Autor do texto: Alvaro Giesta
«Ninguém é louco sem escrever.
Ninguém se apaixona sem ser louco.
Ninguém é poeta sem amar...»
João Dórdio, Quando os loucos escrevem
in Não Faças Barulho. Fui Ali Gritar Que
Te Amava, Emporium Editora, 2018
A
poética de João Dórdio, em evidência na sua segunda publicação (1.º título
poético) "Não Faças Barulho. Fui ali gritar que te amava", construída
com despreocupação total por moldar na forja o verso em obediência à estrutura
que o define enquanto tal, bebe a inspiração em si próprio, melhor dizendo, não
sofre da angústia da influência de qualquer mestre adjacente, porquanto a
maneira como apreende a natureza do objecto literário e o reverte numa forma
poética, onde a luminosidade da intenção literária da prosa ou verso livre se transforma
em poesia, é exclusivamente sua.
A
sua poética é marcadamente romântica, objectiva pelo tema tratado - o amor -, é
idealista com certo desfoque do "eu-poético" que se desloca para o "objecto-poético"
(o "eu-outro" como parte integrante de si, o ser amado que em si e
nele se revê), onde se foca com inquietação permanente, quase de "maneira
louca" por "ver e ter" o ser amado em tudo quanto vê e tem - até no
"vazio, no silêncio, na ausência e na saudade".
A
sua prosa é poética, melhor dizendo, a sua prosa é verso livre quando se concilia
com a tonalidade da poesia, que também pretende ser prosa quando, em verso livre, está à mesma
distância da narrativa (e vice-versa). Uma e outra - prosa e poesia - completam-se dando ao discurso poético uma linguagem
só sua - a metalinguagem -, sem grande obliquidade, porque a
amplitude da imaginação do poeta João Dórdio, não procura nos tropos - ou
seja, no recurso à imagem, à metáfora, à sinestesia, às antíteses e a outras
figuras da linguagem, com que as palavras usurpam umas às outras o sentido que
lhes não pertence - outra intenção, que não seja, a de
mostrar um ego inquieto e insatisfeito (o do prosador-poeta ou do
poeta-prosador) à sua maneira e único no seu universo poético, que prima pela
intenção de atingir o universo de cada leitor transmutando-o, consigo, quando,
enquanto "poeta", sonha e transforma o sonho em palavras, quando,
enquanto "ser" apaixonado se interroga e se perde para além de si e
do que existe, para se encontrar em si, quando, enquanto "amante", se
aglutina, se transforma, se une em osmose perfeita com o objecto amado.
Mesmo
quando o autor classifica de "prosa" o seu 1.º livro, "O Suspiro
de Odin" - inserido pelo editor na colecção "Viagem
Filosófica", sem que este editor tivesse o cuidado exigido na leitura e
análise da obra para o rigor que, para tal classificação de "filosófica",
tais obras merecem - em abono das evidências, nos parece
que este autor, nesta obra, não laborou, propriamente, no domínio do
pensamento; é mais, e acima de tudo, na sua linguagem e método criativo, um
tangedor de instrumentos poéticos e estados líricos de alma, mesmo na prosa, quase
sempre, no princípio do onírico. É mais sonhador que pensador! Contudo, e
apesar desta narrativa onírica e poética da prosa, cada uma das duas obras aqui
referidas, ocupa o seu tempo e lugar próprio, com o forte atributo de, uma e
outra, poderem ser consideradas literárias.
De
cariz ficcional é este diálogo do "eu-lírico" com o "eu-outro"
(subentenda-se, a razão, a voz autocrítica da consciência) magnificamente
reproduzido na intenção do "eu-poético" se suicidar, enquanto poeta,
sem ter, ainda, demonstrado sê-lo por obra publicada. Talvez o autor pretenda
ironizar, porque ele sabe - tal como o personagem Odin, criado no
imaginário do prosador-poeta para ser o seu confidente, o seu confessor, o seu
conselheiro e salvador, o seu outro na sua voz da consciência a falar-lhe e a levá-lo à
razão - que começa o poeta, nesta obra em prosa, a afirmar-se
pelo sonho, pela interrogação enquanto ser apaixonado, pela presença dum ego
inquieto e insatisfeito, muito antes da obra, propriamente poética, nascer.
Dada
está a resposta, a nós que nos adentrámos na leitura da obra "O Suspiro de
Odin", sobre "quem é este Odin, a quem o poeta-prosador se recolhe, a
quem o prosador-poeta se confessa neste confiteor
do "eu" em sofrimento de amor, do amor em sofrimento, do
arrependimento de algo, da saudade, do desejo de regressar ao tempo antigo, do
desejo de mudança - este confiteor como se fosse desejo de redenção. Odin, não é outro senão ele mesmo, no antes e no agora, no antes e no depois, no tempo passado e no presente, onde o
prosador-poeta se agarra, como se fosse tábua de salvação, se recolhe como se
fosse porto de abrigo e se aceita ao aceitar as repreensões de Odin -
"Poeta, um dia vou retirar-te (...) estas vozes que te invadem a mente e
que te cortam o discurso".
Odin,
é a voz da razão do poeta, a própria voz da consciência do prosador-poeta que em breve
se vai dar a conhecer como poeta-prosador, a voz da consciência do "eu-lírico",
no já poeta em "O Suspiro de Odin", que se autoflagela nesta
transfiguração do "eu". O poeta, aqui fragmentado no "eu", que
ama e sofre, e no "eu-outro", que amou e sofreu, a voz da razão na figura do imaginário
e literária de Odin, que se auto analisa, se recrimina e se aprende.
[- Poeta, tão louco e pensativo outra vez?
- Penso e falo contigo, Odin. Para ver se me conheço e
me percebo. E por vezes encontro-me. (...)
- Queres voltar para mudar alguma coisa, Poeta? Queres
ainda tentar um novo rumo?
- Odin, rumos são só realmente rumos de mão dada. E
caminhos só são realmente caminhos quando a sombra que vemos em redor não é
sombra, é a nossa paixão que nos acompanha...]
A
vontade do poeta de voar sobre mares distantes e por horizontes longínquos na
ânsia de descobrir novos céus. É a oposição do efémero ao eterno e a angústia à
metafísica da existência humana:
[- Odin, tenta perceber a tortura de colocar nas letras
o que me está a acontecer...
- Poeta, existem falcões que levam as palavras sábias
vindas dessa tortura para que fiquem imortalizadas.]
E
a voz da consciência a alertar o poeta para a angústia da existência do ser,
inconfundível com a existência de Deus. - Aqui, em evidência, o princípio do
onírico e do sobrenatural.
[- Tu não és ainda um Deus. São as asas do falcão que te
confundem. Não é a tempestade, nem o respirar de quem te beija. São as asas...]
Façamos
aqui a separação e, ao mesmo tempo, a junção das águas na escrita de João
Dórdio, seja ela prosa poética ou verso em prosa:
Nesta
construção efabulatória, isto é, neste modelo gerado e criado pelo autor, não
por geração espontânea mas, alicerçado no seu grande poder imaginário,
característico da literatura, quer ao criar um geracional monólogo entre o "ele" antes, e o "ele" depois, (o sujeito-poético) na voz crítica do
personagem Odin, no livro em prosa "O Suspiro de Odin", quer no livro
em verso livre "Não Faças Barulho. Fui ali gritar que te amava", onde
concilia a poesia com a tonalidade da prosa num foco de inquietação permanente
entre o "eu" enquanto "sujeito-poético" e o
"eu-outro" (o ser amado), enquanto "objecto-poético" que em
si se aglutina numa osmose perfeita formando-se um só ser enquanto "sujeito-objecto-poético",
há-de explicar-se, certamente, a possível e previsível classificação no seu modus da escrita, se a explicarmos como
"origem própria" ou seja, de qualquer outro escritor diferente, desde
que igual a si não haja.
E
assim seja sempre, inovadora, longe da angustia da influência de seus
antecessores e diferente dos seus contemporâneos se firme com pendor literário,
assim sempre, com esta iluminação própria para que possa ser lido como se fosse
contemplação - poderá ser chamada, então, um dia, a partir desta
peculiaridade de escrever, em prosa e verso, se assim se mantiver, escrita Dordiana.
_________
Alvaro
Giesta é poeta,
ficcionista, estudioso do verso, coordenador literário e editor gráfico
[a minha crítica não pretende púlpitos, não se vende, nem compra aplausos; é apenas um mero exercício do (meu) pensar]
[a minha crítica não pretende púlpitos, não se vende, nem compra aplausos; é apenas um mero exercício do (meu) pensar]
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