«Um poeta é, acima de tudo, um artista.»
- assim
escrevia Vitorino Nemésio de Eugénio de Castro.
Também em Xavier
Xarco, Poeta, a "matéria-prima" manda mais que a inspiração. Não se
procure nele só o Belo; também as coisas da Natura e do Homem têm, em sua obra,
Vida. A palavra em Zarco, impressa na pele do poema, "engravida a
terra"; molda-a na pedra que cinzela e com ela enche e acorda rios de
silêncio - cheias
ficam as suas margens com galerias prodigiosas de sons onde, cada palavra, tem
o seu lugar próprio no seu devido tempo de criação.
Como o
poeta nos diz «o poema não há / vai-se moldando / em cada um dos fragmentos que
ao silêncio / furto para ao silêncio ofertar».
De sua
extensa obra - mais de
trinta títulos publicados - reconhecida
com mais de uma dezena de prémios de poesia nacionais, ficam aqui alguns fragmentos
de algumas obras do autor a quebrar o silêncio do tempo, neste tempo do
silêncio em que poetas vivos, da estirpe de Xavier Zarco, ao silêncio do
esquecimento são remetidos pelas instituições que têm o sacrosanto dever de os
divulgar.
O GUARDADOR
DAS ÁGUAS
- Prémio
de Poesia Vítor Matos de Sá, 2004
Era de noite.
De breu se
vestiam os montes,
a face do céu.
Por onde
vagueasse o
olhar,
velas
cintilavam
nas cortinas
do cansaço
que os dedos
do vento
acariciavam.
*
Era longa,
a noite.
Manta tecida e
estendida
pelos campos
que
desconhecidas mãos
regiam
ao ritmo das
estações.
*
(...)
*
O guardador
das águas
mergulhava
serenamente a
cabeça
entre as mãos,
de cotovelos
crivados,
suspensos
nas ombreiras
dos joelhos.
*
(...)
*
No cessar de
cada tarde,
o guardador
recolhia
os artefactos
do rigor
com que tecia
o destino das águas.
Sentava-se
junto à árvore
que plantara
ainda criança.
Seu olhar
repousava
no limiar do
horizonte.
Amanhã,
sabia,
o sol iria
brilhar.
*
(...)
_______________________
NOVE CICLOS
PARA UM POEMA
-
Prémio Literário Lusofonia, 2007
Minha Pátria é a lingua portuguesa
Bernardo Soares
Mereço o meu pedaço de chão
Agostinho Neto
1.
não há
palavras proibidas
todos os sons
são livres de voar
2.
ao longo dos
anos
semeei versos
como passos no
caminho
que chamei de
meu
alguns ainda
os trago comigo
são o meu
legado
o meu quinhão
meu naco de
chão
3.
um dia
colherei da primavera
as fragrâncias
dos versos
mais subtis
como uma folha
em voo
no pico do meu
outono
neste chão que
conquistei
4.
mereço este
meu chão
esta palavra
pedra erguida
que afronta o medo o mar
que teima em
convocar
tambores
de ritos
ancestrais
de aras onde o
cordeiro se entregava
ao gume do
silêncio
mereço este
meu chão esta palavra
este meu pomo
de liberdade
(...)
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O FOGO A CINZA
- Prémio de Poesia Manuel Maria B. Bocage, 2004
moldava o pai o fogo das palavras
o filho observava o acordar
da chama
o murmúrio do fole
ancestral era o gesto soletrado
as sílabas do malho
no cântico da bigorna
*
serena é a arte do sol
o preciso conjugar
do nascimento e da morte
o bailado das sombras
ou a mesura do gesto
com que as mãos o olhar e a alma profanam
os segredos dos deuses
*
na forja a lenta combustão
do silêncio
entre risos e acordes
libertos da memória das árvores
línguas de fogo lambendo
a face das pedras
esboçando a ciência da música
*
alada a palavra
como corpo da faúlha
desenhando na noite
a memória de um cometa
ou o olhar
amplo aberto ao sonho
da criação da forma de um poema
*
forte o sopro no côncavo das mãos
repousa a vontade
o ritmo descoberto
no arco que se desenha pelo espaço
cada palavra é um corpo
moldado e pronunciado
ao rigor dos sentidos
(...)
*
no corpo do poema
planta-se rigorosa a flor de maio
esta brilha
na conjugação do templo
reaberta
a fornalha espera
a pétala primeira de uma estrofe
(...)
______________________
O LIVRO DO REGRESSO
-
Prémio de Poesia Raul de Carvalho, 2005
é outro o olhar que nasce
no poente
embora de asas feridas
cansadas
voa rente ao espanto
ou da semente
de onde outrora partira
*
no dorso do vento
pelos caminhos do monte
viajam frágeis vestígios
de um cântico
ou de um poema
de súbito bordado a oiro
pelas bátegas
céleres mas suaves
do sol
*
a distância
vestia-se de xisto
conjugava o verbo da neve
ou da chuva
dentro
a madeira gritava
ainda
o esplendor do fogo
ou talvez uma história
uma criança morrendo
ao redor de um poema
(...)
*
deitei-me
longa fora a viagem
as estrelas como lençol estendido
aquecendo o olhar
e esta pedra
sussurrando imagens
como a almofada da infância
se o olhar fechasse
sabia que seria feliz
(...)
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