08/04/18

A influência na invenção do humano poético

Autor: Alvaro Giesta
__________


Todos os poetas - e apenas a estes, e só a estes, me refiro neste texto -, sofrem da influência dos outros autores e, ao mesmo tempo, torna-se numa angústia presente e permanente naqueles que pretendem que a sua "arte", a sua forma de se dar a conhecer aos outors através da escrita, seja original. Esta "angústia da influência" será aquela de que fala o mais influente e controverso crítico do nosso tempo: Harold Bloom?
O processo da influência nota-se, quer queiramos quer não, muito mais nas artes e nas disciplinas intelectuais do que nas outras formas do saber e do conhecimento - porque enquanto estas exigem a experimentação para um "único pensamento" (Heidegger) pensando-o até ao fim em vista, para quem sofre das artes, da angústia da influência não há fim.

O humano poético inventa-se, a partir da influência que se sofre dos poetas antecessores. Vulgarmente se diz: "inspirei-me no poeta A ou B" - mas, isso, não é inspiração, porque tal, como inspiração, não existe; isso é "influência".
Ninguém, nas artes intelectuais, está isento e livre de sofrer influência e de influenciar outros, resultando de tal acontecimento uma forte inquietação, quando, o que todos os poetas pretenderiam, era terem uma forma só sua e genuína de se expressarem na escrita - seriam, neste caso, mestres de si próprios, mestres sem mestre.
E só não sofre influência quem não teve contacto, lendo ou estudando, os poetas antecessores. Mas esses - os que não sofreram de influência - ou são genuinamente superiores ou raramente passarão de vaidosamente medíocres.

Uns e outros diferentes entre si: os poetas genuinamente superiores, porque do seu pedestal não descem para ler os poetas menores pela pouca ou nenhuma atenção que lhes merecem - seria uma desconsideração para eles, considerados sábios, e uma perda do brilho da auréola, descerem ao mundo inferior dos poetas menores; os que raramente passam de vaidosamente medíocres, porque obcecados que estão com o ego, que julgam já tudo saberem e de tudo serem capazes sem necessidade de com outros aprender, desconhecem que a humildade é a maior sabedoria dos sábios.
- E, sábios, são aqueles que não têm necessidade de falar do seu próprio valor, aqueles que, sem ênfase ou asserção, são capazes de, do mesmo modo, erguer uma montanha sem esforço a partir do pó e dum oceano irado fazer flutuar um átomo. Não os tentando nunca a ostentação, o exibicionismo, a presunção, facilmente se explica o mérito e o poder do mestre e do sábio de, com o mesmo saber, tratar a farsa, a tragédia, a lírica e a narrativa.

Poucos são os autores que têm dons de imaginação poética - quase todos se repetem nos temas e, tantas vezes, na forma de os tratar. Os que têm o dom de se inventar genuinamente, criam-se como mestres de si próprios, quer na forma da sua escrita, quer na genialidade das suas distintas, porque genuínas, ficções poéticas. É um atrevimento dizer que dificilmente houve autores genuínos, únicos e inegualáveis, na forma de executar e criar. E que, no panorama literário português, nem Pessoa foi genuíno na poética - se o foi, apenas isso aconteceu na criação dos heterónimos. Porque o seu grande mestre na forma do verso livre foi Walt Whitman. Disse Harold Bloom que Pessoa era o maior herdeiro português de Whitman. O próprio Pessoa o não desmente nesta declaração poética pessoana em "Saudação a Walt Whitman"[1]: «Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado, / não sou indigno de ti (...) / (...) / Sou dos teus, tu bem sabes (...) / E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias (...) / (...) / Sei que é isso que eu sou (...) dez anos antes de eu nascer (...)». A evidência diz-nos que Pessoa nunca negou a influência de Whitman sobre si.
(...)
____
Obs:
O artigo, de que aqui deixo este extracto, segue nos mesmos moldes, a narrativa aqui exposta.
____
 A propósito vem o convite que vos faço a uma leitura dupla deste meu poema "da MORTE, cantata em odes mínimas" da influência sofrida daquela que eu considero ser a melhor poeta no arrojo que teve em cantar a morte - Hilda Hilst.
____
da MORTE, cantata em odes mínimas

                              1.

Apoderas-te do meu ser, quando? Agora?
Quando unirás a tua boca à minha,
          -- à boca dum poeta, nesse estreito laço?

Que vontade calada de te unires a mim tens
tu, amantíssima Morte, que por mim
esperando em silêncio, vens minando o meu
corpo que junto ao teu repousará um dia
nesse longo e apertado-abraço!

Oh! como almejas o teu corpo colado ao meu
debaixo daquela pedra fria, onde
a tua fome de mim em fogo arde.

                              2.

Desafio-te:
          --vem, hoje, sereníssima e negra
antes que seja tarde; vem, sem medo,
amantíssima vem não sejas cobarde...

          desafio-te, oh Morte, antes que sejas tu,
nesse beijo frio que tanto desejas, a impores-me
a minha própria sorte -- vem, nesta hora.

 Aqui de mim, para ti, firmo a minha escritura:
          -- assim te imponho eu, agora
que venhas serena mas rudemente, assim te quero
e ao mesmo tempo austera, nesta agonia
ácida, escura e amargamente terrena.

          Assim te desafio -- vem, não esperes
pelo abraço final que nos há de selar a sepultura.

                              3.

O meu tempo agora é teu... e há muito dura!
          Ama-me com a fome que tens de mim
em fazer da minha carne -- ânsia que te consome --
o teu leite prometido, a tua carnadura
          -- o diamante puro para o teu altar.

          Já não me atormenta o teu nome!
Porque tu, Morte, és a Vida-semente da minha vida
amor que em ti se prolonga indefinidamente.

Escurecem os teus olhos que por mim brilham
por alimentar o teu ventre esfaimado,
          de mim sequioso e tardio
quando por fim descer à terra escura.

                              4.

Alimenta o teu ventre, esse amor que há tanto dura
pelo meu ser, faminto e doentio. Sim, tu, oh Morte
que tão demasiados anos da minha vida
trouxeste o teu dentro arredado e fugidio.

Hás-me urdir nesse denso e frígido amor
em tempo teu, sobre mim a tua teia.
O tempo virá em que à tua se há de unir
a minha carne -- vida da tua vida.

Como a trovoada que sobre a terra áspera
e dura, derrama o cíclico raio quando nunca chove
e o rochedo seca e abre brechas em sua cíclica
textura, assim escorra tardiamente sobre mim
e a minha vida, o teu amor pela minha sorte,

          -- e tarde o tempo
em fazer da tua vida a minha morte.»
_________

(da Morte, cantata em Odes Mínimas de Alvaro Giesta, in OPUS, Selecta de Poesia em Língua Portuguesa, Temas Originais, 2018 (31 autores)
_________

Toma-me

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo 
_________

(Da Morte, Odes Mínimas de Hilda Hilst)




[1] Saudação a Walt Whitman / Canto de Mim Mesmo, Autores Álvaro de Campos|Fernando Pessoa/Walt Whitman, © Guera e Paz, Editores, S.A. 2017, pp 12 a 13


Sem comentários:

Enviar um comentário

Prolegómenos sobre “Na Teia do Esquecimento” de Antero Jerónimo

Doem-me as mãos com que te escrevo estes versos… É do peso da espingarda, é do canto que se obrigam a escrever ...