07/02/18

PONTOS LUMINOSOS NO CÉU in Contos do Infinito e os Demónios da Tia Matilde

[Para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente «natural»: está sempre carregada de um valor religioso. Isto compreende-se facilmente porque o Cosmos é uma criação divina: saindo das mãos dos Deuses, o Mundo fica impregnado de sacralidade. Não se trata somente de uma sacralidade comunicada pelos Deuses, (...). Os Deuses fizeram mais: manifestaram as diferentes modalidades do sagrado na própria estrutura do Mundo e dos fenómenos cósmicos.]
Mircea Eliade in O Sagrado e o Profano (a essência das religiões)



                  Já não bastava a noite que era, por de mais, fria e gelada! Uma noite de breu.
          O céu longínquo, habituado a vê-lo sempre azul nas noites da sua aldeia, esquecida lá longe em terras do Moxico, era agora mais negro do que nunca. Caienda, muito a nordeste de Luena, a cidade de Luso no tempo colonial, há muito que ficara para lá da linha dos seus horizontes mas nunca fora das suas recordações. O céu, neste mar distante, era agora um negro de azeviche. Mais negro que o negro Matiê que, na calada da misteriosa noite negra metia medo, quando atravessava o terreiro da sanzala para se ir misturar com o quente da esteira da Benedita, com o luzir daqueles dois olhos que apenas se lhe viam, como pontos luminosos, iguais aos da velha e faminta onça que rondava o curral dos cabritos do tio Kandiri.
          Apenas aqueles pontos luminosos, de luz, naquela profundidade de fazer até Deus temer, quanto mais os homens, indicavam ser ali o céu.

          As estrelas.
          Habituado a ver o seu piscar cintilante, custava-lhe a crer que aqueles pontos luminosos fossem estrelas! Para ele tudo eram estrelas. Tivessem elas luz fixa ou cintilante. Todos os astros que enfeitavam o céu, eram estrelas. Diferentes daquelas que cruzavam o céu, de um lado a outro, por cima da sua aldeia coladinha a Caienda que fora vila e agora tinha pouco mais que duas ou três casas em pé, que as demais foram esburacadas e reduzidas a pó pelas morteiradas travadas entre as forças que pretendiam fixar-se à força no poder com a ajuda dos cubanos, e as outras, as do Galo Negro, que aos poucos se iam reduzindo a zero à medida que o apoio da África do Sul lhes ia faltando.
          No princípio a mãe fizera-lhe crer, na sua ingenuidade infantil, que aqueles pontos luminosos que engravidavam o céu, em movimento, eram espíritos errantes à procura, nele, dum lugar para viverem. Depois aprendeu que, afinal, aquelas luzes que se moviam cortando o espaço, de um lado a outro, por cima da sua aldeia, eram aviões, lá longe, muito alto, a cruzar destinos longínquos. Nunca chegou a saber que podiam ser outra coisa qualquer colocada pelos homens no espaço, com vista à dilatação do seu conhecimento.
          Mas, quanto às estrelas...
          A mãe dissera-lhe, tantas vezes, quando ainda não entendia o mundo, como agora, ou entendia apenas uma ínfima parte dele na sua inocente ingenuidade, tal qual ainda hoje o entende, que aquilo eram os olhos dos seus antepassados "vovô e vovó" a zelar por ele, cá em baixo na Terra e a iluminar-lhe o caminho.
          «Que são antepassados, mãe?»
          E lá lhe explicava ela, como podia e com a paciência que só uma mãe sabe ter, usando palavras que ele pudesse entender, e jamais olvidar, o que eram os "seus antepassados".
          «Mas vovô o vovó estão vivos, mãe. Como podem ser eles no Céu a dar luz ao meu caminho, se estão na aldeia?!»
          Que os antepassados, a que ela se referia, eram os avós dos avós e muitos avós de muitas mais gerações antes deles. Acomodava, assim, o espírito inquieto, por saber, daquele filho em constante interrogação. E tantas coisas mais ela lhe ensinou! Das coisas boas do Mundo, que o Mundo tem, e de algumas ruins da Vida, também. Mas não lhe ensinara da guerra que destrói e mata. Da guerra que ele viu um dia nascer e matar, e o fez fugir naquela aventura impensada por não querer ainda morrer e juntar-se, antes daquele que ele julgava ser o seu tempo, ao tempo dos seus antepassados. Da guerra que lhe levou o irmão mais velho e lhe levou, depois, a mãe, também.
          Tanta coisa mamãe lhe ensinou! E milhentas outras coisas ficaram por ensinar. Os seus pensamentos, na dificuldade desta fuga aventureira e temerária, iam para ela que tanta coisa lhe ensinara. Ela era o Deus das suas preces e súplicas, nesta aventura onde pensava morrer a cada instante, mas onde não queria por enquanto morrer.

          Agora as vagas iradas, naquele fustigar implacável e constante nos costados da traineira, faziam os mais novos gritar. E era uma trabalheira fazê-los calar... com que esforço se conseguiam mantê-los colados no fundo da embarcação. As ondas, iradas, pareciam querer parti-la, pelo meio, engoli-la para as profundezas daquele mar infernal e sem fundo que, apesar de tudo, era dele que esperava a salvação. Todos esperavam o mesmo!
          Eram dezasseis. Um grupo formado, quase por acaso, que ao longo da fuga a partir de Cazombo e em direcção a sodoeste, com destino a Namibe, o Moçâmedes do tempo colonial, onde se sentiam mais protegidos pela presença constante das forças do sudoeste africano que entretanto faziam profundas incursões no sul de Angola, foi cimentando amizades com a convicção de que, de Namibe, partiriam rumo a qualquer sítio mais seguro, ainda que dele não fosse prioritário saber o nome nem tão pouco adivinhar o destino que lhes estava reservado. Importava, sim, saber dele a segurança e a liberdade.
(...)
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Alvaro Giesta © para (Contos do Infinito e os Demónios da Tia Matilde) obra a publicar
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Máscara Tschokwé (Lunda, Leste de Angola)


            


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