“falta-me ainda escrever
o poema inteiro - (...) o que sai da sombra
e cresce
inquieto e nómada nas páginas do
in.sucesso.”
(AG em IDEÁRIOS)
Assim
nos diz, numa outra sequência de ideias poético-filosóficas, embora na mesma mimesis, a autora Natália Matos Gomes em REFLEXOS no OLHAR, a sua obra de estreia nestas lides poéticas:
“Como eu gostaria de inventar um poema novo:
/ Sem luar, nem sol, nem mar, / Nem epopeias, nem dias, nem mais... / Apenas um
poema novo, / Onde coabitassem loucos e animais”.
Uma
utopia, uma ideia fantástica, uma ideia que existe apenas no imaginário sem
pretensões a ser real, onírica, uma pretensão com direito ao delírio, dinâmica,
nunca estática mas sempre em ruptura com o presente...
loucos
são os poetas onde apenas com eles, no seu imaginário romântico de sã loucura,
coabitam harmoniosamente todos os seres à face da terra. Utopia - devaneio poético, o que se
imagina como perfeito, como ideal, o almejado mas utópico, coisa que o poeta
sabe irrealizável no real, inalcansável, mas que lhe alimenta a alma onírica;
devaneio, ilusão...
...aqui,
no imaginário poético da autora, o poema
novo não é utópico: é fantasia, desejo, o que ambiciona alcançar, sonho - o maná de todos os poetas.
Para
que serve a utopia? Galeano diz-nos em O Direito ao Delírio: “mesmo que não
possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que
queremos que seja.” Pergunto: onde
mora a fronteira entre a utopia e o sonho? Se a utopia se refere à realidade
perfeita, não atingível ou ainda não atingida e o sonho àquilo que se almeja,
se tornou realidade ou pode acontecer que não se realize e não passe do sonho. Este aspirar ao imaginário não atingível ou ainda não atingido, ou o almejar o irrealizável
ou de difícil realização e muitas vezes não realizado, não são, uma e outra coisa,
sonho? Ou sonho é apenas essa faculdade potenciadora do imaginário de, durante
o sono, o subconsciente despertar uma sequência de imagens e vivências, como
defendia Freud?

É
esse o direito a que assiste e defende, em seus versos, em seus poemas
ecfrásticos, Natália Matos Gomes. “Utopia” - o lugar imaginário, o lugar inexistente, logo, o
não-lugar, o da sociedade perfeita na criação de Thomas Morus onde todos, em
equilíbrio, fossem felizes; aqui, em Reflexos no Olhar, o convite ao sonho do poema novo proposto pela poeta, onde
todos os seres possam caber, não é utópico. Diz-nos Natália Matos Gomes:
“Utopia? Não! É um
sonho, (um
sonho)
Que se concretiza com
as quimeras
Que, outrora em minhas
manhãs,
As redimensionei no
poema novo,
Que ora urge para todo
o sempre.”
Mas,
os vultos que a poeta evoca no “Poema Novo” - Bruegel e Bosch - nos quais a visão utópica é evidente, são apenas
isso “utopia” e não o sonho da autora que o quer ver realizado, hoje e sempre,
neste poema novo. É, apenas, visão
utópica a de Pieter Bruegel, embora desejando ser razão eterna, torre de babel,
rio de águas límpidas onde as crianças, nunca adultas, deixam aos adultos o
sério aviso para que não desperdicem a vida; são apenas utopias, as do
imaginário de Hieronymus Bosch que há cinco séculos nos brindou com obras
alucinantes em que pretendia, com os temas, despertar o interior da alma
humana. Mas a autora não quer, não vive de utopias - sonhos, sim, utopias, não! Sonhos - aqueles que nascem com ela
todas as manhãs, que redimensiona no poema
novo para todo o sempre.
E
convida o leitor a sonhar este seu sonho, a comungar, com ela, a força do seu poema novo:
“Venham
comigo, venham, / Escrever um poema novo // Aqui não. Ninguém fica de fora!”
Evoca,
a autora, pela écfrase, (“evoca, lembra” e não o “invocar, apelar como ajuda”)
no poema que abre a obra, como se fosse preâmbulo, vultos geniais de
indiscutível valor na pintura de Flandres e Holanda dos séculos XV (Bosch) e
XVI (Bruegel); e, também, numa incursão
arrojada aludindo a esse velho mito da caverna do período clássico da Grécia
Antiga - velho, mas sempre
actual pela grande verdade que encerra - com Platão
presente no poema “Caverna Oblíqua”; e outros tantos vultos da pintura
renascentista desde Itália a Flandres e Países Baixos, ao longo de Reflexos no
Olhar como: Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Nicolaes Maes, Simon Vlieger;
depois, num salto quase em fim de livro não deixa de percepcionar Marc Chagall,
esse pintor russo de vanguarda modernista dos séc. XIX e XX, fortemente
influenciado pelo cubismo e surrealismo, e fazer das cores da lenda de Lilith
esse encantatório poema “Expulsão de Lilith”, a tal figura de lenda hebraica
“in.criada por Deus”, antes de Eva, mas originada de um espírito maligno tempestuoso e que mais tarde se tornou
identificada com a noite, e foi expulsa do Paraíso.
Podemos
dizer, da força dos poemas aqui deixados, que Natália Matos Gomes é uma
estudiosa do clássico, evidenciada nos seus versos, por aquilo que bem conhece
dos representantes do Renascimento. O estudo das obras pictóricas ou
escultóricas em que se debruça a poeta, ou o olhar sobre os lugares por onde passa, transpondo
para o verso aquilo que a visão lhe dita em palavras para escrever grande parte
desta obra, viajou por Toscana, Florença e Siena, estendeu-se, depois, da
Rússia à Europa Ocidental (Tchecoslováquia e Alemanha 'com Kafka', Países
Baixos e França), para terminar neste recanto da Península Ibérica, chamado
Portugal, com “Estátua”, aguarela do serigrafista deste século, Paulo Ossião.
Exímia
na écfrase (“ekphrasis” substantivo
grego traduzido para o termo latino “descriptio”
que tem como objectivo primeiro a produção pelo método discursivo (através da
palavra) da visão detalhada de algo (objecto, pessoa, pintura, estátua, lugar
ou acontecimento), a que Aristóteles chamou “a clareza, a visão clara e distinta”, e a que Cícero acrescentou
com o emprego do vocábulo latino “euidentia” (evidência), é a descrição pela palavra das suas
particularidades sensíveis ou inventadas pela fantasia, que o objecto observado
desperta no ouvinte, no leitor, neste caso da poeta Natália que observa, que
vê, que lê com os olhos da imaginação, e a passa ao papel usando a écfrase, o
diálogo, em seus versos. Exímio é o/a poeta que usa a “palavra visual” para dar
voz à obra de arte: saber exprimir os sentimentos que lhe despertam as feições
das pinturas e esculturas ou os lugares por onde passa, saber, pela ousadia da
imaginação, dialogar com as plásticas das imagens que a chamam. São práticas
ecfrásticas da poesia moderna e contemporânea, próximas da tradição grega - numa relação íntima entre a palavra e
a imagem.
Fascinante
esta antiga técnica - a ekphrasis - que evoca o poder da imagem silenciosa, provocando
no imaginário da poeta Natália Matos Gomes uma visão fantástica, levando-a ao
clímax da descrição através da palavra. A beleza dos poemas ecfrásticos que a
obra tem é tal que, descrevê-los requeria mais que as duas páginas de papel A5 que o prefácio permitia, razão pela qual aqui me debrucei e
em tempo oportuno e com mais profundidade nesta pequena mas grande obra poética.
Barreiro, 20 de Setembro de 2019
Alvaro
Giesta
Poeta