21/08/18

UM POEMA - UM POETA DE ELEIÇÃO: Xavier Zarco


«Um poeta é, acima de tudo, um artista- assim escrevia Vitorino Nemésio de Eugénio de Castro.

Também em Xavier Xarco, Poeta, a "matéria-prima" manda mais que a inspiração. Não se procure nele só o Belo; também as coisas da Natura e do Homem têm, em sua obra, Vida. A palavra em Zarco, impressa na pele do poema, "engravida a terra"; molda-a na pedra que cinzela e com ela enche e acorda rios de silêncio - cheias ficam as suas margens com galerias prodigiosas de sons onde, cada palavra, tem o seu lugar próprio no seu devido tempo de criação.
Como o poeta nos diz «o poema não há / vai-se moldando / em cada um dos fragmentos que ao silêncio / furto para ao silêncio ofertar».


De sua extensa obra - mais de trinta títulos publicados - reconhecida com mais de uma dezena de prémios de poesia nacionais, ficam aqui alguns fragmentos de algumas obras do autor a quebrar o silêncio do tempo, neste tempo do silêncio em que poetas vivos, da estirpe de Xavier Zarco, ao silêncio do esquecimento são remetidos pelas instituições que têm o sacrosanto dever de os divulgar.  


O GUARDADOR DAS ÁGUAS
- Prémio de Poesia Vítor Matos de Sá, 2004

Era de noite.

De breu se vestiam os montes,
a face do céu.

Por onde
vagueasse o olhar,
velas cintilavam
nas cortinas do cansaço

que os dedos do vento
acariciavam.
          *
Era longa,
a noite.

Manta tecida e estendida
pelos campos

que desconhecidas mãos
regiam

ao ritmo das estações.
          *
(...)
          *

O guardador das águas
mergulhava
serenamente a cabeça
entre as mãos,
de cotovelos crivados,
suspensos
nas ombreiras dos joelhos.
          *
(...)
          *
No cessar de cada tarde,
o guardador recolhia
os artefactos do rigor
com que tecia o destino das águas.

Sentava-se junto à árvore
que plantara
ainda criança.

Seu olhar repousava
no limiar do horizonte.

Amanhã,
sabia,
o sol iria brilhar.
          *
(...)

_______________________

NOVE CICLOS PARA UM POEMA
- Prémio Literário Lusofonia, 2007

Minha Pátria é a lingua portuguesa
Bernardo Soares

Mereço o meu pedaço de chão
Agostinho Neto


          1.

não há palavras proibidas
todos os sons são livres de voar

          2.

ao longo dos anos
semeei versos
como passos no caminho
que chamei de meu

alguns ainda os trago comigo
são o meu legado
o meu quinhão

meu naco de chão

          3.

um dia colherei da primavera
as fragrâncias dos versos
mais subtis

como uma folha em voo
no pico do meu outono

neste chão que conquistei

          4.

mereço este meu chão
esta palavra
pedra erguida que afronta o medo o mar
que teima em convocar
tambores
de ritos ancestrais
de aras onde o cordeiro se entregava
ao gume do silêncio

mereço este meu chão esta palavra
este meu pomo de liberdade
(...)



O FOGO A CINZA
- Prémio de Poesia Manuel Maria B. Bocage, 2004

moldava o pai o fogo das palavras
o filho observava o acordar
da chama
o murmúrio do fole

ancestral era o gesto soletrado
as sílabas do malho
no cântico da bigorna
          *
serena é a arte do sol
o preciso conjugar
do nascimento e da morte
o bailado das sombras

ou a mesura do gesto
com que as mãos o olhar e a alma profanam
os segredos dos deuses
          *
na forja a lenta combustão
do silêncio
entre risos e acordes
libertos da memória das árvores

línguas de fogo lambendo
a face das pedras
esboçando a ciência da música
          *
alada a palavra
como corpo da faúlha
desenhando na noite
a memória de um cometa
         
ou o olhar
amplo aberto ao sonho
da criação da forma de um poema
          *
forte o sopro no côncavo das mãos
repousa a vontade
o ritmo descoberto
no arco que se desenha pelo espaço

cada palavra é um corpo
moldado e pronunciado
ao rigor dos sentidos
(...)
          *
no corpo do poema
planta-se rigorosa a flor de maio
esta brilha
na conjugação do templo

reaberta
a fornalha espera
a pétala primeira de uma estrofe
(...)
______________________

O LIVRO DO REGRESSO
- Prémio de Poesia Raul de Carvalho, 2005

é outro o olhar que nasce
no poente

embora de asas feridas
cansadas

voa rente ao espanto
ou da semente
de onde outrora partira
          *
no dorso do vento
pelos caminhos do monte
viajam frágeis vestígios
de um cântico

ou de um poema
de súbito bordado a oiro
pelas bátegas
céleres mas suaves
do sol
          *
a distância
vestia-se de xisto
conjugava o verbo da neve
ou da chuva

dentro
a madeira gritava
ainda
o esplendor do fogo

ou talvez uma história

uma criança morrendo
ao redor de um poema
(...)
          *
deitei-me
longa fora a viagem

as estrelas como lençol estendido
aquecendo o olhar

e esta pedra
sussurrando imagens
como a almofada da infância

se o olhar fechasse
sabia que seria feliz
(...)






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