A poesia de
Ana P de Madureira é marcadamente feminina. Minimalista e contida nas
expressões que enformam o verso. Torrencial pela forma com que as palavras nele
agem entre si, pondo no verso todo o ênfase. Às vezes numa linguagem quase conceptual.
De uma engenhosa habilidade, apurada nos signos com que ergue a obra, são convite
à aprendizagem de quem a lê. Desprezo total pelos recursos prosódicos que conferem
ao texto ritmo, entoação e pausa. A estrutura vérsica com que Madureira veste o
poema desprezando a pontuação, vem provar que não há limites impositivos para imprimir melodia ao verso. Versos curtos mas acutilantes, como que fragmentados, são o grito do
prazer, o grito de dor, também, são os seus estados nus, de alma nua,
arrancados à floresta dos segredos, sem medo de dizer. Mostra-nos uma poesia
virginal preenchida de sensualismo na pura clareira dos sentidos ¾ entenda-se, aqui, o
"virginal" no sentido da poesia pura.
Ana P de
Madureira joga com as palavras com sábia maestria; digamos que, nesse jogo
sensual, usa um flirt dinâmico, ao
mesmo tempo tornado um só "corpo e verso", na narração poética
intimista, sensual, às vezes quase mítica. Nesta lide sensual das palavras com
as quais a poeta respira, não procura apenas o mítico corpo para se afundar nos
prazeres que de si colhe e dele há-de beber mas "exige o amor"; e ela
diz "quero o suor / em que o amor / é poro poço" ¾ é "poro", o amor é aquilo que me faz respirar mas
também é "poço" onde ele me faz mergulhar e afundar para o prazer ¾ "e quero a fúria terna
do olhar / em que o amor / namora a vontade / nesse despir de alma / que se
afunda no corpo / quero o amor até que os mares / se espumem unos / na torrência
que os levita". Aqui está a natureza poética de Madureira na voz do mar do
Algarve ¾ o azul da
bonança que se levanta nas ondas sensuais de um espírito que se mostra rebelde
pela ousadia da sua palavra poética, mas onde o sentimento e a sensualidade
temperamental são sãos e racionais: "o que são as palavras / senão anjos
que me tomam / alquimias de auroras / e no longo do cabelo a libido / que
caminha (...) / para lá do alto das vagas"(?) A poética de Madureira é
como este amor que ela nos traz nos versos ¾ "fogo / labaredas das mil palavras / silêncio das manhã
escondidas / vozes não ditas / guardadas nos mistérios" do corpo. De sabor
sensual é, sem dúvida, a poética de Ana P de Madureira. Mas se há erotismo
nesta poética, ele não é o ousado, menos ainda a perversão.
Convém,
aqui e numa palavra, dizer que erotismo é uma pulsão, definida por alguns como
angustiante; por mim, aceite como
corajosa e direccionada para o desconhecido. E nesta poética, o desconhecido
será a viagem pelo corpo do outro e/ou ao corpo do outro a partir do corpo da
poeta; possivelmente uma viagem sem retorno como aquela em que nos lançámos,
através da palavra poética, em busca do desejado, muitas vezes não experienciado
ou, se experienciado, não conseguido. É a imaginação gratificante a trabalhar.
Logo, e no meu entendimento da poética de Ana P de Madureira, este erotismo
suave ¾ prefiro
chamar-lhe assim ¾ vejo-o
como a fusão com o outro e com o universo, que desemboca neste êxtase
mítico-sensual, e nunca com a mera fruição da sexualidade. Mas também existe
alguma sexualidade, algum desejo refreado, no texto de Madureira.
Cabe-nos
aqui perguntar: até que ponto o discurso poético erótico-sensual de Madureira é
real? Nós sabemos que toda a obra literária tem suporte no real. E muito do que
existe em poética, também. Porque são as mundividências pessoais do/a autor/a
que hão de formar a ordenação da matéria necessária para a sua produção literária.
E o/a autor/a há de trabalhar a sua matéria em obediência aos signos por si
criados ¾
"signos" são aquilo que confere valor literário à obra. Cabe-nos a
nós, leitores atentos ¾ como se
fossemos críticos ¾ decifrar
esses sinais, vê-los, lê-los e interpretá-los. Porque toda a obra poética
aceita, sem hesitar, novos olhares interpretativos. Toda a obra poética permite
ao leitor ¾ ao bom
leitor ¾ ler e
tirar dessa leitura especulativa novas interpretações, interpretações até
diferentes daquelas que o autor desenhou no seu acto de criar.
E chegado
àquilo que deve ser o bom leitor, cito Luís Carmelo, poeta, ensaísta e crítico,
nas palavras deixadas em entrevista, em 2017, a Luís Ganhão: «O leitor deve
estar sempre de pé atrás, deve fazer o papel daquela pessoa que está a ser
seduzida, mas que recusa a sedução.» Isto compreende-se na medida em que é esta
a posição a assumir, como crítica, pelo leitor que o faz ser o tal "bom
leitor". E a pergunta impõe-se ¾ quem é este bom leitor? Respondo ¾ é o melhor crítico que o
poeta, que o escritor tem. É o leitor inteligente e criativo que não se quer
ver diminuído enquanto bom leitor. Não será, de certeza, aquele que aceita o
produto que lhe impinge o autor, porque o conhece e lho compra a troco de
palmadinhas nas costas. Esse, é um leitor menos atento, menos inteligente que
não se quer dar ao trabalho de pensar para criticar, ou que não critica porque
receia não cair nas graças do autor. Muitas vezes nem lê a obra que compra;
limita-se a elogiar sem ler; elogia pela amizade e esquece-se da função de
"bom leitor" ¾ aquele que
deve criticar para fazer crescer o autor.
Mas,
tratando particularmente da nossa poetisa... a sua poesia é brilhante, às
vezes, quase visionária; mostra-nos que o corpo animal e a sensualidade poética
são o mesmo grito ¾ comungam o
mesmo pão e bebem, da mesma taça, o mesmo vinho.
Torrencial
é esta "alquimia das auroras"
onde Nos Dedos as Palavras o "sol ardente / chama o mar" e no
"fervilhar do sangue" e na
"força dos vendavais" os
corpos "peregrinos de mistérios"
se unem "na intimidade do tempo"
como a força das tempestades ¾ é como se tsunami fosse cada verso num torrencial
de ondas controláveis, E, "controláveis", porque há ternura e
veemência nas suas palavras ¾ são como
brasa que perene arde com a fúria do querer e da vontade de ter e possuir.
Nua e "NUA",
sempre na clareza do verso que se ergue curto e expande forte como a abertura,
para o rumo, na clareira da floresta. Podem chamar-lhe poesia complexa, poesia
sinestética, ou mesmo poesia visionária nesta combinação de campos semânticos
em jogos de palavras ¾ eu
chamo-lhe, sobretudo, poesia sensual diferente do que comumente nos mostram a
maioria dos poetas portugueses que ao tema se entregam.
O corpo
feminino está em comunhão afável com a natureza, aquela que lhe é mais próxima:
o mar do Algarve. O suor, a "língua
silenciosa", a pele quente "na
inquietude do dentro", a "carne
fogo" parece enxertada do "frémito
das águas" azuis cristalinas do mar. A poética de Madureira é aquilo a
que podemos chamar uma poesia corporal ¾ o corpo domina a palavra e esta subjuga-se-lhe com doçura
mas firmeza, intimista, mística e profunda, num jogo de batalhas e flirtes entre sinfonias, quase
celestiais, e cataratas florescentes, como que iluminadas por mágicos e
multicolores arco-íris.
Ana P de
Madureira é o nascimento e a erupção da e na palavra que habita o espaço em
branco entre o céu e a terra, como se fosse a "placenta das palavras
proibidas" e
"a ternura de quem deu à luz um
filho", ou vinda das profundidades da terra se expande em lava
antes de ao seio da terra retornar: "filmarei
/ cada milímetro da morte / com a força sinestésica / que o corpo comporta"
para depois "caminhar o caminho /
por onde nada dorme" porque "se
o cansaço partiu / e as pálpebras já não tombam // agora é a terra / que me
viaja e sonha / enquanto com ela / vou".
O que há a
dizer da poética deste livro de Ana P de Madureira, não se reduz a duas magras
folhas de papel preenchidas a um espaço ¾ ela é, no espaço e no tempo, não apenas pele no antes e carne
no depois da palavra expressa, mas, no durante, é um repetir de ondas que se
refrescam na braveza do mar alto da imaginação da poeta e regressam, depois,
reproduzindo-se no vaivém das marés de imagens que lhe florescem na mente, para
frutificarem a cada chegada à praia, num sempre verso novo para um sempre
refulgente poema, a farejar o vento num crescendo febril a desvendar mistérios
em cada palavra e onde cada palavra se interroga no desvendar dum tempo novo.
© Alvaro
Giesta, Dezembro de 2018