16/12/19

ACERCA DE HÚMUS


(texto lido no dia do lançamento da obra, em Alcantarilha, Algarve)
Autor: Alvaro Giesta


1. Como nasce a obra:
Dizia Einstein «Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio - e eis que a verdade se me revela».
Parece surreal esta introdução de um poeta para começar um texto de apresentação de um livro de poesia, mostrando a necessidade do silêncio que o pai da teoria da relatividade tinha para chegar à verdade que justificava as suas descobertas físicas. Pois... é que esta quietude interior e exterior, este desligarmo-nos de tudo o que nos rouba à quietude interna e externa, é condição sine qua non a quem se entrega à função de descobrir e, quem escreve poesia, quem quer «penetrar surdamente no meio das palavras» (como já dizia Drummond) para descobrir o Belo, tem que ter a brancura do silêncio em si e entre si para fazer do poema a oração necessária.  Também comigo, enquanto poeta, quando me encontro perante o pânico da página em branco tentando encontrar a palavra para erguer o poema, esse pânico consome-me e duplica-se se todos os ruídos do mundo me atormentam e me perturbam. Penso e não encontro o verbo desejado...
          ...este pânico assalta-me, aflige-me o pensar e oiço a minha própria voz a dizer-me que não sou capaz de escrever o poema desejado. E não consigo criar nesse ruído de vozes interiores que me assaltam a alma por dentro. Deixo de pensar, mergulho nesse profundo silêncio tão acolhedor e logo a palavra se me revela nesta "missão" quase messiânica de escrever o poema. E foi assim ao longo de dezasseis noites, mergulhando nessa profundidade silenciosa da noite, que eu escrevi esta obra inicialmente muito longa, de poemas densos que depois transformei, que depois compus com aquilo a que eu chamo o trabalho do oleiro; levando-os quase ao osso, com o labor necessário a moldar a obra em obediência àquele desafio que a perfeição exige..
Nasceu esta obra num dia negro o dia em que minha mulher baixou, intempestivamente, ao Hospital Nossa Senhora do Rosário, do Barreiro, com aquilo que parecia ser uma doença rara e desconhecida no sangue. Assim, no dia 2 de Novembro do ano de 2017, o poema ganhou forma, cresceu e se formou ao longo de 16 noites em que ela foi sujeita a uma multiplicidade dificilmente quantificável de exames hematológicos que os dias eram passados, quase na íntegra, à cabeceira da doente, dando-se por concluído no dia 17 de Novembro, do mesmo ano, com o poema "soltar-se-á o grito de sob a terra dura / no eco da ressurreição". E, com este poema, esta certeza nas palavras dum grande escritor que também ele escreveu uma obra em prosa chamada HÚMUS Raúl Brandão: «a grande verdade e o destino final de cada um de nós, humanos sujeitos à finitude e em nós latente, tem uma certeza, desde o Silêncio à Solidão a Morte, que a cada dia teima em nos bater à porta.»
2. A estrutura da obra:
Húmus é um termo que remonta ao tempo dos antigos romanos, quando era usado para designar o solo como um todo. Apesar do húmus ser estável, ele não é estático, é dinâmico, uma vez que é formado constantemente a partir de resíduos vegetais e animais que são continuamente decompostos por micro-organismos. A importância do húmus para o solo é múltipla. Ele fornece nutrientes para as plantas, regula as populações de micro-organismos e torna os solos férteis. Consequentemente, o Húmus fornece vida. Metaforicamente, é o sítio fértil onde a palavra dormita ainda enterrada em sonhos; a palavra vai criando raízes nesse seio da terra quente e húmida onde se alimenta até nascer para a vida vida que não é mais que um simulacro, pois caminha para esse lugar outro, concreto mas indefinido: a morte.
Este título, embora pareça ser composto de vários poemas é, na realidade, um único poema, formado por seis dezenas de fragmentos, «trabalhando cada componente do poema da obra em prol da própria obra. Como se tratando-se de uma arquitectura em que cada um dos poemas enformadores do livro deixe de o ser e se torne, mais do que fragmento, um órgão: coração, pulmão, rim, fígado, etc. para que o corpo todo adquira vida». (Xavier Zarco, in prefácio à obra A Palavra (des)Velada de AG). Poderá dar a ideia ao leitor que esta forma produzida da escrita poética, seja para facilitar a escrita ao poeta. Mas não, digo-o enquanto autor. Esta forma do poema, assim organizada por fragmentos que se encadeiam uns nos outros parecendo exigir a leitura sequencial para se entender o poema no seu todo, permite, também, que a leitura de cada fragmento possa ser entendida, por si só, como se poema fosse independente dos demais. «A produção da obra, assim pensada e executada, é o resultado de um labor levado à mais extrema das possibilidades do poeta e autor da obra». (Ibidem)


3. A razão desta trilogia com o subtítulo: o Silêncio, a Solidão, a Morte.
Dizia Mário Quintana «Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.» Foi esse encontro com o silêncio, o da noite na solidão do meu quarto vazio, o primeiro leit motiv que me impulsionou a escrever esta obra no silêncio me imaginei um ser-futuro-próximo a conviver com a solidão, aquela para a qual nos projecta o silêncio da noite, do dia, do todo tempo futuro.
Imaginei-me a viver um silêncio de bronze próximo do mármore que faz ricas esculturas mas também fúnebres tumbas. Imaginei-me, numa interminável noite negra, o tal ser-futuro-próximo a um passo tão curto da solidão. Assaltava-me aquele sibilino som que vinha do vazio inalcansável e desconhecido e começava a dar forma a um estado de alma impérvio e nublado tão próximo da solidão. Esse nó inexplicável na garganta que tolhe a voz, esse nó que aperta o peito e estrangula, já não é o silêncio necessário às palavras musicadas, mas o terrível silêncio a mostrar-nos campos de verdades que até aí fingíamos olvidar. E a solidão? Esse terrível medo de estar sozinho está intimamente ligado à nossa percepção de quem somos. Quando sentimos que não somos capazes de cuidar de nós mesmos, experienciamos angústia ao refletir sobre a solidão.
          Continua-se a estar só com a noite / e o silêncio / este silêncio que desliza / no seu inesgotável serpentear réptil / avivando memórias / más memórias / do tempo ingloriosamente perdido.
Aliado ao silêncio, àquele silêncio de estarmos sozinhos e percepcionarmos, enfim, quem somos e o que fomos, lavra sempre a solidão e,
          fio a fio / curva-se a vida à morte / como a luz / à sombra.
A solidão é a condição inevitável do homem Pessoa dizia «Quando estou só reconheço que existo entre outros que são como eu sós». E quantas vezes o homem se sente só, mesmo estando no meio da multidão (já Álvaro de Campos o sentia)!... É nesta profundidade enigmática da sombra que este chão escorregadio nos foge como o mar sem pé, que balouçamos no íngreme abismo entre o céu e o indefinido e ao lado, mesmo ali ao lado da solidão, o espectro da morte. Morte que afinal não é mais do que um caminho para o indefinido, para o lugar nenhum.
          Terrível é amar o silêncio e a tempestuosa / solidão como areia fervente do deserto / terrível é ser-se pó e ter-se por companhia / todas as estrelas pálidas / na lacuna dum céu ausente.

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