Alvaro Giesta (todas as folhas têm chão)
Na aragem crepuscular dos
longos dias de bruma das nossas vidas, erguias-te tu, trazendo no gesto mais um
conselho - “Não andes depressa”, dizias-me. “Olha que a vida,
depressa se perde na curva da estrada”. Tu nunca andavas depressa. Nunca tinhas
pressa em partir. Recordo-me das zangas que a mãe tinha contigo quando se
tratava da ida a qualquer sítio. Nunca tinhas pressa em sair de casa, ainda que
te aprestasses a fazê-lo duas horas antes dos outros. Eras sempre o último a
sair.
Hoje, sou eu que te peço - não
tenhas tanta pressa em partir, deixa-me chegar antes que partas. E, por isso, a
carrinha voava por aquela velha estrada a mais de cem quilómetros por hora,
quando as curvas da estrada e o próprio piso mal garantiam segurança a metade
dessa velocidade. Mas eu tinha que chegar antes que a morte chegasse até ti.
Antes que retirassem os tubos que entravam em ti, sem se certificarem que era
mesmo o último sopro de vida. Era nestas alturas que eu me lembrava da tua
advertência “não andes depressa, olha que a vida depressa se perde na curva da
estrada”. Pois é, qualquer vida se perde em qualquer curva de qualquer estrada.
Há armadilhas na vida que nos armam com as palavras mais meigas que é possível
imaginar, que não são precisas ser curvas para nos fazerem perder na vida.
direitos de imagem: José Fernando Delgado Mendonça |
[Onde estiveste tu, hoje,
meu pai? Sim, onde estiveste tu, hoje, que não te encontrei no meu sonho?
Procurei-te nos quatro cantos, para lá da memória, os cantos que só nós
conhecemos, e não te encontrei. Apenas essa cama aberta e os tubos todos
pendurados à espera de ti, e tu não estavas. Para onde te levaram? Procurei-te
nos quatro cantos da noite, e tu não estavas. Hoje fugiste do meu sonho. Sinto
hoje no peito um nó tão apertado. Exactamente isso. Um nó no peito. Pé a fundo,
no acelerador, imprimindo à carrinha, naquela estrada cheia de curvas apertadas
e perigosas, quase o dobro da velocidade horária permitida por lei. Adivinhava
que algo não corria bem. Aquele nó apertado no peito era uma campainha de
advertência. Funcionava como um alarme.]
Estacionei à pressa
debaixo da sombra acolhedora dos plátanos, e desembaracei-me dos carreiros sinuosos
entre canteiros do jardim, saltando, em correria, as sebes e atravessando a
relva, com uma olhadela de respeito ao busto do Dr. Sousa Martins, sempre tão rodeado
de velas e oferendas, ali depositadas pelos seus crentes. Era ali que eu,
naquelas tuas breves paragens de vida que te ocorriam desde que ali chegaste,
ia pedir ao venerando médico – que dizem curar como os santos e que, enquanto
em vida, se esqueceu dos seus problemas, das suas angústias, das suas
frustrações, para acudir aos deserdados da saúde e do amor – que te desse, que
mais não fosse, um dia a mais de vida. Nestas alturas as lágrimas rebentavam-me
involuntariamente dos olhos e corriam-me pela face sem secarem no seu percurso.
Hoje, se fosses vivo, meu pai, contava-te no estado em que te vi no meio
daquela ampla e fria enfermaria, onde mais seis ou sete corpos jaziam quase sem
vida.
Rodeavam-te o médico e os
enfermeiros. Eu tinha livre entrada a qualquer momento, naquela enfermaria,
mercê da amizade que aí granjeei com um enfermeiro, ao que parece colega de
curso da minha irmã, a tua filha. Já todos os profissionais de saúde me
conheciam. Mas, naquele momento, a situação era tão crítica e tão delicada que
me mandaram sair e esperar notícias, do teu estado, no corredor. “Está quase a
apagar-se”, murmurou-me o enfermeiro.
Nu. Estavas completamente nu. Nunca
assim vi um corpo tão esquelético. Nem quando andava pelas terras mais
longínquas do leste de Angola onde as pessoas famintas, especialmente crianças,
nem se conseguiam levantar da esteira, tal o estado de fraqueza e magreza em
que se encontravam. Entre tu e eles duas diferenças apenas - a cor
da pele e o enxame de moscas que zuniam no rosto daqueles. Tu eras só pele e
osso e o enxame que rodopiava à tua volta, eram o corpo clínico da enfermaria.
Tentavam reanimar-te. E tu, preso a este mundo por um ténue fio de vida, parece
que me adivinhaste, ali. Abriste os olhos. Os lábios, numa tentativa difícil
mal se abriram e balbuciaste algo ininteligível. Adivinhei-te o que querias
dizer. Só eu te entendia nessas alturas. Apenas eu sabia ler o que os teus
lábios já não conseguiam dizer, mas o teu olhar me transmitia.
“Ainda
não quero morrer... murmuravam num leve sopro de vida os teus oitenta e oito anos”,
e novamente o meu nome pronunciado a custo; era o que sempre me dizias naqueles
momentos mais críticos, quando ainda havia alguma lucidez em ti.
Segurei, antes de sair a pedido do
enfermeiro, por breves segundos a tua mão direita na minha. Como quando te
pedia a bênção e a beijava. Para a fragilidade do teu corpo, senti que
agarraste com demasiada força a minha mão. Os teus dedos ósseos, demasiado
magros e rudes, não me largavam, como se encontrasses, na minha mão, o fio
condutor e seguro para te agarrares à vida. Naquele momento, eu era a tua vida;
a prece, ao divino, que eu apenas implorava em pensamento, a incógnita e a
incerteza - a equipe médica, a difícil tábua de salvação. E
lembrei-me daquelas palavras tão sábias do doutor Sousa Martins em quem até eu
acreditava que fazia milagres, apesar de ignorar estas crendices - “A
noção do infinito é como a luz do sol. Uma e outra, temos de aproveitá-las
diluídas.”. Sábias palavras, as de tal mestre! Tive que sair. Desta vez não
foram precisas palavras. Um breve arquear de sobrolho, do enfermeiro, para o
compreender que tinha mesmo que sair. O médico, na tentativa de te salvar, não
queria ali intrusos.
No corredor cruzei-me com o velho
padre, porventura chamado à pressa para, mais uma vez, te ministrar o
sacramento da extrema-unção, sempre adiada. Desta vez parecia-me que, até, a
contragosto dele. Naquele puído fato cinzento, em passos hesitantes e incertos,
o apóstolo de Pedro num corpo seco e gasto encimado por um rosto cadavérico e
sem expressão e, na voz cava, a mesma conversa murmurada de sempre, ao passar
por mim. “Deus-Pai todo poderoso, não
se esquece dos filhos que ama, tem sempre, para os bons, um lugar reservado no
céu. Está a pôr à prova a sua fé!” - Estranha forma desse Deus, desse teu
Deus se lembrar dos filhos “bons” que ama! Fazê-los sofrer, para seu gáudio e
prazer, para depois lhes reservar um lugar no seu céu?!
Com os olhos marejados pelas
lágrimas, entendi, agora, aquele nó apertado, no peito, que me apoquentou
durante o percurso de mais de cem quilómetros, desde casa, onde ficara a mãe
entregue ao seu pranto e orações, até ti. Estavas em debate, duro, com a morte!
Ou, talvez, com ambas – com a morte e com a vida.
Fui agarrar-me ao busto daquele
médico que dizem ser santo, e conversei com ele durante longos minutos.
Pedi-lhe para te não deixar partir, ainda, pelo menos sem conheceres uma neta
que estava para chegar, vida da tua única filha - que afinal não chegaste a conhecer,
porque partiste antes de ela nascer. Rodeado de velas acesas, que os crentes do
médico milagreiro continuamente renovavam, tive um momento em que senti que me
ouvia. O coração dizia-me, disse-me nessa altura, por breves segundos, que a
vida ainda não fora desta vez que te deixara. Senti que voltavas desse poço
negro para onde algo estranho te puxava, nessas alturas, como que impulsionado
por uma força centrípeta no sentido inverso àquela força centrífuga que te
afundava, sempre, nesse vazio. E corri para a porta da enfermaria, saltando
mais uma vez as sebes dos espaços ajardinados, agora por outro motivo – a
esperança na vida – para não me demorar nos meandros dos floridos canteiros. No
corredor cruzei-me, outra vez, com o apóstolo da igreja que me murmurou, como
se a descontento, por se sentir mais uma vez ludibriado pela morte, ou antes,
por saber que mais uma vez tu trocaste as voltas à morte, e com um falso
sorriso, referindo-se a ti - “Enganou-me, outra vez!”. Oh Deus
dos crentes, deixa que te lastime o triste apóstolo que teu filho deixou em teu
nome aqui na terra! Espreitei. Lá ao fundo o enfermeiro. Vi que te amarrava os
braços à cama. Por segundos ergueu o polegar direito, ao céu, em sinal de que
voltavas à vida. Senti-lhe, debaixo da máscara que lhe cobria o rosto, o
sorriso de vitória. Aventurei-me e avancei até aos pés da cama - “Sabe,
é preciso…”, justificava o gesto de te amarrar os braços com ligaduras “…é que,
quando volta a si, arranca tudo”. Referia-se às agulhas que te injectavam no
corpo os ténues sopros de vida. Abriste os olhos - “És tu, meu filho?”, sempre chamando-me
pelo nome e, logo de seguida - “Vi a morte à minha frente.
Empurrava-me para um buraco negro, que depois era tão luminoso que essa luz me
cegava. Não me deixes morrer meu filho.”
[Há momentos de reflexão
de que não nos podemos alhear. A morte, por exemplo, - vemo-la
como valor ou como inevitabilidade? Difícil é falar sobre esta imensa
desconhecida. Desconhecida, não porque não saibamos que ela existe e que está a
cada momento presente em nós e à espera da hora certa para nos “naufragar num
mar sem fundo” embora preferindo, antes, ignorarmos a sua existência, mas
desconhecida porque é difícil arguir sobre todas as teorias da morte. Da sua
existência não nos podemos alhear. Ela é inevitável - porque
somos finitos e porque temos um prazo de existência física. Como nascemos,
morremos, e é nesse espaço, entre o nascer e o morrer, que nos relacionamos,
enquanto objectos individuais. Atormenta-nos o desconhecido, o que está para
além do terrível fenómeno real designado por morte. Esta ausência física para
os que cá ficam à espera da sua vez, transforma-se num santuário de silêncio e
de encontro com a terrífica solidão em que mergulham. Tudo se desune, tudo se
destrói neste universo fluente se não houver uma relação de amor entre o ser e
o criador. Este criador, aqui referido, não é o ser espiritual, supremo e
desconhecido, que está para além de nós. Este criador é aquele que nos deu o
ser, aquele de quem somos carne da sua carne, carne da mesma carne.
Nesta dinâmica criativa e criadora, o
amor é a única força capaz de enfrentar sem temor e sem medo o imenso
desconhecido, porque o amor é poderoso, dignifica, vai para além da mera
invenção poética, vai para além do simples acto de compreender o semelhante. O
amor é a dimensão superior que transcende as dimensões do tempo e do espaço. E
que, sustentado pela fé, prolonga o mistério da (in)finitude da morte, deste
tempo e deste espaço, num outro espaço e num outro tempo a que chamamos o
eterno.]