25/03/17

AS CONSCIÊNCIAS CRIADORAS NÃO VIVEM POR REPRODUÇÃO E ROTINA

A literatura não é apenas o texto em prosa ou poético; muito menos o é quando e se o autor escreve para si. Nada disso. Se assim fosse, qualquer um que o escrevesse seria um literato.  Mas, literato, neste sentido, só se o fosse de si mesmo: pura estagnação do "eu" pretendente a literato e ruína da literatura. Um literato assim, não o pode ser dos outros, ser de todos, ser do mundo literário. Um tal, escritor ou poeta, fechado na sua redoma, no seu ego-centrismo, escrever de si para si, não lhe permite criar para além de si. Considera-se absoluto e este absoluto, sendo-o simplesmente de si e para si, não existe.

A literatura não é apenas o texto que o escrevente debita no papel, como a matemática não é apenas o número que o professor escreve no quadro negro. A literatura é um fenómeno. É a ordem duma consciência criadora que estabelece regras para ordenar as suas relações consigo própria, com o tempo e com os homens.

O criador literário rege-se por reflexos de actos da criação, situações da vida que se descarregam sobre si e o iluminam: como se fosse o clarão de um relâmpago que em determinado momento da trovoada definisse onde vai cair o raio e provocar a ferida que vai gravar na memória esse momento que se perpectuará no tempo. Mas o homem, para criar literariamente, tem que ser livre e essa liberdade criadora só ele a pode definir e exigir de si porque está intrinsecamente ligada ao seu momento de nascer. No acto da criação literária apenas o limitam a possibilidade ilimitada de criar; isto é, o homem, ao criar, e para criar literariamente, deve ir sempre para além da possibilidade que no momento alcança; ou seja, no seu acto de criar deve continuamente germinar o seu temperamento criador em busca da ressonância para além do alcance da sua imaginação. É esse eco, reflectido no tempo e nele perpectuado, porque sai de si para além de si, que torna o texto no tal fenómeno literário.

O criador não pode ficar, apenas, no instante: deve dirigir-se, neste seu temperamento criador, neste seu modo endógeno de criar, para as etapas da escrita investigatória e inquiridora, profundos e sinuosos que sejam os seus horizontes do pensamento, e torná-las num somatório de experiências, conduzindo-se dentro delas. Isto é, viver com as experiências narradas, primeiro no seu subconsciente de insubordinação face às ideias estagnadas que prejudicam o poder e dever da escrita literária e, depois, revolucioná-las na página em branco firmando-se chão onde faça crescer a árvore com a possibilidade de mudar ao fruto o seu nome e chamar-lhe futuro. O temperamento criador sedimenta-se do equilibrio entre a procura desassossegada e ininterrupta do espírito de quem cria e da oportunidade que a liberdade confere ao criador para ir além do círculo fechado do instante na expectância do tal absoluto e do sempre longínquo.

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Alvaro Giesta © PALAVRAS QUASE in COMÉRCIO do Seixal e Sesimbra, edição 311 | 3Jun2016
Foto: na Sede da Academia, em Monte Estoril, Cascais, com o Prof. Dr. António de Sousa Lara, Mui Ilustre e Digníssimo Presidente da ALA (Academia de Letras e Artes) e a Dr.ª Celeste Cortez, a minha Mui Ilustre Madrinha no processo de entronização na referida Academia, em 30Nov2016

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