por: Alvaro Giesta, poeta
É
uma obra de interpretação nada fácil que me desperou a curiosidade, o desejo de
a estudar...
obra de certo modo arrojada, no
sentido em que sendo a sua estreia nas publicações a solo se aplica em
construir com certa arte e mestria poemas ecfrásticos, coisa incomum nos novos
poetas — quando digo “novos” refiro-me
àqueles que bastas vezes publicam nas redes sociais.
Obra
sobre a qual não posso deixar de dar um recado crítico à coordenação e a quem
fez a edição, sobre como a oba foi estruturada. Olhemos para a obra: abre com
esse poema que tem por título “Poema Novo”
— “Como eu gostaria de inventar um poema
novo: / Sem luar, nem sol, nem mar, / Nem epopeias, nem dias, nem mais... / Apenas
um poema novo, / Onde coabitassem loucos e animais”; é esse poema que chama o
leitor a seguir a autora para a leitura dos seguintes — “Venham comigo / venham”, continua o poema da
autora. É um poema ecfrástico em que evoca (traz à lembrança) dois grandes
vultos da pintura do sec. XV e XVI, Bruegel e Bosch, respectivamente,
dos muitos que ela evoca ao longo da obra. E, ao longo da obra há mais vinte e
dois ou vinte e três poemas que, acompanhados de imagem, ou não, permitiram à
poeta escrever o que os sentidos lhe ditaram.
Ora,
na minha análise crítica à obra (e não é preciso ser-se crítico, que não sou,
para tal se concluir), há logo a seguir ao 1.º poema, que é ecfrástico, uma
quebra no segundo poema que nada tem a ver com este tipo de poesia, e novamente
traz outro ecfrástico onde evoca Sócrates na Alegoria da Caverna, seguindo-se-lhe
novas quebras deste tipo de poesia e outras tantas quebras ao longo da obra,
misturando poemas ecfrásticos com outros igualmente muito bons, dentro da lírica,
mas desarticulados da écfrase.
Claramente
a autora partindo da ideia inicial do “Poema
Novo” com que abre a obra e que, claramente, nos está a chamar a atenção
para algo que aí vem de novo ao longo da obra, era importante para a sua valorização
(da obra) que os poemas ecfrásticos se destacassem dos outros vinte e tal que
não são mais do poemas líricos a cantar o amor, o sonho, o tempo,
etc... esses poemas ecfrásticos são absolutamente diferentes de todos os outros,
pela razão de que a autora “lê nos traços das imagens observadas e exprime por
palavras os sentimentos que lhe despertam as feições dessas imagens, sejam
telas, sejam esculturas; dialoga com as plásticas dessas imagens que a chamam
em prásticas ecfrásticas próximas da tradição grega.”
— Então,
quem coordenou a obra, se o fosse verdadeiramente, porque coordenar-se uma obra
não se resume apenas à função de mero “pombo correio” que recebe a obra e a
remete ao editor, deveria ter proposto à autora, em primeira mão, e ao editor,
depois (ou ser este a fazer o que, quem coordenou, não soube fazer) a separação
dos poemas por divisão em cadernos: ou seja, o 1.º caderno (que teria subtítulo)
abriria com o “Poema Novo” seguindo-se-lhe os restantes ecfrásticos e no 2.º
caderno, igualmente com subtítulo, caberiam os outros poemas que nada têm a ver
com a poesia ecfrástica. Não tenho dúvidas que qualquer crítico literário
verteria algum azedume, mais vinagrento do que o meu, relativamente ao modo
como a obra foi estruturada editorialmente. Não deve, quem coordena ou a quem
edita, erguer bandeiras apoteóticas quando essas bandeiras são de vã glória.
Duas
considerações (exclusivamente minhas e, por isso mesmo, de certo subjectivas) acerca
do conceito do “Novo”, relativamente ao
“Poema Novo” proposto pela autora. A primeira, mais poética, mais
sonhadora, mais utópica; a segunda, mais didáctica, mais do âmbito literário.
—
A consideração mais poética: “Novo” é aquilo que surge de resplandecente, seja
no olhar, seja na mente no momento da criação, seja na alma em suas divagações,
seja como forma e meio de reformular, perpectuando, sem criticar. Como dizia o
poeta Augusto Branco, nascido no coração da Amazónia: “Por que tenho no céu
sempre um sol a brilhar, por que tenho a cada amanhecer um novo começo para viver, por que posso partilhar contigo as
minhas dores e as minhas maiores alegrias, percebo que neste mundo tudo é de
graça, tudo vale a pena!”. É “Novo” aos
olhares da poeta, aquilo que promete ser diferente, é o “Belo” sublimado, é a
arte como função poética já transportada e estudada da Grécia Antiga, mas é
também esse espaço de fé que temos no mais fundo de nós que nos faz viver apesar
das agruras que a vida pode dar-nos, apesar das rasteiras que a vida muitas
vezes nos prega, esse espaço de fé com
que a poeta recebe essas agruras da vida a seu modo e se compraz em vivê-las nas
palavras com que brinda as alegrias, se são alegrias, as tristezas, se são
dissabores.
—
Isto é utopia ou sonho? Diz Natália:
“Como eu gostaria de inventar um poema novo: / Apenas um poema novo, / Onde
coabitassem loucos e animais”.
Utopia,
é uma ideia fantástica, uma ideia que existe, apenas, no imaginário sem pretensões
a ser real; onírica, é uma pretensão com direito ao delírio, dinâmica, nunca
estática porque sempre em ruptura com o presente...
...loucos são os/as poetas onde apenas
com eles, no seu imaginário romântico de sã loucura, consideram que “tudo no
mundo é de graça e vale a pena”, como dizia Vinícius de Maraes; louca, mas de sã
loucura, é esta poeta que almeja que se possa criar um mundo novo, como “um
poema novo, onde coabitem em paz e harmonia loucos e animais”, onde coabitem
harmoniosamente todos os seres à face da terra. Utopia ou sonho, é um devaneio
poético que (se) imagina como perfeito, como ideal, é o almejado mas utópico,
coisa que a poeta sabe irrealizável no real, inalcansável, mas que lhe alimenta
a alma onírica, por isso...
...advirto, aqui no imaginário poético
da autora, o poema novo não é utópico: é fantasia mas, também, é
desejo, é o que ambiciona alcançar, é sonho — o
maná de todos os poetas. E a poeta nos diz:
“Utopia?
Não! É um sonho,
(um sonho)
Que
se concretiza com as quimeras
Que,
outrora em minhas manhãs,
As
redimensionei no poema novo,
Que
ora urge para todo o sempre.”
Os
vultos que a poeta evoca no “Poema Novo” nos quais a visão utópica é
evidente, são apenas isso “utopia” e não o sonho da autora que o quer ver realizado,
hoje e sempre, neste poema novo. Mas não quererá a poeta, também,
referindo-se ao “Poema Novo” chamar-nos a atenção para o novo modo de
construir o poema que, não sendo de todo novo é, contudo, novo para ela? — mais se justifica, aqui, a necessidade de a obra
ter sido formatada na edição do modo atrás indicado.
—
A consideração de “Novo” no
conceito mais literário: um dos grandes méritos da literatura moderna, foi
reformular o «conceito de tradição a partir da perspectiva do “Novo”» (Octávio Paz).
O imaginário clássico propunha, como termo de obrigação, a reverência à
tradição como forma de perpectuar o passado sem o criticar; já os escritores
modernos, no conceito de Paz, impuseram a via da negação à tradição como forma
criativa de com ela se relacionar. Ou seja, esta negação não é recusa ou
destruição mas, sim, crítica capaz de manter vivo o passado — é uma forma “polémica” de dialogar com o passado
e usá-lo de um modo criativo.
Então:
por que não olharmos o passado como transtemporal? Sim, porque a poesia
ecfrástica mantém uma relação de temporalidade com o passado, nesse diálogo
silencioso que a imagem provoca no imaginário do/da poeta! Circunscrevem-se, a
partir do imaginário poético, conexões espácio-temporais capazes de inverter o
tempo, colocando o passado e o presente em osmose para perspectivar o futuro:
aquilo a que se pode chamar de “Novo”. É quase como uma visão cinematográfica,
em que o realizador — neste caso, o/a poeta — faz com que o passado actualize o presente e
continue no porvir. Esta imagem do presente no passado, não desconstrói a
cronologia do tempo; reconfigura-o, através desta associação de causas
temporais nesta relação dialogante “imagem-palavra”.
A écfrase e o pictórico
clássico em Natália: evoca a autora, pela écfrase, no poema
que abre a obra, como se fosse preâmbulo — o
seu “Poema Novo”, novo no modo de
construir o poema, que não sendo de todo novo, é novo para ela —, vultos geniais de indiscutível valor na pintura
da Flandres e Holanda dos séculos XV (Bosch) e XVI (Bruegel). E, também alude a
esse velho mito da caverna do período clássico da Grécia Antiga, o velho Platão,
mas sempre tão actual pela grande verdade que encerra na forma do conhecer,
presente no poema “Caverna Oblíqua”. Ao longo de “Reflexos no Olhar”, outros
tantos vultos da pintura renascentista, desde Itália a Flandres e Países
Baixos, como: Michelangelo, Caravaggio, Rembrandt, Nicolaes Maes, Simon
Vlieger; depois, num salto quase em fim de livro não deixa de percepcionar Marc
Chagall, esse pintor russo da vanguarda modernista que atravessou os séculos
XIX e XX, fortemente influenciado pelo cubismo e surrealismo — faz das cores da lenda de Lilith esse
encantatório poema “Expulsão de Lilith”, a tal figura de lenda hebraica
“in.criada por Deus”, antes de Eva, mas originada de um espírito maligno
tempestuoso e que mais tarde se tornou identificada com a noite, e foi expulsa
do Paraíso. Deixem-me que vos lembre apenas alguns versos deste poema:
Eram apenas bonecas de papel,
Que eu recortava de revistas,
Por vezes, até de cordel.
E furtava-me para o paraíso,
Perdida neste mundo de fantasia.
As minhas bonecas dançavam
Com os deuses e com as árvores,
E os frutos eram reluzentes
E tinham serpentes ondulantes,
Convivendo sem precedentes,
Como a Eva e o Adão,
Que caíram na tentação.
Logo desconstrui Lilith
E expulsei-a do meu jardim...
(...)
Podemos
dizer, da força dos poemas aqui deixados, que Natália Matos Gomes é uma
estudiosa do pictórico clássico. O estudo das obras sobre que se debruça, de
artistas flamengos e do renascimento com as quais tomou contacto nas múltiplas
viagens e longas estadias pela Europa, nesses olhares sobre os
lugares por onde passou e passa, transpôs para o verso aquilo que a visão lhe
ditou em palavras para escrever grande parte desta obra — nela viajou por Toscana, Florença e Siena,
estendeu-se, depois, da Rússia à Europa Ocidental (Tchecoslováquia e Alemanha
'com Kafka', Países Baixos e França), para terminar neste recanto da Península
Ibérica à beira-mar plantado, em diálogos com as aguarelas actuais do
serigrafista deste século, Paulo Ossião.
Vem
de longe a écfrase — “ekphrasis”,
substantivo grego traduzido para o termo latino “descriptio” que tem como
objectivo primeiro a produção pelo método discursivo da visão detalhada de algo
(objecto, pessoa, pintura, estátua, lugar ou acontecimento), a que Aristóteles
chamou “a clareza, a visão clara e distinta”, e a que Cícero acrescentou com o
emprego do vocábulo latino “euidentia” (evidência). Écfrase, é a
descrição pela palavra, das suas particularidades sensíveis ou inventadas pela
fantasia, que o objecto observado desperta no ouvinte, no leitor, neste caso na
poeta Natália que observa, que vê, que lê com os olhos da imaginação e a passa
ao papel em seus versos. A poeta usa a “palavra visual” para dar voz à obra de
arte, coisa nada fácil de fazer; exprime pela palavra escrita os sentimentos
que lhe despertam as feições das pinturas e esculturas ou os lugares por onde
passa; dialoga, pela ousadia da imaginação, com as plásticas das imagens que a
chamam.
[Quando
li Natália pela primeira vez, veio-me à memória Konstandinos Kavafis, poeta
grego do sec. XIX, que “constrói o poema
através da imaginação de personagens que fixam a verbalidade textual” (Joaquim
Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, tradutores de Kavafis que lhe prefaciam a
obra OS POEMAS). Sei, contudo, que a poeta Natália, de Kavafis, não sofreu
influência, porque nem sequer o conhece —
indiquei-lhe muito recentemente a leitura desta obra.]
Estas
práticas ecfrásticas da poesia moderna e contemporânea, próximas da tradição
grega — numa relação íntima entre
a palavra e a imagem — vêm de longe. Possuem
uma longa história começando na descrição do escudo de Aquiles, na Ilíada
(canto 18, vv 478 a 608).
[Como
curiosidade e a propósito da descrição de objectos de caracter artístico, ainda
que haja diversas versões da descrição ecfrástica do escudo de Aquiles, com as
quais nem sempre os críticos estão de acordo nos seus estudos, a descrição que
serve para demonstrar a arte da construção do escudo, ao longo de 130 versos, é
feita em cinco camadas — chamemos-lhe 5
ciclos diferentes; grosso modo e mal comparado, é muito aquilo que certos
poetas consagrados usam, com arte, quando querem escrever uma obra dividida em
partes subordinadas ao mesmo tema, mas em termos de circularidade concêntrica.]
E
para terminar: “O que há dentro de
mim...” — o que há de tão mais
importante que a écfrase, no poema lírico de Natália? O que há dentro da poeta
Natália? O que lhe sai de dentro da alma? Desse “vaso acutilante de seiva / que o tempo quis secar”? Isso nos revela ela num dos mais belos
poemas da obra, de que deixo alguns traços:
O
que há dentro de mim
É
um vaso acutilante de seiva
Que
o tempo quis secar, (...)
O
amor não morre,
É
de uma doçura exausta e mansa;
É
um olhar, um recado, uma aventura
Das
órbitas cimentadas no corpo.
No
corpo e na alma que decide
As
vontades – e contraria desejos,
E
raciocina sobre a justa medida do amor,
Que
se constrói, (...)
O
amor é o alimento do momento eterno
E
vai sempre em viagem, (...)
Tão mais
fascinante que o labor com que talha os poemas da obra, aqueles com recurso à
écfrase, é o poder do silêncio das imagens com que afronta a brutalidade dos
dramas do tempo e das paixões humanas: “O
que há dentro de mim / É um vaso acutilante de seiva / Que o tempo quis secar,
mas pugnei / Pelos deuses — e eles vieram em socorro”. Do
imaginário da poeta Natália nascem visões fantásticas transpostas para imagens
catalizadoras de emoções que provocam no leitor atento de “Reflexos no Olhar”,
sujestões outras que o farão despertar para a atracção pela criação do Belo.
Alvaro Giesta, poeta