Parte I
O grande poder de escrever com recurso à profusão de
imagens - esse poder dos símbolos - que possuem uma força expansiva tal que
captam a vasta realidade, falseando-a, deve ser usado com método e a devida
atenção à subtileza e ao rigor da palavra. Porque, não sendo assim, ainda que a
significação que se extrai do uso desses símbolos seja uma riqueza, o real
falseia-se e a narrativa ou verso multiplica-se de ambiguidade e falta de
qualidade que, pela realidade ficcionada, melhor diremos, pela realidade criada
através dessa profusão de imagens, não permite, que o leitor menos atento
separe o trigo do joio. Dá, a estes, a tal miragem do deserto e fá-los perder
na sua imensidão de areias julgando estar ali, à mão, a tal imagem que desejam
alcançar para se dessedentarem da sede que os aflige. É que, nem sempre tudo o
que é luz é oiro!...
É no e do recurso que se faz no uso da imagem no processo
da escrita, que permite distinguir o grande intérprete da palavra do medíocre
escritor. E a literatura, neste caso, fica ameaçada pela confusão de ideias,
pela profusão de linhas de força que se criam no texto com a intenção de o
tornar mais atractivo - não ao leitor que o interpreta mas ao ego do seu autor
-, que breve entram em tensão e fracturas. Fica, assim, ameaçado o texto pelas ambivalências e
ambiguidades criadas, pelas difusas trajectórias, de choque e fuga,
entrecruzadas na narrativa, seja o texto prosa ou poesia. Nestas linhas de
força formadas pela aglutinação de palavras como se fossem palavras-chave de
qualquer dilema, ficam perdidas ideias que não se encontram no meio dessa
profusão de imagens nascidas da imaginações férteis mas mal cultivadas, não
apenas pela falta de leituras fundamentais para uma boa aprendizagem da escrita
mas, também, pela falta de rigor e critério de quem incentiva à escrita e à
publicação de obras. A urgência da palavra mete-nos, muitas vezes, medo de a
usar. Também nos impulsiona a usá-la sem regra nem método e sem rigor, nessa
urgência que temos em darmo-nos a conhecer no mundo da escrita.
Fugidios são os tempos e tudo fazemos, e quantas vezes de
qualquer modo, na ânsia de protagonismo. E, então, para sermos o sol que
queremos mais brilhante que os outros astros, ficamos cegos às evidências e
enfrentamos, sem medir o risco da falta de qualidade, o tal frenesim
inquietante e sem método da escrita - o da proliferação das imagens. Elas
toldam-nos os sentidos sãos, fazem-nos acordar repentinamente do sono em que
andámos uma vida envolvidos e catapultam-nos (ao escritor menos previdente e
avisado das coisas da escrita) para o mundo da ilusão. Aquele lugar
desconhecido mas que se julga já conhecer, existente entre o sono e o sonho; o
lugar das sensações estranhas e confusas que nos atormenta a ideia de que já
somos "grandes escritores", sem sequer o sermos
"pequeninos" o que nos impede de nos interrogarmos sobre a qualidade
da coisa escrita, "porque temos medo" de mudar esse nosso imaginário
com mais medo, ainda, de perdermos o protagonismo.
Dito de outro modo: a urgência da palavra escrita
afoita-nos de tal ordem que nos esquecemos das regras elementares do seu uso e
cometemos, nesse uso, o abuso de as escrevermos sem nos darmos ao trabalho de
analisar o erro, o sentido e/ou significado que ela tem no texto, se ela
enquadra o que pretendemos transmitir; ou seja, se ela não rouba a ideia ao
contexto e se com ela, naquele sítio exacto em que a colocamos no texto para o
significado que lhe pretendemos dar, não prejudicamos a interpretação que se
faça da sua leitura. É nessa urgência da escrita que o autor deve saber criar o
seu símbolo com método e regra.
Parte
II
Porque o autor, o que pretende ao criar o símbolo, é que
ele seja o seu acto heróico, como se fosse a sua vida e não a falsa equação da
consciência falsamente purificada pelas ameaças desta confusão de ideias
desconexas e desprovidas de sentido com que pretende dar vida - uma falsa vida!
- aos seus escritos ( e aqui mais o verso que a prosa), do uso que faz de
certas imagens atiradas a esmo para o papel, que tudo consente, para darem a
impressão ao incauto leitor que as aceita sem as conseguir digerir ( o que o
torna num mau leitor, por isso mesmo), como sendo únicas no seu universo
literário.
«O valor da escrita (como nos elucida Herberto Helder),
reside no facto de em si mesma tecer-se ela como símbolo, urdir ela própria a
sua dignidade de símbolo. A escrita representa-se a si (...)» e jamais é o
escritor que representa a escrita adulterando-lhe a função na tentativa de que
esse amontoado de palavras ambíguas dê «razão às inspirações reais que (a
escrita) evoca».
Os poetas obscuros tecem no seu imaginário verdes de todas
as cores. Interagem com o amarelo na penumbra da voz dando como conclusão ser o
negro, ou outra cor qualquer inventada, a evidência da vida. Declaram, os
poetas obscuros, como sendo esta a maneira mais prática de ver a vida do cimo
dum pedestal de onde, em difícil equilíbrio, elegem apocaliticamente os seus
eleitores. Contrariamente ao habitual, não são estes que designam os seus
poetas eleitos. Nada disso! São, sim, os poetas obscuros na sua obscurantíssima
maneira de observar o mundo que
arrastam, consigo, os seus (e)leitores, levando estes, a seguir aqueles, arrastados
por uma cega e autómata ignorância. Ignorância pelo facto de que estes
(e)leitores que seguem cegamente estes poetas obscuros, quase nunca os leram e,
se os leram, nunca os interpretaram pela mesmíssima ignorância do não saber ler
nos textos o valor do amontoado de imagens que, desconexamente, a maior parte
das vezes o poeta obscuro atirou, às cegas, para o papel que tudo consente.
Não nego esta evidência e, até, a afirmo: - de que os
poetas obscuros, na sua obscurantíssima arte de fazer poesia a fazem tão
obscura que Aristóteles, por certo, os baniria da sua arte poética.
Aristotelicamente, a arte devia imitar a natureza. Mas, este acto desvirtuou-se
porque a natureza, por culpa dos poetas obscuros, se começou a desviar de
dentro da arte. Não da arte apenas mas, de dentro da arte. Foi a própria arte
que se obrigou a expulsar-se, a si mesma, da natureza. A arte quis a sua
própria ordem, o seu próprio habitat, a sua própria vida. E inverteu-se a
concepção aristotélica da arte - a própria natureza tenta imitar a arte,
ironicamente imita a arte e tenta fazer-se tão engenhosa, nesta sua imitação,
quanto o é a arte, plagiando-a. Substituem-se as visões, invertem-se os
panoramas, trocam-se as linhas de acção e já não é o homem que observa a
natureza mas, é este que passa a ser o instrumento da observação da natureza.
Hoje vê-se muito quem, ignorantemente mas vaidosos e
orgulhosos do seu "eu" falsamente sábio, queira fazer ascender
prometeicamente a sua poesia aos céus. Aspiram, como Ícaro, ao crepúsculo dos
deuses. Esquecem-se é de que a cera que lhes cola as penas facilmente se
derrete na subida ao sol e depressa a força da gravidade os faz estatelar no
solo sem apelo nem remédio. Vivem, esses aduladores de si próprios, embevecidos
com notívagas tertúlias pseudo-literárias, que de literárias estão
absolutamente recheadas de conhecimento vazio, fazendo-se crer os génios que
nunca foram e jamais serão, numa paixão narcisista, esquecendo-se de que se
arriscam à infelicidade e à sua própria repulsa por se fascinarem demais com a
(má) imagem que tecem de si. Creem-se arautos de um estilo e um saber que
(pensam) dignifica a sua criação. E como criam eles esse estilo? Fazendo
colagens sobre colagens de pedaços de escrita que ousam, muitas vezes, plagiar
aqui e ali modificando-lhes o sentido, para pior, com palavras entrecruzadas
que lhes nascem soltas sem imaginação, procurando constituir fracturas e
fracções propositadas (como se) dando-lhes a originalidade que de originalidade
nada têm. São os poetas obscuros do momento, autointitulando-se como "não
seguidores do obvio" pretendendo seguir outros poetas obscuros, que
efectivamente o são desde o seu início literário, e pretendem eles, os
"poetas do não obvio", fundar neste seu original (sem originalidade)
método das colagens, o seu símbolo heroico, a sua própria vida e veia poética.
Veia, onde a poesia feita com arte se nega a correr.
Aqueloutros - os verdadeiros poetas obscuros - sim, dignificaram o valor da escrita
representando-a como valor real da inspiração que evocaram; a sua escrita
teceu-se a si mesma como símbolo original sem buscar no alheio a sua própria
inspiração. E o valor é esse! Ser-se original mantendo-se fiel à sua linha de
acção nunca se desvirtuando com malabarismos enviusantes e ideias obliquantes
na escrita, pretendendo fazer passar a ideia, àqueles que os leem, que ainda
são maiores na sua ignorância que a ignorância desses falsos poetas obscuros do
"não obvio", que são únicos na sua originalidade.
O seu poder de
escrita - refiro-me à dos pretensos poetas obscuros do "não-obvio",
que não os verdadeiros poetas obscuros pela sua originalidade de fazer poesia
obscura - não é ofuscante pela beleza ou real que encerra naquilo que
transmite, muito menos no poder de persuasão. O seu poder reside no facto de
violentar a coisa real com nuvens de palavras inócuas atiradas sem sentido para
o papel, desvirtuando o poema mas que, para os maus e incautos leitores que em
massa seguem o líder, são o ópio que lhes entorpece os sentidos. E interessa, a
estes falsos poetas obscuros do momento, que o seu "povo seguidor"
viva alienado entre hiatos provocados pelos seus ininteligíveis poemas, que
estes nem leem porque muitas vezes mal o sabem fazer, e aqueles nem se dão ao trabalho de corrigir.
O que interessa a estes "poetas do não-obvio" - os ora poetas obscuros
feitos à pressa - não é dignificar a literatura; é, sim, esconder a ignorância
nesse falso saber com as colagens de palavras sobre colagens, como escondem a
decrepitude sob camadas e camadas de tinta no cabelo fazendo-se passar pelos
virtuosos jovens, que não são, e garantir a presença dos seus apaniguados maus
leitores nas inúmeras festas de salões carunchosos onde a decrepitude se
pavoneia embevecida em cada noite seguinte e fumarenta, tão igual e sempre
igual à noite que a antecedeu.
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artigo publicado na revista
literária "A Chama" n.º ? (? trimestre de 2014) (Parte I e Parte II))
Parte I artigo publicado na revista BIRD de 14 de Setembro de 2015)
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