20/09/19

REFLEXOS NO OLHAR de Natália Matos Gomes


falta-me ainda escrever
o poema inteiro - (...) o que sai da sombra
e cresce
inquieto e nómada nas páginas do in.sucesso.”
(AG em IDEÁRIOS)

Assim nos diz, numa outra sequência de ideias poético-filosóficas, embora na mesma mimesis, a autora Natália Matos Gomes em REFLEXOS no OLHAR, a sua obra de estreia nestas lides poéticas:
Como eu gostaria de inventar um poema novo: / Sem luar, nem sol, nem mar, / Nem epopeias, nem dias, nem mais... / Apenas um poema novo, / Onde coabitassem loucos e animais”.
Uma utopia, uma ideia fantástica, uma ideia que existe apenas no imaginário sem pretensões a ser real, onírica, uma pretensão com direito ao delírio, dinâmica, nunca estática mas sempre em ruptura com o presente...
loucos são os poetas onde apenas com eles, no seu imaginário romântico de sã loucura, coabitam harmoniosamente todos os seres à face da terra. Utopia - devaneio poético, o que se imagina como perfeito, como ideal, o almejado mas utópico, coisa que o poeta sabe irrealizável no real, inalcansável, mas que lhe alimenta a alma onírica; devaneio, ilusão...
...aqui, no imaginário poético da autora, o poema novo não é utópico: é fantasia, desejo, o que ambiciona alcançar, sonho - o maná de todos os poetas.
Para que serve a utopia? Galeano diz-nos em O Direito ao Delírio: “mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja.” Pergunto: onde mora a fronteira entre a utopia e o sonho? Se a utopia se refere à realidade perfeita, não atingível ou ainda não atingida e o sonho àquilo que se almeja, se tornou realidade ou pode acontecer que não se realize e não passe do sonho. Este aspirar ao imaginário não atingível ou ainda não atingido, ou o almejar o irrealizável ou de difícil realização e muitas vezes não realizado, não são, uma e outra coisa, sonho? Ou sonho é apenas essa faculdade potenciadora do imaginário de, durante o sono, o subconsciente despertar uma sequência de imagens e vivências, como defendia Freud?
Ou é, também, esta visão profética que as figuras da Antiguidade, da Idade Média, do Renascimento, etc, despertam na imaginação do poeta para o diálogo em práticas ecfrásticas? Porque não havemos de exercer nós, poetas, o jamais proclamado direito de sonhar, nós poetas, mais que qualquer outro ser existente na terra, quando as imagens silenciosas nos provocam no imaginário visões fantásticas que nos levam ao clímax e nos fazem escrever? Porque não delirarmos, ao menos uma vez na vida, quando escrevemos poesia? Que ascese seria essa, que exercício espiritual seria esse, se renunciássemos ao direito de imaginar, sonhando, se rejeitássemos o prazer de sonhar, se nos roubassem o direito ao sonho? Jorge de Sena, o poeta que a pátria esqueceu, dizia em seus versos “podeis roubar-me tudo: / as ideias, as palavras, / as imagens e também as metáforas” e eu acrescento em intertexto no poema “Na Visão dum Céu Distante” referindo-me ao tempo e ao sonho: podeis roubar-me isso tudo... e tudo o mais; / porém, a liberdade de sonhar / não roubareis. Jamais!
É esse o direito a que assiste e defende, em seus versos, em seus poemas ecfrásticos, Natália Matos Gomes. “Utopia” - o lugar imaginário, o lugar inexistente, logo, o não-lugar, o da sociedade perfeita na criação de Thomas Morus onde todos, em equilíbrio, fossem felizes; aqui, em Reflexos no Olhar, o convite ao sonho do poema novo proposto pela poeta, onde todos os seres possam caber, não é utópico. Diz-nos Natália Matos Gomes:
“Utopia? Não! É um sonho,  (um sonho)
Que se concretiza com as quimeras
Que, outrora em minhas manhãs,
As redimensionei no poema novo,
Que ora urge para todo o sempre.”
Mas, os vultos que a poeta evoca no “Poema Novo” - Bruegel e Bosch - nos quais a visão utópica é evidente, são apenas isso “utopia” e não o sonho da autora que o quer ver realizado, hoje e sempre, neste poema novo. É, apenas, visão utópica a de Pieter Bruegel, embora desejando ser razão eterna, torre de babel, rio de águas límpidas onde as crianças, nunca adultas, deixam aos adultos o sério aviso para que não desperdicem a vida; são apenas utopias, as do imaginário de Hieronymus Bosch que há cinco séculos nos brindou com obras alucinantes em que pretendia, com os temas, despertar o interior da alma humana. Mas a autora não quer, não vive de utopias - sonhos, sim, utopias, não! Sonhos - aqueles que nascem com ela todas as manhãs, que redimensiona no poema novo para todo o sempre.
E convida o leitor a sonhar este seu sonho, a comungar, com ela, a força do seu poema novo:
“Venham comigo, venham, / Escrever um poema novo // Aqui não. Ninguém fica de fora!”
Evoca, a autora, pela écfrase, (“evoca, lembra” e não o “invocar, apelar como ajuda”) no poema que abre a obra, como se fosse preâmbulo, vultos geniais de indiscutível valor na pintura de Flandres e Holanda dos séculos XV (Bosch) e XVI (Bruegel); e, também,  numa incursão arrojada aludindo a esse velho mito da caverna do período clássico da Grécia Antiga - velho, mas sempre actual pela grande verdade que encerra - com Platão presente no poema “Caverna Oblíqua”; e outros tantos vultos da pintura renascentista desde Itália a Flandres e Países Baixos, ao longo de Reflexos no Olhar como: Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Nicolaes Maes, Simon Vlieger; depois, num salto quase em fim de livro não deixa de percepcionar Marc Chagall, esse pintor russo de vanguarda modernista dos séc. XIX e XX, fortemente influenciado pelo cubismo e surrealismo, e fazer das cores da lenda de Lilith esse encantatório poema “Expulsão de Lilith”, a tal figura de lenda hebraica “in.criada por Deus”, antes de Eva, mas originada de um espírito maligno tempestuoso e que mais tarde se tornou identificada com a noite, e foi expulsa do Paraíso.
Podemos dizer, da força dos poemas aqui deixados, que Natália Matos Gomes é uma estudiosa do clássico, evidenciada nos seus versos, por aquilo que bem conhece dos representantes do Renascimento. O estudo das obras pictóricas ou escultóricas em que se debruça a poeta, ou o olhar  sobre os lugares por onde passa, transpondo para o verso aquilo que a visão lhe dita em palavras para escrever grande parte desta obra, viajou por Toscana, Florença e Siena, estendeu-se, depois, da Rússia à Europa Ocidental (Tchecoslováquia e Alemanha 'com Kafka', Países Baixos e França), para terminar neste recanto da Península Ibérica, chamado Portugal, com “Estátua”, aguarela do serigrafista deste século, Paulo Ossião.
Exímia na écfrase (“ekphrasis” substantivo grego traduzido para o termo latino “descriptio” que tem como objectivo primeiro a produção pelo método discursivo (através da palavra) da visão detalhada de algo (objecto, pessoa, pintura, estátua, lugar ou acontecimento), a que Aristóteles chamou “a clareza, a visão clara e distinta”, e a que Cícero acrescentou com o emprego do vocábulo latino “euidentia” (evidência),  é a descrição pela palavra das suas particularidades sensíveis ou inventadas pela fantasia, que o objecto observado desperta no ouvinte, no leitor, neste caso da poeta Natália que observa, que vê, que lê com os olhos da imaginação, e a passa ao papel usando a écfrase, o diálogo, em seus versos. Exímio é o/a poeta que usa a “palavra visual” para dar voz à obra de arte: saber exprimir os sentimentos que lhe despertam as feições das pinturas e esculturas ou os lugares por onde passa, saber, pela ousadia da imaginação, dialogar com as plásticas das imagens que a chamam. São práticas ecfrásticas da poesia moderna e contemporânea, próximas da tradição grega - numa relação íntima entre a palavra e a imagem. 
Fascinante esta antiga técnica - a ekphrasis - que evoca o poder da imagem silenciosa, provocando no imaginário da poeta Natália Matos Gomes uma visão fantástica, levando-a ao clímax da descrição através da palavra. A beleza dos poemas ecfrásticos que a obra tem é tal que, descrevê-los requeria mais que as duas páginas de papel A5 que o prefácio permitia, razão pela qual aqui me debrucei e em tempo oportuno e com mais profundidade nesta pequena mas grande obra poética. 


Barreiro, 20 de Setembro de 2019
Alvaro Giesta

Poeta 

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