20/12/18

da POÉTICA de ISABEL BASTOS NUNES

Autor: Alvaro Giesta
30 de Novembro de 2018


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Difícil é (...) escrever um longo poema em que não é apenas o tamanho que lhe confere grandeza, mas o valor ontológico que em si está contido, em que o poeta consegue dizer ao longo dele, o que julga ser tudo, sem se perder nem desviar do pensamento que pretende transmitir. É aqui que se enquadra a poética de Isabel Bastos Nunes.


A sua poesia é o lugar, não da probabilidade mas, da afirmação, da capacidade de dizer aquilo que a palavra quer dizer sem necessidade de recurso às metáforas obscuras e a outros símbolos que têm a função imagética de ocultar o óbvio para tornar o texto poético mais apetecível, porque alindado e ornamentado pela capacidade que as figuras estilísticas têm, de tornar o texto mais belo ainda; tornam-no, contudo, a essas figuras de estilo afeito, confuso e preso a um certo grau de dificuldade para o seu entendimento. E eu, que não sou o leitor do momento que se limita às palavras de circunstância, quando falo da obra de um autor não me cinjo, apenas, àquilo que as estreitas paredes do livro me permitem ¾ assim sendo, falo aqui da poesia que da Isabel Bastos Nunes conheço por leituras feitas não apenas ao título À Procura de Mim mas, também, ao que deixa nas redes sociais, porque falar somente do conteúdo da obra, é afirmar por defeito; mas não posso deixar de dizer que À Procura de Mim é, talvez, a melhor obra que eu li até hoje sobre este mistério: O ENIGMA DO SER, onde é presença constante, lado a lado com o Sujeito-poético e o Objecto-poético (o Eu e o Outro), o Corpo, a Vida, as Palavras, o Tempo, o Silêncio, a Solidão, o Sonho, os Medos e até a voz da Ilusão.

O enigma do ser presente em força no 1.º caderno poético (se assim lhe  podemos chamar) Procuro o Teu Olhar, repete-se ao longo de toda a obra. O mistério do corpo, neste enigma do ser, amanhece no tempo com o silêncio e a vontade de não-ser "E tu e eu não queremos acordar" porque "Somos dois instantes" numa fuga à realidade para o refúgio da eternidade, somos "feitos de eternidade / e a essência dos nossos sonhos / não se prende no impossível" ¾ é a busca do impalpável, do inconcreto, dum mundo realizável no irrealizável: onde o nada-ser sequer é impossível  para a concretização do sonho.

A poesia do corpo onde os sentidos se fundem, numa visão inquieta de versos escritos que se projectam no infinito do sonho ¾ é a essência da vida: "Toco-te quase furtivamente com as mãos / com medo de quebrar esse encanto, tão frágil do teu corpo, / e vagueio por ele mansamente, / avançando com medo que num instante / te voltes e me acordes deste sonho". O corpo ¾ península, continente, selva ardente, sol, sede - sede de ser: "És quente como a África quando, ardente e sequiosa / vibrante e sinuosa, nos desperta os sentimentos". O corpo ¾ onde e de onde "os mistérios da noite revivem", e "os pássaros cantam" e "os violinos das cigarras" se erguem em sons de cadência vaga "enchendo o ar de branda melodia" capazes de construir os melhores prelúdios e sonatas de Chopin ou o musical mais virtuoso de Mozart.

A poética de Isabel Bastos Nunes não tem as sombras transgressoras ornamentadas pelo símbolo opaco a ocultar-nos a luz. Quando o símbolo existe, é suave tornando, claramente, a sua poética luz e tempo, paz e silêncio, sonho, mistério, enigma e lugar também. É, afinal, a natureza pura das coisas que os olhos veem e o coração sente ¾ como dizia o Mestre Caeiro para quem a «natureza» abrangia «todas as coisas do mundo natural» e aqui, plagiando-o nestes dois versos de 1915, «a espantosa realidade das coisas» era a sua «descoberta de todos os dias». Nisto, descobri eu Isabel Bastos Nunes, que a li por noites longas, nas palavras que nos deixa quer em verso, quer em prosa com sabor a poesia, quando vagueia dentro de si em comunhão com o tempo, com o silêncio,  com a solidão e com o mundo ¾ como para Ovídio, poeta latino nascido a 20 de Março do ano 43 aC, também para IBN "a poesia é remédio da alma".

Agora, vagueando o olhar por campos mais latos da sua poética: as palavras de Isabel Bastos Nunes revelam profundidade partindo da superfície das coisas ¾ como, quando No Silêncio do Amor ela pede aos passos vagarosos da noite que a abracem como se fosse "pétala de flor" suave, e ao silêncio solicita o murmurar dos dedos... e aos dedos, a subtileza para desenharem em cada curva do seu rosto as linhas precisas dum poema de amor, um dia escrito. E sempre o tempo sem limites, sequer tempo contado, nunca de horas contadas, nem minutos, porque só assim, sem tempo definido se faz renascer o amor.

Ainda vagueando por outros poemas da autora, além do livro em apreço, há um Ponto de Encontro no tempo que às vezes o torna "trágico e maléfico" ¾ são "os medos" da poetisa que "cúmplices" a "tornam" ao passado, a levam de regresso ao passado, "apagando-lhe o presente como um sonho inacabado". É, depois disso, a dor e frustração pela espera quando o desejado é negado. As memórias do tempo num saudoso adeus, que não houve; as horas mortas do tempo, às vezes sombras, desgostos, alegrias também, e sentimentos já gastos como os corpos usados mas que as palavras perpectuam aqui no papel, porque ainda estão vivas na memória para as recordar ¾ renascem "das cinzas queimadas / em lareiras ardidas no carvão da solidão", diz-nos a poeta.

As reflexões poéticas nos cadernos Lágrimas da Alma e Entre as Palavras e o Silêncio, levam-nos a perguntar: depois da partida para outro rumo, outro caminho, o que fica? ¾ o silêncio, o esquecimento pela ausência, às vezes, nem saudades, nem lembranças, nem memória, nem história, porque não houve nem princípio, nem fim: "Agora os nossos gestos já não precisam ser estudados / vão-se esvaindo no longe do que fomos, / traduzidos em ausências", são "Restos tão gastos do nosso passado", já "Não há voz de saudade, nem lembranças de memórias" "porque nunca se apaga, o que não teve princípio nem fim".

No silêncio a desesperança e a voz da ilusão ¾ que florestas são essas partes de mim? Sim, que florestas são? Pergunta-nos e responde-nos, ao mesmo tempo, a poetisa. ¾ São silêncios onde "vou caminhando (...) / onde não há horizontes definidos / onde não se ouvem promessas / onde os corpos se entregam / e eu me sinto liberta", onde "os sentimentos são galhos" "secos e áridos" caídos no chão. Mas... que entrega dos corpos é esta, que libertação é esta sem horizontes definidos e sem promessas a cumprir? É a entrega cega (dizemos nós) "quando me segredam mistérios" que "quase me enchem de ilusão" ¾ diz-nos a autora.

E depois da ilusão? ¾ perguntamos e a autora responde-nos: "o peso das noites eternas / o desespero de todos os recomeços", o saber que "posso estar morta por dentro / mas (que) sei sobreviver no espaço e no tempo". Mas, e se... e as condicionantes repetem-se num questionar de medos à poetisa: ¾ e se o tempo não for favorável, e se a razão se sobrepõe à existência, e se houver dependência? Assustador este final poético e tão real do ENIGMA DO SER ¾ a solidão: "Posso a tudo isto sobreviver / posso não sobreviver ao peso enorme das noites eternas".

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