao lado, mesmo ali ao
lado da solidão, o espectro da morte. Morte que afinal não é mais do que um
caminho para o indefinido, para o lugar nenhum.
Terrível
é amar o silêncio e a tempestuosa / solidão —
como areia fervente do deserto / terrível é ser-se pó —
e ter-se por companhia / todas as estrelas pálidas / na lacuna dum céu ausente.
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